A santa dos que esperam

Alexandre Petillo
7 min readMar 14, 2018

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Maria de Campos Batista, 78, tinha somente um sonho: encontrar o filho que sumiu durante o regime militar. Marcos Antônio é considerado, até hoje, o mais jovem desaparecido político da ditadura. Quando viu uma luz no fim do túnel, era um carro na contra-mão

Por Alexandre Petillo, de Goiânia (GO)

Marcos era somente um garoto de 15 anos. Apaixonado por política. Mais, era apaixonado pelo seu País. Deixou de lado o jogo de bola. As namoradinhas. O cinema, os discos de Jimi Hendrix. Foi à luta. Armada. Em novembro de 1969, chegou esbaforido em casa. Foi buscar uns livros. A mãe pediu que o pai o segurasse, que não o deixasse sair. Ele respondeu que precisava fugir, estava foragido, era procurado. O pai se recusou a segurar o filho para a polícia. Marcos pretendia seguir até o norte goiano, onde recrutaria camponeses para a luta armada. Chegou a ser detido em Goiânia, mas escapou. Só que à partir de maio de 1970, não deu mais notícias. Desapareceu. Ninguém sabe, ninguém viu. Foi dado como morto pelas autoridades. Não por sua mãe, Maria. Nas décadas seguintes, ela dormia com a porta da sala aberta, caso ele voltasse. Não voltou, não mandou notícias. Quem ia à luta, agora, era ela.

Maria Campos Batista tinha uma única meta: encontrar seu filho, Marcos Antônio Dias Batista. Primeiro, fez da maneira convencional. Freqüentou inúmeras delegacias, quartéis, presídios e hospitais em todo os cantos do Brasil. A porta da sala, sempre aberta. Ficava a espera de um milagre, ela, que em Goiânia era conhecida como Dona Santa.

Marcos era paulista de Sorocaba. Se mudou para Goiânia com a família no começo de 1960. Estudou no Atheneu Dom Bosco e depois no Lyceu de Goiânia, onde conheceu as ideias marxistas. Recebeu o apelido de Marcos Chinês, por andar com o livro vermelho de Mao-Tsé-Tung.

Acabou ingressando na VAR-Palmares, organização responsável pela ação mais espetacular da guerrilha urbana antes da captura do embaixador Charles Burke Elbrick: o assalto ao cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, já morto, em 1969, que estava em uma mansão no Rio de Janeiro, sob a guarda de sua amante Ana Capriglione.

A organização adotava a estratégia de luta armada contra a ditadura civil e militar e chegou a contar com nomes como Carlos Lamarca e Dilma Rousseff.

Marcos teria participado de ações como a explosão do carro do homem forte da repressão em Goiás, Marcus Fleury, chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), diretor regional da Polícia Federal, superintendente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Teria sido preso pela equipe do próprio Fleury em 1970. Ponto.

O desaparecimento de Marcos mudou toda a rotina da família. Os irmãos perguntavam por ele a todo instante. O pai, Waldomiro, só mostrava um olhar triste, distante. Foi ela que “segurou a barra”, como gostava sempre de falar. “Mãe é de ferro mesmo”, jurava Dona Santa. Mas, por baixo dessa coragem toda, existia mesmo uma matriarca triste, que pensava no filho Marcos em todos os instantes de sua existência. Lembrava da paixão que tinha pelo teatro. Da vontade de aprender outras línguas. E do inconformismo com a injustiça que transbordava, que o levou às ruas. Era nesse instante em que ela também conferia se a porta estava aberta. Vai que.

Toda essa paixão e sede de Marcos pelo conhecimento a cativou. Em 1978, aos 50 anos de idade, Maria resolveu voltar a estudar. Terminou, primeiro, o ensino médio. Depois, prestou vestibular para Serviço Social na Universidade Católica de Goiás. Na sua mente, o maior desejo do filho era que existisse igualdade entre as pessoas e, através de seu curso, Maria poderia de alguma forma contribuir para isso. Mas não deixou, durante o tempo de estudo, de cobrar e freqüentar delegacias à procura do filho perdido.

Nesse período, enfrentou zombarias dos policiais. Os homens da lei diziam que ela tinha escolhido muito bem a profissão, um “serviço bem avermelhado”, diziam, em referência ao Comunismo. “Decerto eu era mesmo comunista. Afinal, o Marcos era sangue do meu sangue. Então, ele era o que eu sou”, encerrava, Dona Santa, olhando para uma imagem do Menino Jesus, numa manjedoura, na estante da sala. Presente de Marcos, uma das poucas lembranças materiais que guardava.

Quando se formou no nível superior, o reitor da Universidade perguntou se, durante todos esses anos de estudo, ela descobriu o que de verdade seu filho queria com a militância. “Disse que sim. Ele queria igualdade, queria o fim da fome”, cravou, sem medo da megalomania. Desse instante, em diante, Dona Santa sempre dizia que sonhava com Marcos quase todas as noites. Sonhava que corria atrás dele, mas nunca o alcançava.

Formada, se especializou em saúde pública, área em que trabalhou até se aposentar. Chegou também a ser vice-presidente do Comitê Goiano pela Anistia e uma das mais atuantes integrantes do grupo Tortura Nunca Mais. João Silva Neto, amigo de Maria e presidente da Comissão dos Anistiados de Goiás compara a luta da companheira com as Mães da Praça de Maio, na Argentina. “Ela incomodava as autoridades porque nunca desistia”, afirma. Em 1992, outra perda. O marido, Waldomiro Dias Batista morreu vítima de um atropelamento numa das principais avenidas de Goiânia. Tinha 86 anos.

Dois anos depois, em maio de 1994, a Comissão de Familiares dos Mortos de Desaparecidos Políticos pede o reconhecimento da morte dos desaparecidos e o então presidente, Fernando Henrique Cardoso, promete legalizar a situação. Em agosto do mesmo ano, FHC assina o projeto de indenização às famílias de 135 desaparecidos pelo regime militar. A relação inclui o nome de Marcos Antônio Dias Batista. O mais jovem de todos os 136.

A esperança, aos poucos, dava lugar ao medo. Maria, com o passar dos anos, acreditava que Marcos ainda vivia na clandestinidade. Com o passar das décadas, já se contentava somente em saber o que afinal acontecera com ele. Queria, ao menos, sepultar os restos mortais do filho com dignidade. Em 1996, Marcos foi reconhecido oficialmente como morto. Maria trancou a porta da frente. O filho ficaria, agora, na quadra O, do Cemitério Jardim das Palmeiras, ao lado do pai. Em 2000, ela entrou com uma ação na Justiça Federal de Goiás pedindo informações sobre a prisão e o desaparecimento do filho.

Essa ação, cinco anos depois, culminou numa decisão inédita no Brasil. Em 25 de setembro de 2005, a Justiça Federal em Goiás dá prazo de 90 dias para que a União entregasse a ossada de Marcos à sua mãe, em audiência reservada. Na ocasião, as autoridades devem também explicar as circunstâncias que envolveram a prisão e morte do garoto. A decisão ainda condenava a União a pagar R$ 500 mil de indenização à Maria. A multa para cada dia de não cumprimento da decisão ficou estabelecida em R$ 1 mil.

Dois dias depois da decisão, Dona Santa era facilmente encontrada, em estado de choque, sentada nas escadas da Justiça Federal em Goiânia. “Estou assustada, afinal são 35 anos de espera. Quando soube da decisão, senti a cor da pele dele em mim” declarou ao jornal Diário da Manhã. Seus braços, relata a repórter Wanessa Rodrigues, estavam arrepiados. Deste dia em diante, Dona Santa parou de ter sonhos com Marcos.

Dona Santa não viu o dinheiro e muito menos os restos de seu filho. Conseguiu, no dia 15 de fevereiro de 2006, uma audiência com o vice-presidente do Brasil e Ministro da Defesa, José Alencar. Acordou empolgada. O vice-presidente tinha prometido que ia se aprofundar nas investigações. Seu filho, Silvino Dias Batista ia dirigindo. No banco traseiro, acompanhava a filha, Maria e o neto, Yanko.

A família conversou com o vice-presidente durante pouco mais de uma hora e meia — “ele chorou”, entregou Maria. Na saída, esperança, mais uma vez. “Enquanto eu existir vou lutar para enterrar meu filho em um lugar digno. Sinto que vou conseguir. Não estou forte?”, perguntou Dona Santa à Fabiana Pulcineli, editora-assistente de Política do Diário da Manhã, logo na saída do gabinete de José Alencar, em Brasília. E completou, tal qual uma bolchevique: “A luta continua!”.

Dona Santa estava, sim, forte. Tinha resistido a um derrame no dia 22 de janeiro desse mesmo ano — no exato dia em que recebeu o telegrama de José Alencar, a convidando para comparecer no Palácio. Depois da audiência, por volta de 12h45, Dona Santa e família comemoraram a conquista no restaurante do Ministério da Justiça. Em seguida, conseguiram uma audiência na Comissão de Mortos e Desaparecidos dos Políticos.

No retorno à Goiânia, as 16h20, em um dos trechos da rodovia em que ainda não havia pista dupla, no quilômetro 28,4 da BR-060, um Vectra grafite, placa BTB-9900, de São Paulo, vinha no sentido contrário. Desgovernou-se e bateu no Palio vermelho de Dona Santa, que morreu na hora. Silvino teve lesão no rosto e fratura na perna. Yanko também machucou a perna. Honorina teve lesões na cabeça e passou por uma tomografia. Os ocupantes do Vectra não tiveram lesões graves. O policial Marcelo Braga de Campos, que chegou ao local 20 minutos após o acidente, disse que o motorista não apresentava sinais de embriaguez.

Com a presença de José Alencar e outras autoridades goianas, Dona Santa foi velada em Goiânia. Alencar, mais uma vez, prometeu empenho nas investigações de Marcos Antônio. O corpo de Maria Batista foi enterrado na quadra O, do Cemitério Jardim das Palmeiras. Dona Santa, agora, está nas alturas. Que olhe por esse País.

*Texto escrito para o jornal O Estado de S. Paulo em 2006

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Alexandre Petillo

Jornalista e roteirista. Autor de alguns livros, entre eles "A Mulher Incrível" e "A Ira de Nasi". Dono da Kurundu Filmes, mas queria mesmo era ser o Casagrande