Da ofensa ao silêncio: os efeitos da discriminação racial na infância e na adolescência

Gabrielle Righi, Natália Rosso e Viviane Campos

Ela é jovem, tem 18 anos e entre suas principais características está o cabelo cacheado. Os cachos são, hoje, o orgulho da moça. Mas nem sempre foi assim. O cabelo natural já foi sinônimo de vergonha. Depois de sofrer preconceito racial, a menina percebeu que a única coisa que lhe fazia bem era ser ela mesma, então, passou a usar seus cabelos naturais.

Jéssica Pena enfrentou o racismo pela primeira vez em 2006, quando tinha oito anos. Estudante de uma escola pública da região leste de Santa Maria, ela convivia com colegas que frequentavam o colégio bem vestidas, com o cabelo liso e arrumado. Durante uma atividade teatral da escola, alunos e professora montavam uma peça na qual tinha uma princesa. E ali Jéssica descobriu que jamais seria uma princesa. Para suas colegas, as princesas só poderiam ser as meninas que possuem a pele clarinha e o cabelo escorrido.

Naquele momento a menina ficou sem reação, não sabia que estava sendo alvo de racismo. Apenas ficava se perguntando por que uma menina negra, com o cabelo crespo não poderia ser uma princesa?

Jéssica orgulhosa dos seus cachos

A professora falou que era apenas uma brincadeira, apenas um teatro, e que eu não deveria me sentir ofendida, porque era tudo diversão. Logo depois cheguei em casa e contei para minha mãe. Mas em casa a gente não debatia sobre esse assunto, então, não resolvemos nada. Com certeza se fosse nos tempos de hoje eu faria alguma coisa sim, sem dúvidas! ”, relembra a jovem.

Na sociedade brasileira, o racismo começa em situações comuns do dia a dia, por exemplo, em uma roda de amigos com brincadeiras, chacotas e piadas. Muitas vezes quem pratica é alguém bem próximo à vítima, e acredita não estar ferindo a integridade da outra pessoa pelo fato de ser íntima dela.

Pedro Henrique Nascimento, estudante de Jornalismo

“Eu tinha doze anos e estava voltando do colégio no ônibus cheio. Meu amigo, branco, João e eu conseguimos sentar. Logo depois, um senhor idoso entrou. Eu gentilmente cedi meu lugar, mas ele rejeitou fazendo uma cara de nojo e medo. Em seguido, virou para o lado em que João estava e pediu para que ele se levantasse”.

Atitudes assim podem causar marcas que nem sempre o tempo pode apagar. Durante toda a vida, a vítima carregará consigo os traumas psicológicos e sociais sofridos. No Brasil, assim como em muitos outros países praticar racismo ou qualquer tipo de discriminação racial é crime inafiançável, previsto em lei.

Discurso da menina de nove anos chamou a atenção do mundo para a tensão racial nos Estados Unidos.

Educação básica

Negro, pobre, com renda per capita de até meio salário mínimo e oriundo de família com pouca ou nenhuma escolaridade. Estas são as características de uma criança ou adolescente que está fora do ambiente escolar. Segundo pesquisa realizada pelo Censo Demográfico em 2010, crianças e adolescentes negros com idades entre quatro até 17 anos estão fora das escolas em todo o Brasil.

Há muito tempo o racismo se manifesta no âmbito escolar de forma clara, influenciando no aprendizado e no processo de escolarização dos estudantes, podendo levar à repetência, um dos fatores que ocasiona o abandono escolar.

Conforme a pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) a pedido do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 94,2% dos entrevistados têm preconceito étnico-racial. O levantamento foi realizado em 501 escolas públicas brasileiras, baseado em entrevistas com mais de 18,5 mil alunos, pais e mães, diretores, professores e funcionários das instituições de ensino.

Por vezes, há relatos de pessoas que não se deixaram abater por comentários preconceituosos, principalmente, quando vindo de alguém que deveria ensinar a respeitar o próximo: o professor. Conforme o depoimento da professora de Português e Literatura e também acadêmica de Jornalismo, Adriana Aires, o preconceito de um professor foi utilizado como fonte de motivação para seguir e se tornar uma educadora melhor.

Adriana usou o preconceito como fonte de motivação

“Preconceito é algo que eu não tinha noção até que, dos 12 para 13 anos, tive uma experiência marcante sobre isso. Percebi o ódio contra a cor negra vindo de alguém que jamais imaginaria, um professor da 8ª série, foi chocante. Era uma semana de comemorações em torno da figura de Zumbi de Palmares e ele chegou na sala de aula, visivelmente estressado e disse que nenhum negro prestava, que eram insignificantes e que nem deviam existir, detalhe: eu era a única aluna negra daquela classe de mais de trinta alunos. Foi uma experiência triste, é claro que foi, mas também foi o estopim para que eu me tornasse o que sou hoje. Alguém que aprendeu a devolver com atitudes positivas aquilo que fazem de negativo contra mim. Quis estudar, e ser alguém que tivesse o potencial de debater e ensinar os outros a debater e combater o preconceito, em todas as esferas, mas aprendi a busquei principalmente ser educadora e não me tornar como aquele homem, que jamais poderia fazer parte da educação”.

O papel da escola no combate ao racismo

Para abordar melhor este assunto é preciso começar logo cedo na infância. Considerada a fase ouro, é na infância que as crianças começam a ter seu caráter moldado por seus pais, responsáveis ou professores. O adulto passa a cumprir um papel fundamental na formação da criança, pois se torna responsável por ensinar um outro cidadão a respeitar as diversidades da vida.

Em relação à escola é preciso trabalhar questões relacionadas ao combate ao racismo desde as séries iniciais, conscientizando os pequenos sobre a importância do respeito ao próximo e das contribuições que o povo negro trouxe para formação do país.

Muitas vezes os professores acabam acobertando apelidos, piadas, violência física ou até mesmo semelhanças de cunho racista feitas por alguns estudantes ao invés de debater o assunto e ensinar medidas para acabar com o preconceito. Quando a comunidade escolar omite o fato e não presta apoio ao aluno a tendência é que o mesmo acabe se isolando do restante dos estudantes.

As escolas são grandes centros de aprendizagens e podem trabalhar a diversidade através de textos, contos, imagens, rodas de conversa, música e até mesmo brinquedos e mostrar que as diferenças contribuem para o enriquecimento pessoal de cada indivíduo. Os estudantes negros devem se sentir seguros de suas origens e cultura sem medo de serem julgados.

A equipe de reportagem conversou com representantes de escolas públicas e particulares de Santa Maria sobre o registro de casos de racismo nesse locais.

Numa escola de rede particular que pediu para não ser identificada, já aconteceram casos isolados e não frequentes de racismo. Segundo uma professora da escola, neste ano um caso foi registrado. A faixa etária em que o preconceito acontece com mais frequência é de seis a nove anos e, de acordo com a professora que não quis se identificar, as crianças das séries iniciais geralmente reproduzem o que ouvem em casa, da família.

Ela diz que a escola realiza palestras sobre o racismo durante o ano letivo, na tentativa de combatê-lo. Em sala de aula as professoras, de acordo com sua metodologia, trabalham livros que falam sobre a temática e trabalha sobre a cor de cada pessoa.

“Existe uma orientadora educacional que realiza conversas coletivas e individuais com os alunos para investigar onde teve o início do problema e tentar resolver da melhor forma possível” — revela a educadora.

Também existe uma preocupação com tema na Escola Estadual Margarida Lopes, no bairro Camobi. De acordo com o vice-diretor Valmir Beltrame, existe uma grande preocupação com as relações e com a convivência dos alunos. Segundo ele, o racismo é tema transversal em todas as disciplinas e nos anos iniciais, sendo sempre trabalhado quando a temática aflora em sala.

“Possuímos vários projetos nos anos iniciais, especialmente a partir da inserção do PIBID em nossa escola. Da mesma forma, sempre que possível o tema é trabalhado quer nas aulas regulares, quer nos projetos de Hora do Conto, Educação Física, Artes e outros”, explica Beltrame.

Segundo o diretor, a comunidade escolar acredita que é preciso mobilizar a sociedade para uma cultura de paz e que essa cultura precisa ser difundida.

Da rejeição às crianças negras à lei que obriga o estudo da cultura afro-brasileira

Em março de 2015, o cadastro de adoções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou que 37,25% dos candidatos a pais — 11.316 do total de 30.378 — só aceitariam adotar as crianças brancas. Dos adultos inscritos no cadastro, 14.259, ou 46,94%, fazem questão de escolher a cor da pele do futuro filho.

Segundo o cadastro de adoções, a etnia ainda é um fator predominante na hora de adotar uma criança. Na região Sul, metade dos pretendentes à adoção só querem uma criança se ela for branca.

De acordo com os dados do CNJ, a maioria das crianças e adolescentes são negras ou pardas — 67%, ou 5.461 de um total de 7.949. Estão disponíveis para adoção 2.411 crianças brancas (30,33%) do total. Também aguardam uma família, 41 (0,52%) amarelas e 36 (0,45%) indígenas.

Essa questão também pode ser observada nos índices de evasão escolar, já que a maioria das crianças e dos adolescentes que estão fora da escola são do sexo masculino e negra. Conforme dados divulgados pelo Censo Demográfico, foi identificado que 7,9% das crianças com dez anos de baixa renda familiar que estavam fora da escola já trabalhavam e adolescentes com faixa etária de 11 a 14 anos representavam 15% do grupo que largou o ambiente escolar para começar a trabalhar para ajudar nas despesas.

Há 13 anos, a Lei 10.639/03 torna obrigatória na matriz curricular a reflexão das diretrizes curriculares para educação das relações étnicos-raciais e o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana desde o ensino fundamental até o médio. Assinada pelo então presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva a lei visa uma educação voltada à pluralidade étnico-racial e ao respeito aos direitos de todos.

Junto da lei também foi instituído o dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares. Muitos livros de história já trabalham de acordo com a lei.

Unicef criou cartilha com as dez maneiras de contribuir para uma infância sem racismo

1. Eduque as crianças para o respeito à diferença. Ela está nos tipos de brinquedos, nas línguas faladas, nos vários costumes entre os amigos e pessoas de diferentes culturas, raças e etnias. As diferenças enriquecem nosso conhecimento.

2. Textos, histórias, olhares, piadas e expressões podem ser estigmatizantes com outras crianças, culturas e tradições. Indigne-se e esteja alerta se isso acontecer — contextualize e sensibilize!

3. Não classifique o outro pela cor da pele; o essencial você ainda não viu. Lembre-se: racismo é crime.

4. Se seu filho ou filha foi discriminado, abrace-o, apoie-o. Mostre-lhe que a diferença entre as pessoas é legal e que cada um pode usufruir de seus direitos igualmente. Toda criança tem o direito de crescer sem ser discriminada.

5. Não deixe de denunciar. Em todos os casos de discriminação, você deve buscar defesa no conselho tutelar, nas ouvidorias dos serviços públicos, na OAB e nas delegacias de proteção à infância e adolescência. A discriminação é uma violação de direitos.

6. Proporcione e estimule a convivência de crianças de diferentes raças e etnias nas brincadeiras, nas salas de aula, em casa ou em qualquer outro lugar.

7. Valorize e incentive o comportamento respeitoso e sem preconceito em relação à diversidade étnico-racial.

8. Muitas empresas estão revendo sua política de seleção e de pessoal com base na multiculturalidade e na igualdade racial. Procure saber se o local onde você trabalha participa também dessa agenda. Se não, fale disso com seus colegas e supervisores.

9. Órgãos públicos de saúde e de assistência social estão trabalhando com rotinas de atendimento sem discriminação para famílias indígenas e negras. Você pode cobrar essa postura dos serviços de saúde e sociais da sua cidade. Valorize as iniciativas nesse sentido.

10. As escolas são grandes espaços de aprendizagem. Em muitas, as crianças e os adolescentes estão aprendendo sobre a história e a cultura dos povos indígenas e da população negra; e como enfrentar o racismo. Ajude a escola de seus filhos a também adotar essa postura.

Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Especializado II, do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Franciscano, sob a orientação da professora Rosana Zucolo.

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