Falso Tradicional

Aldrey Olegario
7 min readJul 17, 2022

Tradicional, aquele que se estabelece como o padrão. Entre os mais variados tipos de tradicionais o Jornalismo Tradicional. Dito dessa forma, ou com variações como Grande Mídia, Grande Imprensa e em menor grau dada como modelo de Jornalismo Empresarial. A grande entidade que tudo mostra, tudo vê, responsável por expor os fatos de forma imparcial e objetiva, mas que ao mesmo tempo quando se referem a ela permite a entrada em um campo incerto das adjetivações imprecisas: o grande, o tradicional. Do outro do jogo, a palavra não faz curva: jornalismo antirracista, jornalismo feminista, jornalismo comunitário, jornalismo independente. O principal compromisso dessas correntes jornalísticas é percebido logo de cara.

O campo da imprecisão pode ser estratégico. É mais simples argumentar e questionar um assunto quando ele é colocado com termos específicos. No meio científico, por exemplo, pesquisas que buscam compreender uma espécie como um todo são feitas através de análises de um pequeno grupo, em uma escala menor. Assim a discussão fica mais delimitada. Mas e quando essa discussão é trazida de forma a tratar de tudo e de todos? A continuar no exemplo do meio científico, podem existir espécies de uma planta com comportamentos diferentes ao variar o ambiente ou outras condições de desenvolvimento. E isso é determinante para o resultado final de uma pesquisa nesta área. No jornalismo o caminho não difere completamente, quanto mais situado e localizado é olhar mais objetiva se torna a apuração. As especificidades não se perdem no todo. Elas não podem se perder.

Mas estamos a tratar do Grande Jornalismo. Ele por sua vez teria o poderio de analisar o todo de forma imparcial e objetiva. É o tradicional que está exercendo seu papel desde 1900 e bolinhas. E como questionar algo do campo do grandioso? Como questionar a tradição? Tentar fazer isso é quase como se alguém entrasse na cozinha da avó em um almoço de domingo e tentasse dizer a ela que a receita está errada. A resposta poderia ser algo como “mas foi assim que sempre fizemos, sua bisavó passou para mim e estou passando para você”. Esse é um caso de tradicional restrito.

No jornalismo o buraco é bem mais embaixo. Aqui, o tradicional tem impacto em toda uma coletividade. O que seria uma discussão de temperos é uma discussão de narrativas, identidades e histórias de pessoas. O dado como tradicional estabelece narrativas tradicionais, com abordagens, recortes, vozes, e objetivos tradicionais que são passados de repórter para repórter nas redações e universidades. Para se ter uma dimensão do que isso significa, ao tratar da responsabilidade inerente ao comunicador, Mario Kaplún, educomunicador, confere ao emissor seu caráter político e ideológico e o discurso desse comunicador conexo a áreas da história, sociologia e a princípio a pedagogia. Isto é, a comunicação não tem um fim em si mesma é uma ferramenta que possibilita a construção e reconstrução de um imaginário social.

Entender como surge esse tradicional possibilita compreender que uma das principais características desse jornalismo empresarial: alcance e impacto significativo na mídia e no debate público. O “grito” que ecoa mais alto e mais vezes consegue fazer a ideia de norma se estabelecer. E para fazer isso permanecer um mundo midiático como o atual, onde a produção e disseminação de informações é sistemática e em grande escala, exige bem mais do que apenas o anseio de fazer valer o compromisso social do jornalismo, exige recursos.

Se voltarmos brevemente ao aparecimento da imprensa no país no século 19, para além das informações, uma de suas características era estar ligada a interesses dominantes, esses particularmente tradicionais. Uma vez que o aparecimento da imprensa se dá dentro da lógica colonial, no qual o sistema dominação é refletido em todos os âmbitos da socialização: inclusive na comunicação. A exemplo, atender a necessidades e interesses administrativos dos Estados e a modelos comerciais. Isso nos primórdios da imprensa, se olharmos para um cenário mais próximo ao atual — ao analisar a dinâmica do rádio e da televisão — , é possível perceber que apesar do discurso de neutralidade, os interesses privados ainda persistem.

Ao contrário do que pode se ter no imaginário da popular, as emissoras não são donas de seus canais e nem podem agir de acordo com o que lhes favorece mais sem restrições. Para que emissoras como a Globo, SBT ou Record possam exigir são necessárias concessões públicas, que nada mais são autorizações do Estado para que uma emissora ocupe aquele espaço de difusão. As concessões estão descritas no artigo 21, inciso XII, da Constituição: “Compete à União a exploração, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, I) os serviços de radiodifusão sonora e de imagens”.

A forma como as concessões públicas se estabeleceram no Brasil foi um pouco confusa. Como descreve o relatório da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação), nos anos 1956 o mercado da radiodifusão no país passava a ser cada vez mais atrativo aos investidores. Além de ainda não se ter uma regulação nesse período, o próprio interesse Estatal em em participar do setor favorecia o interesse privado em se estabelecer no mercado das comunicações. O jornalista Samuel Weiner explicava em 2008 que “Como os recursos obtidos com as vendas em bancas e assinaturas eram insuficientes, os meios de comunicação precisavam valer-se de outras fontes de renda, utilizando como moeda de troca seu peso junto à opinião pública”. Nesse panorama, o interesse público e privado se confundiam e com o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), de 1962, empresários que apostaram no modelo das comunicações conseguiram alçar cargos políticos de relevância no país.

E as coisas não param por aí, a escala do setor empresarial na mídia brasileira ainda conta com a fundação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) resultado da agregação do setor empresarial contra a presença do Estado nas radiodifusão para demonstrar a força do setor no Congresso derrubando vetos feitos que eram feitos ao CBT . De lá para cá outras formas de regulamentarização do setor foram feitas a Constituição por exemplo estabelece em seu artigo 220 a proibição de monopólios: “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. O que implicaria em um consenso a ideia de democracia. Contudo, a concentração midiática é realidade no Brasil, ela faz parte da história de formação do setor. No qual o poder de influência sobre a opinião pública fica restrito a poucos grupos familiares.

De acordo com um levantamento de 2018 feito pela Mídia Dados Brasil, quando se fala da TV, das 368 concessões geradoras, 298 delas estão no controle de apenas 4 dos maiores grupos televisivos do país: Rede Globo, Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), Rede Record de Televisão e Rede Bandeirantes de Televisão. Na prática, 80,98% da comunicação televisiva do Brasil está na mão de apenas 4 famílias: Marinho, Abravanel, Macedo e Saad. Em um país de extensão territorial e vasto contingente demográfico como é o Brasil, é difícil acreditar que apenas 4 famílias consigam transmitir toda a pluralidade e especificidades de forma neutra e imparcial. Trata-se aqui, da concentração de um poder de influência baseado em uma lógica e valores empresariais. E há quem reme na contramão desse modelo.

Ao discutir as noções do que significa poder Gramsci descrevia que para resistir ao poder da classe dominante era necessário confrontar seu domínio cultural e liderança com uma visão alternativa e coerente a respeito do modo como a sociedade poderia ser. Ao trazer essa discussão para o âmbito do jornalismo, desafiar a hegemonia dos valores do jornalismo tradicional significa ao mesmo tempo trazer uma nova proposta ao que se pretende ter como modelo de jornalismo que pretende ser mais representativo em termos de abranger as diferentes especificidades do âmbito social. É o que vem fazendo a chamada mídia alternativa.

Alma Preta, Az Minas, Reload, É Nois, Agência Mural, Ponte Jornalismo, The Intercept Brasil, Mídia Ninja, Geledés, entre vários outros. Cada um com seu foco de pesquisa delimitado buscam ir contra a correnteza das narrativas tradicionais em um modelo de jornalismo situado, que conta os fatos com o olhar de dentro para fora. Entre as características desse modelo estão a autogestão e a pequena escala. E para que não se caia em uma mesma tecla em escala menor, John D. H. Downing destaca que para prevalecer o caráter democrático dessas mídias é necessário que a democracia interna seja uma resposta constante às tendências e aos movimentos democráticos da sociedade em geral. Ou seja, para as mídias alternativas também se estabelece o mesmo princípio que é feito à mídia tradicional: não deixar que a visão de poucos sobressaia ao interesse público, ainda que esse público seja mais específico.

Com as redes sociais, a mídia alternativa tem alcançado ainda mais espaços no debate público e consegue amplificar sua proposta para diferentes públicos. Com isso, outras narrativas podem ser construídas e o espaço midiático pode ser utilizado de forma mais democrática — onde o público não fica restrito à ideia de diversidade de ideias de apenas 4 famílias.

*trabalho para a disciplina CJE0633 Jornalismo popular e comunitário

Bibliografia

Pensar e comunicar a América Latina. MELO, José Marques de Melo. GOBBI, Maria Cristina. VENTURA, Mauro de Souza Ventura. “Mario Kaplún: Como educar o comunicador?”. p.229–48.

Relação entre a história e a imprensa, breve história da imprensa e as origens da imprensa no Brasil (1808–1930). OLIVEIRA, Rodrigo Santos. FURG.

O Código Brasileiro de Telecomunicações e a Política de Expansão da Radiodifusão: a Ação do Empresariado como Grupo de Pressão. PIERANTI, Octavio Penna. MARTINS, Paulo Emílio Matos. InterCom. 2006.

Aspectos estruturais do sistema midiático brasileiro. REBOUÇAS, Bruno H.B.

Mídia Radical, rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. John D. H. Downing.

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