Do por quê não somos todos iguais

Paula Silva
5 min readJun 2, 2016

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Em junho de 2013, durante o furor das manifestações contra o governo, Rafael Braga foi detido pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, preso e condenado. Ele não quebrou vidraças, nem jogou pedras contra a tropa de choque. Ele andava somente com um frasco de desinfetante na mochila — que foi esquecida junto dos pacotes de maconha e coquetéis Molotov na intenção de incriminá-lo com provas descaradamente forjadas. Como foi condenado, cumpre pena em regime semi-aberto. Nesse período último, ele foi, mais uma vez, vítima da força coercitiva do Estado, sendo abordado e acusado de tráfico de drogas. Rafael foi apenas a uma padaria comprar pão.

Rafael Braga é um jovem negro. E vamos ser honestos: é difícil de imaginar um jovem branco passando pela mesma situação, não é mesmo?

O racismo no Brasil é, sem sombra de dúvidas, institucionalizado. Enraizado em uma população onde a maior parte é formada por negros, é uma opressão cada vez mais constante e uma afirmação de que as coisas não mudaram expressivamente no âmbito social desde o período escravocrata. Negros ainda são minorias nas universidades, nos cargos públicos, nas vagas de CEOs das grandes corporações. As mulheres negras são as maiores vítimas da violência doméstica e feminicídio do que as mulheres brancas, e ainda recebem um salário muito inferior dos que homens brancos e negros exercendo o mesmo cargo. A população negra é a vítima primeira do Estado, carregando o fardo pesado de ser considerada apenas uma estatística de mortes pela Polícia Militar. Além de outros cenários, como a preterição de mulheres negras (elas são mais suscetíveis ao fenômeno do celibato definitivo, ou seja, da solidão permanente nas questões amorosas), a fetichização, objetificação e sexualização dos corpos negros, o preconceito por religiões de matriz africana, apropriação cultural e a situação de imigrantes negros originários de países como o Haiti e a Nigéria.

Diante de tais fatos, a população negra protagoniza o cenário de desigualdade social. São os principais beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família e de ingresso às universidades públicas e particulares, como o ProUni e o SISU (o número de negros nos cursos de graduação cresceu 230% na última década, apesar de a maioria dos estudantes continuar sendo branca e privilegiada), e ainda são a maioria vivendo nas periferias, em áreas de risco e nas ruas das cidades.

E mesmo tudo isso sendo frequentemente exposto pelos Movimentos Negros espalhados pelo Brasil e discutido por expoentes da luta negra — de intelectuais, como a filósofa Djamila Ribeiro, a nomes famosos, como o ator Lázaro Ramos — , vemos ainda um mito sendo espalhado e absorvido pelas pessoas, em especial por aquelas que se distanciam da vivência nessa opressão majoritariamente estrutural: a democracia racial.

Quem leu o livro Casa Grande & Senzala viu nas palavras do sociólogo Gilberto Freyre aquela ideia romantizada de igualdade entre as raças, a paz no convívio entre negros e brancos e a total inexistência do racismo. Já em 1933, ano em que a obra foi publicada, estabelecia-se um norte sobre o que viriam a ser as questões raciais nos dias de hoje. O brasileiro ainda acredita que não existe racismo e que a luta negra não passa de vitimismo, embora sejam exibidos nos veículos de comunicação manchetes agressivas sobre jovens negros mortos pela Polícia Militar e casos de racismo nas universidades públicas e particulares.

O discurso de vitimismo é perigoso e distorcido. É afirmar que o povo negro só “chora por um passado que não teve” (frase essa jogada nas faces dos militantes negros da atualidade) e reforçar a desigualdade com a repulsa à política de cotas raciais, tão necessárias e importantes para o avanço na esfera social. Reivindicar direitos e exigir respeito ao nosso tom de pele, ao nosso cabelo crespo, às nossas origens pobres e aos nossos ancestrais mortos nos troncos não é, definitivamente, fazer-se de vítima. Sermos beneficiados com as cotas em busca de um ensino superior de qualidade para o qual também temos direito não é fazer-se de vítima. Ser alvo da PM não é fazer-se de vítima. Viver frequentemente sozinha e não conseguir guardar nenhuma expectativa em relação ao amor por sempre ser preterida até mesmo pelos homens negros não é fazer-se de vítima. A história negra não pode ser encarada apenas como vitimismo.

As pessoas brancas não estão parando para analisar os fatores históricos que implicam na necessidade de direitos e leis contra os crimes de racismo, bem como o de injúria racial, e não estão se importando com o fato de as maiores vítimas de homicídio serem jovens negros — o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial do ano de 2014, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto à Unesco, apontou que a taxa de jovens negros assassinados por 100 mil habitantes subiu de 60,5 em 2007 para 70,8 em 2012. Não lhes interessa a situação do povo negro em um País onde o racismo é, como já dito anteriormente, institucionalizado.

E é por conta dessa institucionalização do racismo (de forma velada ou não) que o brasileiro aprende desde cedo que ele não existe, e que todos somos iguais; que quem sofre racismo são somente os “africanos da África” (cometendo o equívoco tão comum de unificar várias tribos e etnias pretas em um único lugar, o continente africano), e não os negros brasileiros, pois não são pretos de fato: são “morenos”, “mulatos” e “pardos”, afinal, somos uma mistura de raças.

Voltemos aqui ao Rafael Braga e a todos os exemplos mostrados no início deste texto: vendo a situação que ele e tantos outros pretos passam, sofrendo intervenções militares todos os dias, é realmente correto afirmar que exista essa tal democracia racial? Ver mulheres negras sendo arrastadas em viaturas policiais, vitimadas em maior número pela violência doméstica e pelo feminicídio e preteridas e abandonadas prova que avançamos em relação ao racismo somado ao machismo e a misoginia? Todo o debate agressivo protagonizado pela população branca sobre as cotas raciais e a outros programas sociais em que a população negra é a maior parcela beneficiada mostra que vivemos em paz e harmonia? Que somos todos iguais?

A resposta é: não. Não somos todos iguais.

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