Alergia a velhos jabutis

Adriano De Luca
6 min readMar 21, 2017

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Prestes a fazer 5 anos, meu filho João segue descobrindo a vida, falando pelos cotovelos a ponto de me dar enxaqueca, aprendendo a fazer as próprias escolhas, dando sentido à minha vida. E com ele, outra aniversariante é a alergia alimentar. Que teve suas idas, vindas, amainadas e fases mais agressivas. Mas que, afinal, continua lá.

Foram 5 anos de homeopatia, de alimentação MUITO natural, saudável e orgânica, de mergulhos no autoconhecimento, de entender o que significava aquela alergia, como ela se relacionava com o nosso núcleo familiar, 5 anos de médicos e pediatras humanizados muito queridos, com abordagens sérias, responsáveis e, nem por isso, menos amorosas.

Mas algo nos disse que era o momento de buscar outros caminhos, de fazer um novo mergulho na alergia, de entender que diabos ela quer de nós, ou como devemos agir para deixá-la no passado.

Ontem, mesmo relutantes, fomos à primeira consulta alopática, com um alergologista. Não temos medo de ouvir bobagens. Pelo contrário, estamos abertos ao que o universo quiser nos trazer. Cabe a nós, mãe e pai, filtrar o bagaço. As primeiras frases do médico foram:

- Tenho 68 anos de vida, 40 de carreira, 15 de Einstein e 10 de atopia.

Depois disso, ele atendeu uma ligação sobre um sujeito que queria comprar seu imóvel. A ligação durou uns bons 5 minutos. Talvez ¼ da consulta toda. Depois de desligar, escalou os mil degraus do seu pedestal e começou a nos ensinar sobre os principais fatores alergênicos da vida. Em algum momento, ele questionou se nós sabíamos quais eram os principais alimentos inimigos. Não parecia uma pergunta retórica. Parecia uma inquisição católica da Idade Média. Ele realmente queria saber se eu tinha a resposta. Com o coração em pulos, mordendo os beiços de raiva, eu apenas disse:

- Com certeza sei menos que o senhor, mas estou tentando aprender mais.

Seguindo em seu discurso papal, quando ele falou sobre a comida do João, ele se dirigiu à Marcella:

- O que ele come, mãe?

Quando ele falou sobre amaciante e sabão em pó, ele se dirigiu à Marcella:

- Como você lava a roupa dele, mãe?

A Marcella é foda. Tem nervo de aço. É guerreira, e já passou por muita babaquice machista pra se incomodar com o velho jabuti à nossa frente. Ela apenas sorria, e dirigia-se a mim:

- Viu, papai, a comida dele, hein? Viu, papai, a gente lava a roupa do João juntos, né?

O jabuti, coitado, nem deve ter se apercebido disso. Mas são sinais de como ele ficou parado no século em que nasceu. Não nego, toda a sua formação e currículo devem ser brilhantes. Uma pena que a forma com que ele pratica o conhecimento possa ser tão ofensiva e arrogante — e, pior, deixar ainda mais desanimado um paciente triste que não entende sua própria alergia.

Tenho buscado sempre tirar algo de bom das coisas ruins. Sou do tipo que não descarta nada, nem bolo embolorado. Corto as bordas e como o miolo. Isso pode ser ruim, fico carregando pesos na vida sem precisar. Por outro lado, se você olhar sem raiva, sem ódio, sem bufar, vai perceber que sim, você sempre vai encontrar uma lição, um pontinho de luz que te ensine qualquer coisa nova. E é esse pontinho de luz que eu tento guardar no bolso da frente da camisa. E é fato, o velho jabuti falou coisas interessantes — que com um pouco de calma daria pra achar no google, tipo comprar novos travesseiros a cada seis meses, evitar frutas cítricas que podem desencadear crises alérgicas ou que o protopic (pomada) em excesso pode causar envelhecimento precoce da pele. Mas ele encerrou dizendo que poderíamos marcar testes alergênicos na próxima consulta, que em seguida poderíamos dar as vacinas se achássemos interessante e que tinha que agendar e combinar o pagamento com a secretária porque ele aceitava nosso plano mas não passava cartão pro teste ou pras vacinas e “tchau, lindo (pro João), qualquer coisa me liguem, me procurem”, e ergueu-se da cadeira.

Médico de plano. Alopatia. Humanização. Remuneração. Tempo da consulta. Planos abusivos. Indústria farmacêutica. Convênios. Saúde pública. Anos de estudo. Pessoas que não têm plano. Pessoas pobres que têm alergia. Tudo isso passa pela cabeça, como um flash, pra repor os pensamentos na balança, pra colocar cada sentimento no seu lugar, pra medir cada coisa com sua devida régua.

Foi uma noite dura em tempos duros. Disseram que o ano astral começava, regido por Oxóssi. Okê okê, caboclo; tive a sensação que ele subiu no tronco e mirou uma flecha em mim. A flecha rasgou o tempo e o espaço e, antes de entrar na minha testa, ela parou no ar. Eu abri os braços na noite fria e dei um trago do cigarro, como se desejasse que um temporal caísse sobre minha cabeça. Eu deixava a brasa queimar todo o mal. Todo o descrédito. Todas as escaras. As nuvens correram rápido, o pé de amora chacoalhou e a galera do plano astral me mandou um zap, uma mensagem de resignação, de fé, de aceitar o caminho, de acreditar em todo trabalho espiritual que fizemos para encontrar o melhor caminho de cura para o João, Atôtô pai, Odoyá, obrigado, salve os Erês. Foi uma noite dura, e teremos outras assim. E tive a plena convicção de que aquilo fazia parte da caminhada.

Depois de 5 anos olhando pras feridinhas do João, passando de leve os dedos em seus machucados, rezando em silêncio e fazendo reiki, achando que a culpa é minha, que é genética, que eu descarreguei nele uma tempestade emocional depositada no seu DNA no momento da fecundação do óvulo, e que agora toda a neurose e ansiedade trazidas de tantas outras gerações, vasculhadas com constelações familiares, vieram desabrochar na sua pele, na porra da coceira que coça até arranhar, até arder no mar, no mar que ele tanto ama e que em janeiro, com seu sal, o fez chorar de dor, depois de 5 anos procurando pão sem glúten, evitando pizza, negando bolo de festa pro meu filho, sem merda de bolacha, de pirulito, de bala, de salsicha e dessa bosta toda que chamam de comida, depois de 5 anos de hidratantes, pomadas, shampoos e sabonetes neutros, depois de 5 anos secando meu filho depois do banho e correndo pra passar a toalha primeiro nas pernas, que é onde incomoda mais, depois de 5 anos…

“Depois de 5 anos” não é “depois”. É agora, é já. Os 5 anos todos estão presentes num átimo de segundo, aqui do meu lado enquanto escrevo, na minha frente, atrás de mim, entre meus dedos, assustadores como um vulto enorme. Um vulto, porém, que abraça, mas abraça duro, que conforta sem cafuné, que diz: “Vai, luta, acredita. Vai doer, mas vai passar. Caminhe, e vença. Olha pra frente e segue a flecha”.

Talvez a alergia recue, sem mais nem menos, como de outras vezes. Talvez a gente acerte na homeopatia. Talvez a gente amadureça como mãe e pai, e essa paz de espírito reflita diretamente na alergia do João. Talvez chegue o momento de um tratamento diferente de tudo que fizemos até hoje. Talvez a gente teste uma abordagem alopática. Talvez. Mas não é um velho jabuti machista que vai me convencer de nada disso.

Nota: Há alguns anos, eu e Marcella criamos um grupo de apoio a pais e familiares de crianças com alergia alimentar. Tivemos uns dois ou três encontros, com ajuda do Espaço Nascente (obrigado Cacá e Andrea!), muito ricos na troca de experiências e emoções. Se alguém tiver interesse e quiser retomar esse grupo (chamava-se Gafaba), estamos aqui.

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