Militância e depressão

Paula Silva
4 min readJun 28, 2016

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Art by GARIBA | ggariba.tumblr.com

Eu escrevi neste texto que é preciso parar com esse pensamento de que mulheres negras são fortes o tempo todo. E, aqui, quero aprofundar essa questão de uma forma bem simples e muito pessoal.

Existe um mundo pré e um outro pós-militância. O mundo pré-militância te faz acreditar que tá tudo certinho, que discutir política, religião e questões sociais são chatas pra cacete, que nada vai acontecer enquanto você anda sozinh@ na rua depois das 22 horas. É uma bolha que você acredita ser impenetrável, tipo aquela redoma monstruosa do Stephen King. Um cobertor quentinho que te protege do frio da realidade.

Aí você procura ler mais, se informar mais, se esclarecer mais, sair da zona de conforto do senso comum. Acontece a desconstrução de conceitos cristalizados desde pequenininh@ (com alguns fragmentos ainda encravados, claro). Vem aquela luz. E junto de tudo isso, você começa a perceber que essa luz é apenas um feixe no meio de um quarto muito escuro. A bolha, que você achava impenetrável como uma redoma, torna-se fina e frágil como feita de sabão.

Pra mim é difícil. Cansativo.

É muito cansativo ver que o mundo não é a coisa mais ou menos saudável que eu achava que era antes da militância. Esse lance de ser forte o tempo todo e empoderada às vezes custa muito: custa a (re)construção de uma auto estima outrora destruída por pessoas e padrões esfregados na cara, custa paciência e, sim, custam lágrimas. Muitas lágrimas. E muita raiva. Acho que já perdi a conta de quantas vezes me peguei chorando com dor de cabeça e no pescoço/ombros de tanta raiva.

Os olhos militantes me fizeram ver o mundo totalmente o contrário daquele mundinho tanto-faz-tanto-fez que eu via antes. Antes eu era uma “morena” que achava política e religião grandes merdas, que julgava as garotas com suas roupas curtas e que era contra a política de cotas raciais. Hoje sou uma negra que arranja discussão calorenta na família por política e religião (apesar de evitar ao máximo!), que admira decotes e pernas de fora, e cotista. É um longo processo reconhecer que o mundo é essa grande merda racista, machista, misógina e LGBTfóbica, e que você precisa se fortalecer e lutar o tempo todo contra si e contra os outros que te apontam dedos podres e preconceituosos.

Mergulhei de cabeça nesse brave new world, e para ser bem honesta, me vi mais triste. Porque me vi revivendo filmes da minha vida que só agora pude perceber que eram situações racistas e machistas. Porque me vi como uma potencial vítima da sociedade, do Estado e do patriarcado. Porque me vi morta muitas vezes.

Cada vez que faço o login no Facebook, me preparo para os textões e imagens que irão me machucar — profundamente ou não. É um exercício diário de paciência e autocontrole (pra que eu não sinta raiva e fique magoada o dia inteiro, ou não acabe caindo nas lágrimas). Facebook é uma rede social muito tóxica às vezes. Vejo muita arrogância, egos inflados e ingenuidade em demasia por parte de militantes, além das intermináveis brigas de vertentes e cusparadas na cara por meio de status curtos escritos durante momentos turbulentos no cenário político e social. A militância na internet é maravilhosa em muitos aspectos, sim. Mas também pode não passar de um campo de guerra, onde (quase) todo mundo sai perdendo — a razão, na maioria das vezes.

Minha baixíssima auto estima não me permite ser aquela preta militante empoderada perfeita. Ser feminista negra me faz ver que o buraco é mais embaixo, e que talvez não haja empoderamento no mundo que me conforte um pouco diante dessa realidade. O racismo está em todos os lugares jogando o povo preto para o escanteio social, julgando jovens portando Pinho Sol na mochila e matando garotos de 10 anos. O machismo está em todos os lugares fomentando a cultura do estupro e fazendo mais e mais vítimas. A misoginia está matando irmãs minhas todos os dias em todos os lugares. Dá pra viver linda e bela e tranquilamente assim?

Posso ser bem sincera? Às vezes, minha única vontade nesses momentos desesperadores é esquecer de tudo novamente. Tipo, limpar a cabeça, esquecer um pouco a militância. Ou fazer “coisas de menina” (perdoem-me por esse termo!), como uma amiga disse esses dias. Tem dia que eu quero só ver bichinhos fofos fazendo coisas fofas. Tem dia que eu quero ver Adventure Time ou algum anime shoujo bem açucarado. Tem dia que eu quero passar horas com algumas amigas falando de pessoas que acho bonitas enquanto vemos uma comédia romântica (coisa que detesto por ser um show de estereótipos toscos). Tem dia que quero escrever fanfic (!!!). Tem dia que quero, simplesmente, esquecer.

Então, eu não sou forte o tempo todo. Nunca fui. Ocupo a minha cabeça com a militância e esqueço que ainda me sinto como uma menina que precisa se sentir em nuvens feitas de algodão. A depressão me deixa muito dependente de ombros para chorar e abraços para me confortar, enquanto a militância exige que eu seja dependente de mim mesma e das minhas forças.

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