Por dentro da mente de um hater

Alessandro Garcia
Histórias para se contar
8 min readDec 9, 2016

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O ranger das teclas rompe o silêncio; olhos fixos, riso no canto dos lábios, dedos que esbanjam agilidade; mantém-se ocupado, alheio a qualquer ruído ou espasmo fora da tela — imersão. Há satisfação envolvida. E desejo reprimido.

O scroll folha as páginas rapidamente, o processo é de seleção. Critérios? O mais colorido, chocante ou fofo. “Memes” vem e vão, tem de ser ágil, interativo, afinal sua opinião importa.

É um novo dia e, nessa nova polêmica, “ser ou ser parte“, é a questão. E os dedos comunicam antes do pensamento, trazendo a tona um lado mais descuidado, anônimo. As ideias apequenam-se e é preciso acompanhar; ser esquerda, direita, volver! é mecânico e complexo, mas é humano?

Há um mini universo a sua volta, e ele é só o que existe e resiste sendo esse ser de muitos e nada. Cada minuto importa, são os intervalos dessa roda que giram e movem a próxima moda.

Olhos ainda fixos, são várias conversas e abas, esse é seu mundo. Há um sentimento de “mais merecimento”, certas coisas e pessoas não deveriam ser ou estar, elas não pertencem ao seu mini-universo. Como ousam ser elas mesmas? pensar diferente? Há propensão ao combate, ao não-debate.

Metralhadora carregada, é hora da ação.

O boom

Da internet e do ódio

Na década passada, nossas rotinas foram atravessadas pela internet. Assumimos identidades virtuais sob a forma de redes sociais, ampliando nossa existência para um novo espaço. Essa nova área de atuação rapidamente ganhou adeptos, todavia, essa dúbia existência tem apresentado aspectos peculiares, sobretudo no que diz respeito a questão comportamental.

O fenômeno da inclusão digital tem amplitude mundial. No Brasil, por exemplo, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dão conta de que 95,4 milhões de pessoas já tinham acesso à internet em 2014, fatia correspondente a 54,9% do total de habitantes do país. A Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (Pnad), também demonstra a ascensão de suportes móbiles, evidenciando a rápida ascendência do acesso à internet via Smartphone.

Sob esse panorama de popularização de acesso e também da dúbia existência, em que a vida virtual e real se confundem, um outro fenômeno tem ganhado destaque nas redes sociais, este de cunho negativo: a disseminação do ódio na internet.

As redes sociais têm se mostrado um reduto de ódio, onde opiniões inflamadas reverberam e, muitas vezes, extrapolam a barreira do legal. Homofobia, racismo e xenofobia são alguns dos exemplos. Este discurso de ódio vem travestido de diversas formas, assim como no mundo real, por assim dizer, mas a peculiaridade apresentada do ambiente virtual é sua inflamação e rápida viralização.

Dados disponibilizados pelo site safernet.com, referentes a 2015, apontam que os maiores números de casos de ódio na internet registrados no Brasil são relacionados ao racismo. Foram registradas 680 páginas com manifestações de ódio sobre o assunto. O segundo caso de maior menção foi o de apologia e incitação a crimes contra a vida, com 352 páginas como veículo do ódio. E o menor índice relacionou-se ao neonazismo, com 36 páginas registradas.

Persona

primeiro ato

São 6h. Levanta, olhos ainda fechados; água no rosto — 10 minutos para a lotação; engole rápido o café, confirma a presença do celular no bolso e sai às pressas.

De casa ao centro são mais de 40 minutos — sim, já cronometrou.

O tempo do deslocamento abre margem para verificar os seus perfis. Tem muita coisa acontecendo, variedades, economia, política, entretenimento.

O período dentro do ônibus segue sem qualquer interação humana e todos ao redor partilham a mesma cena, reagindo das mesmas formas. A vida não é fácil, existem os problemas, complexidades nas relações, tudo assume uma roupagem pesada, o que, por vezes, oprime e leva a uma sensação de vazio.

Nesse momento, em que ele se inteira do que acontece no mundo dentro do seu algoritmo, o pensamento remete a seu último caso amoroso, que, beirando o insucesso, está estagnado num comum acordo: “vamos dar um tempo”.

Mil coisas lhe passam pela cabeça. São sentimentos controversos e o mundo segue acontecendo na tela de cinco polegadas. É preciso existir tendo opinião.

Cabeça ainda pesada, a parada certa para a próxima condução, agora mais uma hora até o destino final. Já acomodado, retorna a diversão de consumir seus dados móveis.

Há um cenário de frustração, são tempos ágeis, onde o sentimento de não pertencimento é o maior castigo. Ansiedade, relações, convivências, por vezes não há preparo emocional, nem QI suficiente para lidar com determinadas questões. O que o leva de volta a seu romance mal resolvido e desencadeia um “stalkear de leve”.

Péssima hora, péssimo resultado “ela saiu noite passada”, “com quem esteve?”, “com quem dormiu?”; “filha da p*”- pronto, vira a chave.

O coração bate mais forte, sangue ferve, fica inquieto, quase a ponto de resmungar as barbáries que lhe passam na cabeça.

De pronto abre o app de mensagens instantâneas e a série mais sórdida de acusações e xingamentos é direcionada a sua “amada ingrata”.

Os dedos comunicam rápido; sua interlocutora vence a fase das justificativas e sente-se acuada, invadida, ameaçada. Desconstrói-se a figura do príncipe encantado, agora só há um perseguidor.

A conversa se entende, não há mais nível e muito menos sentimentos de preservação. “É o fim, “essa vaca me paga”, “depois de tudo que eu fiz por ela” — brotam os jargões. E é nesse instante que lhe vem à lembrança os momentos de prazer, momentos esses eternizados nas fotos mais íntimas, em que, desnudos, literavam a filosofia do amor.

Rapidamente, põe em atividade a ideia que lhe ocorrera. Selecionados os grupos e contatos, ainda no mesmo app, o texto que seguirá com fotos de sua ex-companheira nua refere-se a deploráveis adjetivos. “Essa p* merece”.

Destinatários incluem colegas de trabalho, família, colegas de faculdade, vizinhos, qualquer um que corresse a menor possibilidade de conhecer sua antiga amada. A partir daí as fotos viralizam e está feita a primeira vítima do dia.

A viagem segue. A essa altura já se passaram os primeiros 20 minutos do segundo deslocamento.

Pornografia de vingança

A pornografia de vingança tem sido uma das principais formas de ataque virtual. O tema tem ganhado relevância mundial dada a característica avassaladora de sua ação nas vítimas. Diariamente, pessoas têm sua intimidade exposta e a consequência disso geralmente é trágica, o que expõe o forte impacto social e psicológico deste tipo de agressão.

Esta prática tem vitimado sobretudo mulheres. Segundo a ONG Safernet, cerca de 81% de seus atendimentos referentes a pornografia de vingança dizem respeito a mulheres.

Racismo

No tocante a manifestações de ódio no ambiente das redes sociais, o racismo ocupa posição de destaque. Comentários pejorativos em postagens de figuras públicas tem sido uma constante, mas de modo geral, pessoas negras têm sido alvo desta prática nefasta.

Outdoors da vergonha

Visando o combate a prática de racismo nas redes sociais, a ONG Criola, em parceria com a agência de publicidade W3haus desenvolveu uma campanha que culminou na acareação entre vítima e agressor. O vídeo, produto da campanha, teve como mote os ataques raciais sofridos pela jornalista Maria Júlia Coutinho, da TV Globo, no ano de 2015.

Maria Júlia, ou Maju, como carinhosamente é conhecida, foi a primeira mulher negra a assumir o posto de garota do tempo no Jornal Nacional, principal telejornal da TV Globo. Os ataques racistas ebuliram já em sua primeira aparição, e manifestações de apoio se espalharam pelo país.

A campanha em si expôs o racismo de uma forma inovadora, foram selecionados 50 comentários preconceituosos, obtidos de uma campanha anterior, também desenvolvida pela Criola, chamada “Racismo virtual. As consequências são reais”.

Os autores destes comentários de cunho racista foram identificados pela ONG por meio do rastreamento da mensagem.

A partir daí, de posse da localização do agressor, outdoors replicando a mensagem por ele produzida, foram espalhados estrategicamente em locais próximos a sua residência, apenas com um desfoque no rosto da foto.

Um destes autores de comentários foi identificado por um amigo em um dos outdoors, e, surpreendido pela violência de suas próprias palavras, resolveu abraçar a campanha, vindo a público para se retratar.

Lucas, morador de Vila Velha, no Espírito Santo, foi colocado frente a frente com (nome) uma mulher negra, que no momento representava todas as vítimas de racismo.

Construindo o Ficcional

Ao longo da reportagem, trechos ficcionais podem ser identificados. Esses trechos retratam episódios em que um agressor age deliberadamente, ferindo e prejudicando, em alguns casos de forma permanente, sua vítima.

Imagem: shutterstock ID 219655585

Com esses trechos ficcionais, a reportagem buscou criar um ponto de contato com mente e o “modus operandi” de um “hater” — pessoa que dissemina o ódio na internet -, com a finalidade de propor um ambiente de discussão sobre a temática.

Para a construção deste personagem foram entrevistados psicólogos e sociólogos, também realizado uma pesquisa observatória, onde foram acompanhados alguns casos da prática do ódio dentro das redes sociais.

Essa construção traz uma mente instável, que num determinado momento, age maximizadamente em prol do ódio; o acompanhamento dos casos ficcionais traz também alguma curiosidade, principalmente por aproximar os “haters” da nossa realidade, mostrando que, em alguma medida, nós mesmos podemos estar contribuindo para este panorama, visto que são pessoas comuns, não necessariamente portadoras de alguma patologia mental.

A psicóloga Zuleika Kohler Gonzáles explica o porquê a internet proporciona uma sensação de impunidade, “O fato de não mostrar o rosto, faz o indivíduo não ter a responsabilidade ética. No mundo de hoje, temos a consciência do que pode e o que não pode, existem normas e as pessoas se sentem pressionadas por elas. Nas redes sociais é mais livre, é como se fosse terra de ninguém.”

Zuleika conta que a demonstração de ódio é gerada porque cada pessoa tem os seus interesses e se alguém mencionar algo diferente da sua verdade, aqueles que mencionaram são fuziladas ou até eliminados. A desigualdade social influencia nessa questão, novas pessoas estão acessando serviços que até pouco tempo atrás não tinham acesso. Isso pode causar revolta e ódio pelos que já possuíam o acesso, pois gera a sensação de perda do lugar e insegurança.

Ela cita um acontecimento que viu nas redes sociais relativo às ocupações nas escolas ocorridas nos últimos tempos. “Na postagem havia internautas criticando as ocupações e sugerindo ‘camaçadas’ de pau nos ocupantes”, conta a psicóloga.

Veja também: Ódio na internet por Thais Ramirez

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