O mito do “professor nativo” no ensino de línguas estrangeiras

Adriana Bezerra da Silva
4 min readMar 30, 2017

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Recebo uma mensagem no celular. É o dono de uma escola de idiomas para a qual trabalho como professora de português para estrangeiros. Solicita, novamente -já o tinha feito ao menos três vezes antes-, indicação de professores de inglês. Ele frisa: “professores nativos”. Conheço muitos professores de inglês, muitos deles graduados e pós-graduados em Letras pela Universidade de São Paulo. Volto a passar os contatos; também já o tinha feito antes. Aviso que os professores não são nativos, mas são altamente qualificados, e fico intrigada com essa minha adversativa. A frase, fora do contexto, parece totalmente incoerente. O que ocorre, na verdade, é que o contexto é incoerente.

Afinal, por que um nativo se destaca mais do que um professor com ampla especialização na área? Para pensar em uma possível resposta, cabe pensarmos na nossa língua materna: todos os falantes nativos de português são capazes de ensinar português a estrangeiros? A resposta parece óbvia, ainda mais se pensarmos que, ao selecionar alguém para as aulas de português, a escola em que trabalho optou por profissionais da área. Mas, ao buscar por professores de línguas estrangeiras, a história é diferente.

Além das aulas de português, também dou aulas de espanhol. Sou mestra em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana, com foco em literatura. Porém, não foi apenas uma vez que perdi aulas por causa do mito do falante nativo/professor nato de idiomas. Uma vez, dei aulas em uma dessas várias redes de ensino de idiomas e a coordenação me surpreendeu com a declaração de que teve um professor nativo, mas os alunos não aprendiam nada. Por isso, daquela vez, estavam tentando contratar alguém da área de Letras.

Não falo aqui, obviamente, dos muitos profissionais de Letras que são estrangeiros e que concorrem de forma justa nos concursos públicos e vagas em instituições privadas. Falo sobre essa ideia do senso comum de que é “melhor” aprender um idioma com um falante nativo do que com um brasileiro. Isso vem da crença de que, para falar bem um idioma, deve-se imitar com perfeição a fala de um nativo. E também de que a repetição, imitação, é o melhor método para se aprender. Portanto, se um nativo fala ininterruptamente na minha frente eu posso absorver sua fluência e me transformar também em um nativo. Eu me alimento desse nativo. Até aqui tudo bem, se não pensarmos que o ensino de línguas estrangeiras vai muito mais além dessa antropofagia macunaímica falha.

No meu caso, durante os cinco anos de bacharelado em Letras e dois anos de Licenciatura, tive, entre outras, disciplinas voltadas para o contraste entre as diversas variantes da Língua Espanhola, para as proximidades entre o Espanhol e o Português brasileiro, para as diferentes metodologias aplicadas ao ensino de idiomas e para metodologias aplicadas especificamente ao ensino de Espanhol a falantes nativos de Português brasileiro. Durante esses anos, tive que me esforçar bastante para ser aprovada em avaliações de profissionais da área que julgo do mais alto calão, como Adrián Fanjul, Maite Celada, Fátima Cabral Bruno e Gretel Fernández —grande parte deles, nativa, sim, mas todos profissionais da área.

Ainda que tenha essa formação, vejo que a competência e especialização de um professor de língua estrangeira é, muitas vezes, posta em xeque pelo mito do professor nativo. Acredito que isso também possa se dever, além das razões comentadas, a outra questão mais subjetiva: a vontade de conhecer o estrangeiro através de sua língua. Nesse caso, o professor de língua estrangeira compõe um safári humano, serve à espetacularização do ensino de idiomas. Aquela escola de inglês que apresenta uma dúzia de vinhetas na televisão, todas de qualidade bastante questionável, usa-se amplamente dessa ideia. A professora, loira e nativa, é uma atração a parte na escola. O aluno não aprende apenas o idioma, mas tem uma amostra do que é aquele mundo estrangeiro por meio da professora exótica.

Tenho continuamente desistido de aulas particulares por ver o muxoxo dos alunos quando sabem que apenas passei uma estância no México e que não sou mexicana (quando não é o muxoxo de saber que minha variante é mexicana e não espanhola, mas daí é assunto para outro texto). Felizmente, os editais para concursos públicos conseguem barrar essa visão mercadológica — por enquanto — ao valorizar o currículo do professor. Contudo, nas salas de aula, o professor brasileiro vai ter que se esforçar muito para comprovar a falácia do professor nativo. A ideia está enraizada, essa é mais uma das várias barreiras da profissão. Os nossos diplomas são cada vez mais dispensados nessa sociedade da performance midiática, da fábrica de ilusões, dos zoológicos humanos.

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Adriana Bezerra da Silva

Pesquisadora de Literatura (USP/UNAM/Dickinson College). Membra do Coletivo Infâmia. "Todos somos perigosos" (Hecatombe, 2021). Tradutora, revisora, professora.