Vocês odeiam a estética negra, e isso não é novidade para ninguém

Paula Silva
5 min readFeb 22, 2018

--

Arte por: chicagos.deviantart.com

A última que me deixou com os nervos à flor da pele e fazendo com que eu revisse todas as minhas amizades no Facebook foi a enxurrada de memes e piadas de extremo mau gosto — não, racistas mesmo — sobre a Yasmim Stevam, uma modelo e empresária maravilhosa que, em entrevista ao programa Encontro com Fátima Bernardes, falou sobre um período onde não conseguia se posicionar no mercado de trabalho por conta do cabelo crespo enorme que sempre ostentou. Eu li que o cabelo dela mede 73cm, ou seja, é bem longo, se você imaginá-lo sem volume, como um cabelo liso. Mas ele não é liso. Se fosse, eu duvido que esse auê todo estivesse acontecendo.

De uns dias pra cá, eu desfiz amizade com várias pessoas que compartilharam memes racistas sobre essa moça. E o que mais me decepcionou (embora eu não esteja nem um pouco surpresa) foi o tanto de gente DA MILITÂNCIA (tanto negra quanto feminista) rindo das montagens feitas com o cabelo da Yasmim. Repito: disappointed, but not surprised.

Existe uma coisa chamada conveniência. Isto é, “(…) aquilo que atende ao gosto, às necessidades, ao bem-estar de um indivíduo”, segundo o dicionário do Google. Tem muita gente na militância (muita gente mesmo, sem brincadeira) que é pret@ por conveniência, quando tudo é lindo, quando o box braid colorido tá em dia para dar o famigerado close, quando o assunto racismo não vem à tona, quando o calo não dói. Fora da militância também tem um monte dessa galera que ama @ pret@ quando el@ não tá sofrendo ataques racistas ou não tá falando sobre.

Vocês apostam quanto que as pessoas que estão compartilhando os memes racistas da Yasmim E RINDO DELES são as mesmas que na internet FINGEM que gostam de cabelo crespo, compartilhando frases de empoderamento e aquelas imagens de modelos negras usando afros enormes? São as mesmas que falam: “ai, queria ter um cabelo enorme igual ao seu!” Ou então que chegam no post da amiga preta e mandam um: “Ai amiga que lindo o seu cabelo!”

Muito que bem. Foto: Reprodução

São pessoas que preferem estar inseridas no lado “lacrador” da militância. Por um lado é bom, porque o racismo é extremamente degradante, e se deparar com ele é de desgraçar a cabeça mesmo. Mas por outro lado, esse posicionamento acaba fechando os olhos para as várias situações em que o racismo está inserido; eu não consigo andar com a cabeça erguida e ostentando meu cabelo crespo enquanto um segurança está atrás de mim em uma loja. Eu não consigo fazer as pazes todos os dias com a minha autoestima sabendo que homens e mulheres não me acham bonita por eu não atender os padrões eurocêntricos. Eu não consigo ir com toda a confiança do mundo em uma entrevista de estágio sabendo que se uma mulher branca estiver disputando a mesma vaga que eu, as chances dela conseguir ser aprovada são de 99%.

Nesse texto aqui eu falei sobre situações que passei enquanto eu andava por aí com meu cabelo crespo, enorme e vermelho (dá até saudades só de lembrar; hoje ele está preto e curtinho). Fico pensando se eu ainda estivesse com ele vendo todos esses ataques terríveis a Yasmim. Ele era realmente imenso, e eu amava ele daquele jeito. Eu incomodava. Eu ainda incomodo. A Yasmim e tantas outras pretas maravilhosas com seus cabelões incomodam. E para a sociedade, o nosso bem estar incomoda. A nossa auto estima não importa, “é preta metida, é preta que se acha a bucetuda”. E ainda nos é exigido que sejamos fortes e fiquemos caladas diante do racismo. Para essa galera, a gente pode até ser “bonitinha”, porém há limites.

Esse era o meu cabelo em Dezembro de 2016. Enorme, vermelho, lindo e… Frequentemente repudiado por olhares e comentários maldosos nas ruas. Foto: Arquivo pessoal

Yasmim está sendo chamada de “mimizenta” por ter falado sobre a dificuldade de conseguir um emprego sendo preta e tendo o cabelo crespo trançado. O pessoal (tanto pessoas brancas quanto, vejam só, negras) está gritando nos comentários dos terríveis memes postados que ela tem que se adaptar às regras do mercado de trabalho, que é assim e pronto, e que ela tem que dar um jeito no cabelo para conseguir trabalho. Curioso isso, porque aparentemente essa regra não se aplica a quem tem o cabelo liso batendo na bunda, né?

“Ah mas todo mundo tem que se adaptar a essas regras do mercado de trabalho porque quem tem cabelo colorido tem que pintar de cor discreta pipipi popopó”. Ah não, bicho.

É muita desonestidade e burrice comparar uma situação comum dessas com o racismo que a Yasmim e tantas outras pretas a procura de um trampo passaram, e ainda passam. Deixar de usar cores fantasia no cabelo liso não é a mesma coisa que você ser obrigada a alisar/cortar/prender uma característica natural sua.

Eu me recuso a ilustrar esse post com aquela foto que virou alvo de memes racistas, então trago essa imagem da Yasmim Stevam matando com gentileza nesse post maravilhoso de seu perfil pessoal do Facebook. Imagem: Reprodução

As pessoas que estão compartilhando esses memes racistas não tem a mínima noção da gravidade do problema. Ou até tem, mas se fingem de ingênuos.

Quero lembrá-los que no ano passado foi divulgado que o índice de desemprego no Brasil é maior entre a população negra e “parda”: 14,4% e 14,1%, respectivamente. Entre os brancos, só 9,5%. Vejam esses números e me digam: esse racismo institucionalizado é coisa de gente “mimizenta” como a Yasmim? O cabelo crespo aqui é só um detalhe. Estamos falando de uma opressão enraizada, e nesses últimos dias, está virando motivo de piada.

As pessoas estão rindo do racismo.

Aquela frase que todo mundo fala quando vê nossos cabelos, “queria ter o cabelo igual ao seu”, é a mais mentirosa que eu e tantas pretas já ouvimos na vida. Na real, as pessoas não querem ter nossos cabelos. Nunca quiseram. E a gente tem absoluta certeza disso vendo toda essa merda acontecendo com a Yasmim.

Vocês odeiam nossos cabelos. E já nem fazem mais questão de disfarçar esse racismo. Pelo contrário.

Vocês riem na nossa cara.

--

--