Darwinismo Social Disfarçado de Meritocracia

Como o darwinismo social, mascarado como meritocracia, e se manifesta na lógica neoliberal e suas implicações para a sociedade contemporânea?

Ezra Ahava
4 min readJun 5, 2024

No cerne da ideologia neoliberal, a meritocracia é frequentemente apresentada como um sistema justo onde o sucesso é alcançado por meio do esforço individual e das habilidades. No entanto, uma análise mais profunda revela que essa visão é um disfarce para um darwinismo social que legitima desigualdades estruturais e perpetua a exclusão social.

Como o darwinismo social, mascarado como meritocracia, e se manifesta na lógica neoliberal e suas implicações para a sociedade contemporânea?

O darwinismo social é uma aplicação errônea das teorias de Charles Darwin sobre a seleção natural ao campo das relações humanas e sociais. Surgida no século XIX, essa ideologia defende que os mais “aptos” economicamente devem prevalecer sobre os “menos aptos”, justificando a desigualdade social como algo natural e inevitável​​. No contexto neoliberal, essa lógica é reembalada como meritocracia, onde o mercado supostamente premia aqueles que se esforçam e são competentes, enquanto pune os preguiçosos e incompetentes.

A meritocracia, como ideal, promete que qualquer indivíduo pode alcançar o sucesso por meio do esforço pessoal. No entanto, essa narrativa oculta as desigualdades estruturais e as vantagens herdadas que favorecem certos grupos sobre outros. Segundo Berardi — ver referências — , o neoliberalismo utiliza o darwinismo social como uma utopia bioeconômica, onde a seleção natural é reinterpretada para justificar a eficiência econômica e a eliminação dos mais fracos​​. Essa visão perpetua a ideia de que a pobreza e o fracasso são resultados de falhas individuais, desconsiderando os fatores sociais e econômicos que limitam as oportunidades para muitos.

O neoliberalismo, ao promover a ideia de um mercado autorregulado e de mínima intervenção estatal, reforça a lógica do darwinismo social ao desmantelar sistemas de proteção social e promover a competição desenfreada. Políticas de austeridade, por exemplo, são justificadas moralmente como necessárias para a responsabilidade fiscal, mas na prática aumentam a desigualdade e a precarização da vida para os mais vulneráveis .

Berardi argumenta que o darwinismo social no neoliberalismo não visa criar uma raça superior, mas sim maximizar a eficiência econômica, muitas vezes às custas dos mais vulneráveis. A lógica da seleção natural é reconfigurada para se alinhar com a eficiência econômica, onde as elites econômicas se beneficiam de um sistema projetado para mantê-las no poder​​ .

A cultura da autoajuda e a promoção do “empreendedor de si” são manifestações contemporâneas dessa lógica meritocrática. Autores como Ayn Rand glorificam o indivíduo autossuficiente que triunfa sobre as adversidades sem a ajuda do Estado, promovendo uma moralidade que despreza a solidariedade e a justiça social . Esse ideal é crítico para a manutenção do neoliberalismo, pois desloca a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso para o indivíduo, obscurecendo as desigualdades estruturais.

Essas práticas e ideologias são promovidas como formas de realização pessoal e sucesso, mas, na verdade, servem para deslocar a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso do sistema para o indivíduo, obscurecendo as desigualdades estruturais e promovendo uma moralidade que despreza a solidariedade e a justiça social.

  • A literatura de autoajuda, amplamente popularizada por autores como Dale Carnegie e Norman Vincent Peale, promove a ideia de que o sucesso e a felicidade são resultados diretos de atitudes mentais positivas e do esforço pessoal. A mensagem central é que qualquer um pode superar obstáculos e alcançar o sucesso se apenas acreditar em si mesmo e trabalhar duro o suficiente. Esse discurso, no entanto, ignora as desigualdades sistêmicas e as barreiras sociais que muitos indivíduos enfrentam, transformando a falha em uma questão de falta de caráter ou esforço​​​​.
  • O conceito do “empreendedor de si” é uma extensão da cultura de autoajuda, onde cada indivíduo é visto como uma pequena empresa que deve ser continuamente gerida, aprimorada e valorizada. Essa ideologia é promovida não apenas pela literatura de autoajuda, mas também por políticas públicas e programas educacionais que enfatizam o empreendedorismo como solução para problemas econômicos e sociais​​.

Autores como Ayn Rand, em obras como “A Revolta de Atlas”, glorificam o indivíduo autossuficiente que triunfa sobre as adversidades sem a ajuda do Estado. Rand e seus seguidores veem a intervenção estatal como uma forma de escravidão e defendem a liberdade individual acima de tudo. Essa visão promove uma moralidade que valoriza a competição e a autossuficiência enquanto despreza a solidariedade e o apoio mútuo​​.

A promoção do “empreendedor de si” e a cultura da autoajuda são críticas para a manutenção do neoliberalismo. Ao deslocar a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso para o indivíduo, essas ideologias obscurecem as desigualdades estruturais e sociais. As barreiras sistêmicas, como racismo, sexismo, e discriminação econômica etc., são ignoradas, e o fracasso é visto como uma falha pessoal​​.

Berardi e outros críticos argumentam que essa lógica cria uma subjetividade inflada, onde os indivíduos são levados a acreditar que podem controlar todos os aspectos de suas vidas e destinos. Quando inevitavelmente falham, a culpa recai sobre eles mesmos, resultando em sentimentos de inadequação, fracasso e, muitas vezes, depressão. Essa individualização do sucesso e do fracasso serve para despolitizar questões sociais e econômicas, impedindo a formação de solidariedades e movimentos coletivos que poderiam desafiar as estruturas de poder existentes​​.

A meritocracia, tal como promovida pelo neoliberalismo, é um disfarce sofisticado para o darwinismo social. Ao ignorar as desigualdades estruturais e promover a competição desenfreada, essa ideologia justifica a exclusão social e perpetua a injustiça. É essencial criticar e desmascarar essas narrativas para promover uma sociedade mais justa e equitativa.

Referências:

BENARDI, F. F. (1900). FUTURABILIDAD La era de la impotencia y el horizonte de la posibilidad. Caja Negra Editora.

Berardi, F. (2003). La fábrica de la infelicidad: Nuevas formas de trabajo y movimiento global (M. A. Hendrickson, Trad.). Traficantes de Sueños.

Berardi, F. (2019). Depois do futuro. Ubu Editora.

Berardi, F. (2020). Asfixia: Capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. Ubu Editora.

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Ezra Ahava

Escrever para superar desafios, resistências internas e diversas patologias psicossociais