Jornalismo impresso: mais cor nas páginas, menos cor nas pautas

Pesquisa realizada em Santa Maria revela invisibilidade do negro no jornalismo impresso local

Bruna Guehm, Fernanda Gonçalves e Victória Papalia

Devido ao surgimento da internet, os outros veículos de comunicação têm alterado o seu modo de produção a fim de não sucumbirem perante às potencialidades da grande rede. O jornal impresso, por exemplo, passou a ter páginas coloridas, com diagramação mais atrativa, incluiu novas segmentações, como o entretenimento, sem falar nas possibilidades de interação com o leitor e na convergência midiática, com as versões online. Em outras palavras, o jornal impresso abriu espaço para novas formas, assuntos, e ainda reservou algumas páginas para a coluna social: os moradores da comunidade agora têm um espaço próprio.

A pergunta é: toda essa mudança do jornalismo impresso cumpre a função social e representa a comunidade local? Mais especificamente: as cores diferentes estão presentes apenas na impressão das páginas do jornal ou todas as raças são representadas no veículo de comunicação?

Com o objetivo de traçar um diagnóstico sobre a visibilidade do negro na mídia local, as repórteres desta matéria analisaram 72 exemplares de jornal, correspondentes a seis meses de publicações de um dos veículos mais populares do município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Dentre as edições analisadas, não havia pautas sobre a temática étnico-racial negra.

A representação do negro aparece apenas 52 vezes, somente através de fotografias em sua maioria, na editoria de esporte que representa 38% da visibilidade constatada. Em número menor, ela também aparece em outras editorias, como a de variedades (13,8%) e geral (11,5%), conforme o gráfico.

O resultado é assustador, considerando que o jornalismo forma opiniões, e é reconhecido como a fonte de informação mais confiável pela maioria dos brasileiros, de acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia de 2015.

A militante Zeni não se sente representada na mídia local

A advogada Zeni Siqueira dos Santos, 23 anos, confessa não ter se sentido representada pelo jornalismo impresso santa-mariense enquanto morava na cidade. A advogada cursou Direito em Santa Maria e militava no feminismo negro. Ela mudou-se há pouco para Caçapava do Sul, em virtude da posse do marido, também negro, como Procurador Municipal.

Segundo a advogada, os principais jornais impressos de Santa Maria reforçam o racismo, representando os negros de forma estereotipada. “Não é necessário mais que uma verificação empírica para notar a majoritária ausência do homem e da mulher negra nos jornais, principalmente, quando diz respeito a lugares de evidência positiva. Por exemplo, poucas vezes vemos negros sendo entrevistados para comentar sobre questões políticas, sociais e econômicas ou, então, praticamente não há imagens de mulheres negras em cadernos especiais”, afirma.

Para Morgana Machado, jornalista e mestre em Ciências Sociais pela UFSM, a questão da invisibilidade do negro na mídia começa pelo lastro histórico.

Morgana comenta origem da invisibilidade

“Quando a gente percebe um pouco dessa historização da trajetória e da memória negra no Brasil, a gente vai entender o porquê de determinadas políticas hoje em dia, que vão preconizar e tentar trazer esse negro para um cenário de visibilidade”, diz. Morgana refere-se aos anos de exploração enfrentada pelos negros no país, e no processo de emancipação que não garantiu boas condições para eles estabelecerem-se de fato.

Rejeitado e desamparado após o fim da escravidão, o negro sofreu para igualar-se ao branco e conquistar boas oportunidades. “Essa invisibilidade só é mais saliente na mídia. Ela é um resquício do que a sociedade apresenta, e vai representar o que acontece nela de alguma forma. A mídia vai tentar traduzir esses olhares. O que a gente vê? Uma não presença do negro. A não ser em algum evento cultural”, alega.

A mestre ainda levanta questionamentos sobre a posição do jornalista nesse cenário. “Como esse negro não está inserido na sociedade como deveria, o que se deve noticiar? Inevitavelmente ele não tem presença midiática, porque lhe é vedado direitos. Como vamos trabalhar essa inserção na mídia se não tem a inserção social para sustentar?”.

As pautas sobre o negro no jornalismo

Editor reconhece falta de espaço para discutir a cultura negra

O editor do jornal A Razão, de Santa Maria, José Mauro Batista, reconhece a falta de espaço, visibilidade e sensibilidade do jornalismo local para promover discussões acerca da cultura negra.

“A gente sabe que ainda há racismo na sociedade, por isso, apoia essas iniciativas culturais, políticas e acadêmicas que tratam a questão do negro como, por exemplo, a inserção das cotas nas universidades. Nós tentamos abordar o tema de maneira que a população tenha acesso a esse conteúdo e possa entender como e por que existem essas estratégias”, explica.

Segundo o editor, um dos motivos pelo qual o jornal não consegue dar maior visibilidade para as temáticas do público afro nas pautas, é a ausência de negros nas redações jornalísticas. “Eu concordo que falta mais visibilidade. Talvez, em algumas pautas, haja a projeção de estereótipos ao negro e isso pode se atribuir à falta de jornalistas negros, a fim de sugerir pautas com um olhar mais sensível para essa etnia”, alega.

Batista afirma que o jornal A Razão “procura trabalhar de forma igual para todos e buscar espaço seja na cultura, por meio de matérias sobre os projetos desenvolvidos pelo movimento ou nos esportes. Porém, às vezes, falta interesse dos movimentos em passarem suas pautas para os jornais socializarem as ações”, diz. Por outro lado, também se observa o desinteresse do jornalista pela temática, uma vez que não vai a campo para exploração do assunto e aguarda as informações na sala de redação. “A gente vai ‘cru’ para a matéria e as informações não chegam até a gente”, justifica.

Já a jornalista, Tatyana Py Dutra, do Diário de Santa Maria, acusa o agendamento da mídia pela invisibilidade do negro no jornalismo diário.

Para editora, jornalista precisa sair da zona de conforto para propor novas discussões

Segundo a profissional, o jornalismo é movido pelo factual e a escolha por pautas étnico-raciais fica restrita ao agendamento.

“O que melhoraria o desempenho do jornalista é fugir desse “cacoete” de se acomodar com o agendamento. Às vezes, é necessário propor novas discussões e dar visibilidade e voz àqueles que não tem”, lembra a jornalista.

Para Tatiana, dar espaço às pautas sociais e ao negro nas redações é o primeiro passo para aumentar a visibilidade do grupo na mídia e construir uma realidade mais igualitária. O papel do jornalismo é propor a discussão e reflexão dos leitores, levá-los ao entendimento sobre questões ainda sensíveis para a sociedade, como as cotas e o racismo. “Posso citar o exemplo das cotas. Esclarecer o porquê das cotas, quanto por cento delas está sendo reservado para cada etnia, para deixar claro que não existe roubo de vagas por parte dos negros e outras etnias”, esclarece a jornalista.

Ainda de acordo com o editor José Mauro Batista, para o jornalismo colaborar na construção de uma realidade mais igual e democrática, o investimento deve partir da educação. “Poucos negros têm acesso às universidades. Agora, com a inserção de cotas, isso pode mudar um pouco, porém tem que ‘pôr em cheque’ a questão de quantos continuam na faculdade, como eles se mantêm. E também colocando o negro na universidade, e nos cursos de jornalismo, talvez ele tenha uma maior possibilidade de ampliar essa realidade”, afirma Batista, com respeito à possibilidade de mais pautas étnico-raciais com a inserção do negro nas redações jornalísticas.

“Quando você cresce vendo na TV que as pessoas bem-sucedidas de maneira geral são brancas, quando um negro chega num patamar de apresentar um jornal na TV aberta a gente tem que valorizar e reconhecer. Quando a gente consegue eleger num país de maioria branca, a segunda miss negra da história, a gente tem que valorizar e reconhecer. Não deixar esse tipo de realização virar uma nota de rodapé”, ressalta Tatiana Py Dutra. Noticiar sobre as conquistas do negro é valorizar o grupo e mostrar a real dimensão do que isso representa numa sociedade ainda racista.

Jornalismo “branqueado”

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao ano de 2015, a população negra recebe 59,2% do rendimento recebido pelos trabalhadores da cor branca. Em 2003, esse número não chegava à 50%.

Embora a situação econômica dos negros tenha melhorado, ainda há um abismo entre brancos e negros no mercado de trabalho. Tal cenário de discriminação social também representa o mercado jornalístico. O estatuto da Comissão de Jornalistas pela Igualdade (Cojira), de São Paulo, afirma que “as empresas de comunicação não são uma ilha de igualdade nesse mar de discriminação”, e tal situação tem reflexo nos temas que são tratados pela imprensa.

Em 2001, jornalistas negros do Brasil e de outros lugares no mundo enfrentaram dificuldades para veicular reportagens e dar visibilidade às suas ações no Fórum Social Mundial, no Rio Grande do Sul, o que resultou na criação do Núcleo de Jornalistas Afro-brasileiros. O grupo trabalha com questões de raça e etnia nos meios de comunicação e já foram destaque no Brasil com o Seminário O Negro na Mídia — A Invisibilidade da Cor, o que motivou a parceria com a ONU Mulheres e com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

“Não senti dificuldade de me inserir no mercado de trabalho. Mas, já aconteceu, no passado, de eu descobrir que fazia a mesma função de outra pessoa, mas ganhava menos”, conta Tatiana Py Dutra. A jornalista também enfrentou discriminação por parte das fontes. “Você tá entrando no camarim de um show nacional, de um artista e o segurança do artista não acha que você é jornalista, não com esse cabelo e com essa cor”, lembra.

Direitos humanos e diversidade cultural

As reivindicações de uma minoria refletem os diversos movimentos culturais criados para tentar suprir as demandas desse público. A partir disso, é possível criar novas políticas, programar novos olhares, suscitar discussões e, por fim, dar visibilidade a uma grande parcela invisível da sociedade. A doutora em filosofia moderna, Solange Dejeanne, comenta sobre o multiculturalismo em sua pesquisa acerca da combinação de liberdade igualitária e ausência de diferenciação.

Segundo Solange, há a necessidade de mais pensamentos e direitos coletivos, ainda em falta no país. “No Brasil não temos o multiculturalismo, mas temos o que vem junto, que é a luta pelos diferentes, aqueles que se identificam como tais”, diz. Além disso, para ela aplicar o multiculturalismo seria a chance de esclarecer conceitos e ideias, sem discriminar as diferenças, mas entender que elas existem — compreender e aceitar que reconhecer o ser humano está acima de tudo.

Para a filósofa, a mudança está em como reconhecer iguais e diferentes perante os diversos grupos culturais. Nesse contexto, a ideia de identidade pode modificar a esfera social contra a discriminação. “A identidade, para o filósofo, é forjada dialogicamente, ou seja, eu me importo muito com o pensamento dos outros sobre a minha pessoa. E esse olhar, quando distorcido, é introjetado em minha identidade, o que me leva a crer que reconhecimento igualitário no plano social é a solução para uma sociedade democrática saudável e sem discriminação. Nós não somos iguais, mas temos que nos pensar iguais”, afirma Solange.

Com isso, Solange ressalta que a igualdade deve ser pensada num plano abstrato, mas não menos importante, pois não deixa de ser uma reivindicação moral. Para ela, a mídia tem um papel fundamental na construção de uma realidade mais igualitária, pois tem o dever de promover e abordar questões de interesse público. Logo, explorar pautas raciais é uma maneira de esclarecer e dar visibilidade a um público que ainda é discriminado pela sociedade.

Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Especializado II, do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Franciscano, sob a orientação da professora Rosana Zucolo.

--

--

AgênciaCentralSuldeNotícias Noticiência

Somos uma Agência Experimental de Notícias e um blog de Ciência vinculados ao curso de Jornalismo da Universidade Franciscana, em Santa Maria, RS.