Que Competências para as Novas Gerações ? [II]

Antonio Figueiredo
5 min readMar 5, 2017

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[Imagem: Ilustração do modelo geocêntrico pelo cosmógrafo e cartógrafo português Bartolomeu Velho (1568)]

Este meu segundo comentário sobre o Perfil dos Alunos para o Século XXI debruça-se sobre o aspecto a meu ver mais necessitado de melhoramentos no referencial que o Perfil propõe. Começarei, no entanto, por clarificar alguns conceitos. Ao leitor impaciente, que certamente gostaria de ser poupado a digressões, prometo que não irá arrepender-se de esperar. Começo por recordar que não é fácil falar de competências num mundo onde toda a gente fala de conhecimentos, conteúdos e disciplinas. Essa é, possivelmente, uma das razões pelas quais o Perfil está a ser acolhido com reticência por alguns sectores mais tradicionais, e solidarizo-me com os seus autores por procurarem abrir caminho num território tão hostil. É um pouco como tentar explicar que a Terra é redonda a uma multidão que tem a certeza absoluta de que ela é plana, ou afirmar que a Terra anda à volta do Sol perante uma população que acredita que é o Sol que anda à volta da Terra. Como sabemos, o Galileu não se deu nada bem com esse tipo de diálogo!

Passemos então à questão das competências. Por que será que nas duas últimas décadas se fala tanto delas? Há muitas razões, mas as seguintes talvez ajudem a esclarecer. Primeiro, quando um recrutador entrevista um futuro empregado, não lhe interessa saber o que ele sabe, mas sim o que ele sabe fazer — a diferença entre uma coisa e outra é enorme, visto que as pessoas com muitos conhecimentos são, com frequência, incapazes de os levar à prática. Segundo, nem todas as competências se relacionam com conhecimentos. Aliás, muitas das competências que são mais valorizadas nos nossos dias caem nessa categoria, como se pode ver pelas seguintes, retiradas do referencial do World Economic Forum: curiosidade, iniciativa, persistência, resistência à frustração, adaptabilidade, liderança, sensibilidade às dimensões social e cultural. Terceiro, há mais de duas décadas que as empresas e organizações recrutadoras se queixam de que as escolas não lhes fornecem recursos humanos com as competências necessárias. Nesse mesmo tom, há mais de duas décadas que se vai generalizando uma conversa de surdos entre recrutadores, que falam de competências, e escolas que lhes respondem com conhecimentos, disciplinas e conteúdos.

A preocupação atual com as competências visa pôr termo a essa conversa de surdos e superar o alarmante desajuste entre o que o mundo de hoje precisa que a escola lhe dê e o que a escola de hoje (não) consegue dar-lhe. O alarme tem vindo a avolumar-se muito, nos últimos tempos, porque o desajuste se traduz cada vez mais em desemprego, precaridade, degradação de salários e insatisfação social cada vez mais corrosiva. Algumas das previsões para as próximas décadas são aterradoras.

Uma das singularidades deste desafio é que ele não se resolve com os sistemas de ensino a fornecerem, como estão habituados a fazer, um serviço que eles próprios postulam como deverá ser feito. Pelo contrário, o que é importante é que os sistemas de ensino ouçam, ouçam, ouçam o que o mundo tem vindo a gritar que precisa de ser feito. A vantagem de alguns dos grandes referenciais de competências produzidos nas últimas décadas é que partiram da audição de milhares ou dezenas de milhares de vozes, sensibilidades e experiências que têm vindo a clarificar quais são as competências mais em falta. Esses referenciais são, por isso, valiosos repositórios de vozes, que devemos analisar com muita atenção.

Mas o que são, afinal, as competências? As competências que nos interessam não vêm definidas nos dicionários (pelo menos nos dicionários do século XX). Há quem lhes chame competências do século XXI. Por mim, prefiro designá-las por competências de nova geração. As características que as distinguem das competências disciplinares tradicionais, tal como reconhecidas por vários autores, são: (1) a sua natureza transversal, cobrindo mais do que um domínio; (2) o seu caráter multidimensional, incorporando saberes, aptidões, atitudes e valores; e (3) a sua capacidade para induzirem comportamentos de ordem superior quando aplicadas à resolução de problemas em situações complexas ou de elevada incerteza.

Chegamos então ao momento de discutir o aspecto que se me afigura mais necessitado de ajuste no Perfil dos Alunos para o Século XXI — a notória ausência de qualquer preocupação com a matemática e as ciências. Não estou a referir-me à matemática e às ciências como disciplinas. Se o fizesse, estaria a confundir alhos com bugalhos, Terra plana com Terra redonda. Estou a referir-me à matemática e às ciências como competências transversais e multidimensionais aplicáveis em contextos de elevada complexidade. Quando as vozes que os referenciais internacionais reproduzem pedem matemática — e pedem-na com insistente veemência — não pedem conhecimentos disciplinares de matemática. Pedem competências matemáticas. Pedem-nas porque as matemáticas estão hoje na base de tudo quanto são algoritmos, e o mundo é hoje mais gerido por algoritmos do que por pessoas. Pedem-nas porque as matemáticas estão hoje na base da análise maciça de dados, e grande parte das grandes decisões deste mundo resultam da análise maciça de dados. Pedem-nas porque as competências matemáticas, na sua natureza transversal, se fundem e confundem com as de computação. Pedem-nas porque esse casamento entre matemática e computação é o instrumento mais poderoso que a Humanidade alguma vez inventou. Pedem-nas porque a transversalização desse casamento invade todos os domínios, incluindo as humanidades (humanidades digitais, jornalismo digital, media digitais). Repare-se que o que digo para as matemáticas pode ser generalizado, com as necessárias adaptações, para a generalidade das ciências. Ciências que valem, cada vez mais, não como disciplinas, mas como competências transversais e multidimensionais. Competências fortemente instrumentadas pela sua ligação às matemáticas e à computação. Competências que importa reinventar com urgência se quisermos acabar de vez com os diálogos de surdos e reconhecer que a Terra afinal não é plana.

Ocorrem-me, a propósito do Perfil, outras questões menores, que alongariam em demasia esta já longa reflexão. Se o tempo mo permitir, procurarei voltar a elas num terceiro comentário.

Sobre este tema, partilhei mais dois textos:
Que Competências para as Novas Gerações? [I]
Que Competências para as Novas Gerações? [III]

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Antonio Figueiredo

Educator, Researcher, Author and Consultant on IT in Learning & Education and on the Social Ecologies of Education, Innovation and IT