Nada é porra nenhuma

Débora Alecrim
10 min readSep 6, 2024

--

Incontáveis putas pariram no meu discurso. O caralho é de boi, sujo, pequeno, enorme o suficiente para foder quem quero atingir. O constrangimento de encarar a desaprovação do meu pai quando a emoção da série Stranger Things me fez lançar “porra” para o apartamento inteiro ouvir ainda assombra. Falava palavrão desde o quinto ano, mas, até então, o lado proibido do vocabulário passava despercebido da principal autoridade na casa. Costumava debater internamente que não há nada de errado com palavrões. São apenas termos que agregam a fala, exceto quando usados contra terceiros: o xingamento. Não é uma teoria ruim, mas evidencia desconhecimento infantil. Faltava reflexão sobre a carga imagética associada à semântica. Para além do significado, existem valores distintos em pênis, bilau, caralho. É uma semiótica do pudor — variantes do científico ao indecente até o vulgar. Ariel Arango, na obra Os palavrões, entende que “palavras obscenas falam sempre da anatomia adulta”, por isso criança boca suja surpreende. Quando meu irmão se aproximou do quinto ano — momento inicial da obsessão por ser adolescente e equiparar-se de alguma forma aos mais velhos — , tentei impedi-lo de falar palavrão. Ele, esperto, questionava o porquê tanto quanto eu fizera. Precisava engolir raiva. Como explicar o significado de porra? Mas, se não era usado em contexto literal, qual a importância de “porra” ser sinônimo de esperma, “líquido fecundante branco-amarelado, espesso e viscoso, secretado por glândulas genitais dos animais machos, no qual se encontram os espermatozoides”? É “algo que não presta” e pronto. Daniel Heitor continuava proibido de repetir, é feio.

Isso quer dizer que resumir o tabu do palavrão ao xingamento não é suficiente. Palavrões são um grupo de palavras que escandalizam sem necessidade de contexto, pelo contrário, são dependentes dele para serem esterilizadas. No caso de um amigo que descreve uma pessoa desagradável como puta, pouco importa o “puta”. Não há desejo de inferir que a xingada em questão é “mulher que faz sexo por dinheiro” ou que meu colega vê trabalhadoras sexuais como seres desagradáveis. Trata-se de um adjetivo de maior intensidade. O conceito do palavrão só seria relevante se o tópico envolvesse a liberdade sexual da insultada.

Outros termos podem assumir o papel de ofensa. No dia três de agosto de 2024, a usuária do X Jana Dahoui descreveu um título da coluna de opinião da Folha de S.Paulo como “horrível”, “desnecessário”, “esdrúxulo”, “feio”, “escroto”. A chamada era O primeiro ouro olímpico do Brasil em Paris é de uma mulher gorda e negra. Que há de escroto nisso? Apenas a ideia que ser gorda e negra corresponde a características ruins. Estigmatizadas por desejo, essas palavras se tornam podres pela maldade de quem profere ou interpreta. O valor social do estigma é maior que o conceito. Nesse sentido, palavras não significam nada.

Suicídio, tirar a vida, desviver

Noto a importância disso que decidi chamar de impressão imagética com certa frequência na internet. Confesso que, por internet, me refiro ao TikTok, mas alguns exemplos mais à frente mostrarão transbordamentos nesse fenômeno. A plataforma de vídeos chinesa controla via algoritmo assuntos de perigo potencial, como violência ou linguagem explícita. Na prática, usuários adotaram neologismos como “seggs” para sex ou “SA” para sexual assault. Exemplos estrangeiros à parte, no Brasil percebo três caminhos: não pronunciar palavras até o final, tal qual “estu” para estupro; escrevê-las ao contrário, “uc”; ou trocar letras por números. Em publicação recente, conta no X da Receita Federal escreveu: “A Receita Federal apreendeu 56,5 kg de cocaín4 no porto de Paranaguá/PR em um contêiner com destino à França”. Este último exemplo é interessante porque o nível de restrição de temas varia conforme a rede social, e o X é visto como uma das mais livres. O medo do tabu é comum no TikTok e no Instagram. Relato sério da Receita virou piada entre os usuários da plataforma de Elon Musk.

Esse novo método de comunicação é às vezes chamado de algospeak, ou seja, “fala do algoritmo”. Substituir letras foi apelidado de voldemorting, em referência ao vilão da terrível saga Harry Potter. Tentativa de escapar dos mecanismos de filtragem de conteúdo e Otimização para Mecanismos de Busca (SEO, sigla em inglês). Inteligências artificiais nessas ferramentas não interpretam nuances do vídeo, apenas registram que a presença da palavra (no áudio ou texto) é ruim. Conteúdos sobre estupro podem cair, mesmo quando são relatos de mulheres sobreviventes.

Considero algospeak estratégia interessante, cálice contemporâneo. Me assusta o exagero. “Kurt Cobain un-alived himself at 27”, em tradução livre, “Kurt Cobain se desviveu aos 27”. Frase usada pelo Museu de Cultura Pop (MoPOP) em exposição sobre Nirvana. Esse é um dos primeiros registros de aplicação do algospeak fora da internet. MoPOP, sediado em Seattle, nos Estados Unidos, colocou explicação do uso na amostra. Eis a tradução, feita por mim*:

Reconhecemos a natureza dinâmica da cultura pop e seu papel na estruturação da linguagem e do debate social.

Na era digital, redes sociais influenciam como comunidades online interagem em debates, especialmente com tópicos sensíveis como saúde mental.

Um exemplo é o termo ‘unalive’ [desviver], que surge no virtual para descrever mortes por suicídio ou assassinato. Usuários nas redes sociais usam-no para desviar de algoritmos que censuram conteúdos relacionados à saúde mental e assuntos explícitos. ‘Unalive’ acendeu conversas construtivas, sobretudo entre jovens, abordando questões como depressão, ansiedade e suicídio.

Nesta exposição, o curador convidado escolheu usar o termo ‘unalive’ a fim de respeitar aqueles que perderam suas vidas tragicamente devido a problemas de saúde mental. Ao dar luz a esse vocábulo, buscamos incitar diálogos significativos e evidenciar complexidades da saúde mental e linguagem em nossa sociedade.

O trecho sobre despertar discussões me interessa. Há comoção para falar de saúde mental, mas não podem descrever com exatidão a consequência final do definhamento psicológico. O mesmo cenário tecnológico que permitiu a amplificação do volume de narrativas diversas — cada um tem permissão e é incentivado a produzir vídeos/imagens/textos — é o agente censurador dos debates. Algoritmo instala terror ao “suicídio”, mas não ao “tirar a própria vida”. Temo a higienização do termo, que a longo prazo pode banalizar o ato. Quem disse que suicídio pode não gerar horror? Por que limitar o desconforto à palavra e não ao que significa?

Não tenho intenção de desconsiderar o poder de palavras. É pauta longeva do jornalismo como abordar suicídio sem desencadear novas mortes. Mas plataformas não fazem discernimento do que é falar assuntos ou incitar que outros sofram. Negros lutam para discutir racismo sem terem conteúdo mal distribuído e entregue para seguidores, mas comunidades fascistas ainda existem. Ambos grupos usam algospeak. Filtrar com base em palavras apenas não é solução. Para trazer de novo o caso MoPOP, desejar não viver é pedido de socorro. Esforços deveriam se concentrar na forma de acalentar mentes doentes, sem esconder o quão atroz é a experiência de torcer para ser atropelado por um carro ou sofrer parada cardíaca no sono. Essa higienização do suicídio me lembrou reedições de clássicos que removem termos racistas nas obras de Roald Dahl, Agatha Christie, Monteiro Lobato. Fugir do impacto de vocábulos não é renegar histórias? Abrandar todos os vocábulos de imagética desconfortável simplifica experiências humanas, assustadoras em vários aspectos. Ou reforça desprezos desnecessários. Limita conclusões sobre as perguntas: Por que o racismo é ruim? Qual é o horror do estupro? O que leva alguém a querer morrer? Qual a diferença entre sexo e estupro? É possível tornar sexo experiência recíproca e segura, independente de com quem escolho transar?

A consequência pode ser uma geração de jovens que não aprende a lidar com incômodos e compreender o cerne daquela dor. Perde-se também a possibilidade de enfrentá-la, em alguns casos, ou redescobri-la como não ameaçadora, em outros.

Sexo, transa, oba-oba

Sexo é sempre interessante de refletir dentro desse desprezo. Ao mesmo tempo tabu universal e assunto que interessa igrejas, universidades, o Congresso Nacional, músicos, cineastas, entre outros de uma listagem longa. Este ensaio existe porque notei a abundância do sexo no palavrão. E por que o sexo é tão polêmico? Essa pergunta vale um trabalho à parte, portanto aqui abro apenas algumas argumentações:

Nathan Heflick, professor na Universidade de Lincoln e escritor do artigo Why Is Sex So Taboo?, traz resumos dos trabalhos de antropólogos e pesquisadores para concluir que o carnal do sexo nos aproxima do animal, o que confronta a batalha constante dos humanos de fugirem da selvageria em prol do lado espiritual e cultural. Dentre os citados interessou-me Ernest Becker, antropólogo, autor de A negação da morte. Na obra, Becker argumenta que o animalesco do sexo é perturbador porque nos lembra do maior medo: “O sexo faz parte do corpo, e o corpo é da morte”. Para mascarar o terror, abraçamos o sexo com aspectos culturais: fantasias de romance, moralizá-lo como instrumento de controle, percebê-lo como mera mercadoria ou entendê-lo como necessidade para preservação da espécie/patrimônio. Essa visão parece não atender a todas as complexidades do tema. Sobretudo quando penso nas nuances do sexo para a mulher ou a maneira que ele se torna ainda mais tabu quando é preciso informar para crianças o que é.

De qualquer forma, falar sobre transa é hoje controverso em grande parte das instituições, em diferentes níveis. Ao mesmo tempo, sexo é tudo. Todas as músicas recentes mais populares no Brasil são sobre isso, ou do fim do romance. Mas a maioria delas é despida de elementos que efetivamente construam imagética sensual, que motive o ouvinte a engajar com sexo. A cantora Marina Sena pede: “Sempre que quiser ficar comigo é só beijar meu pescoço / É que de longe eu não ouço / Também não tem muita graça / A graça é você comigo, me dano sarrada”. Apesar da sensualidade no instrumental, dança e canto, me parece cômico a maneira que usar “dano sarrada” elimina o sexy. Em “Campo de morango”, Luísa Sonza é mais explícita: “Tu provando da fruta enquanto eu tava me excitando / Acordei, tu tava me chamando / Eu tava de ladinho e tu ia colocando / Sou uma vagabunda na tua cama / Me bota e pode falar que me ama”. Ao contrário de dano sarrada, essa música falha na luxúria pela composição, não pelas palavras. É como se não pudesse haver ambos, o sexo e o sexy. Real e imaginário sobre o ato.

Talvez por isso setores do mercado editorial voltados ao público feminino de jovens leitoras foquem hoje na venda de romances com hot, smut, spice. Formas de abrandar, nas palavras, o desejo por cenas de sexo na literatura. Design de capa desses livros também não explora sensualidade, o que leva muitos compradores a não perceber de imediato temas abordados. Não me aventurei em conhecer nenhum dos livros no gênero, mas observo críticas de outros leitores engajados na comunidade online apelidada de Booktok, Booktwt, Bookredes. Qualidade narrativa e construção de personagens complexos têm piorado, porque popularizar livros virou questão de divulgá-los a partir do quão picante são. Alguns extremistas, no entanto, propõe censura ou classificação indicativa severa para escapar do sexo literário.

Debates desse tipo acontecem na sétima arte há bastante tempo. Sempre que perguntado, meu irmão — jovem de 25 anos — responde que filmes só deveriam ter cenas explícitas de sexo quando estas forem úteis ao desenvolvimento da história. Discordo. Uso Michael Burns, apresentador do canal do YouTube Wisecrack**, para explicar que “o que acontece na história central dos filmes só é importante para o espectador se houver conexão emocional. Para se identificar, é preciso entender o personagem, e cenas de sexo podem ajudar. Como alguém transa, com quem transa, o que fazem antes, durante e depois do ato, tudo pode fornecer informações cruciais. Cena de sexo que não claramente evolui a narrativa ainda afeta nossa interpretação do filme”. Essa parece ser forma de perpetuar medo do sexo, guardá-lo a sete chaves sem entender impactos dele no coletivo em contexto cultural, político e histórico. Aproxima-se do discurso usado por conservadores para alienar crianças de pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais e Travestis), com pavor de infectar jovens com trans homossexualidade.

Publicações nas redes sociais sugerem que consumidoras de Quebrar o gelo e É assim que acaba, alguns títulos parte da categoria mencionada antes, não passam de viciadas em pornografia. Essa visão é absurda não apenas porque resume sexo à pornografia, mas descredibiliza patologia séria fomentada pela indústria pornográfica, que desumaniza e abusa de trabalhadores sexuais. É outro exemplo de como no dia a dia palavras não significam nada. Intenciona-se a crítica e ofensa à escolha de jovens leitoras com base apenas na percepção de que tais cenas de sexo são ruins, pornografia é ruim e, portanto, são situações equivalentes. Termos usados para entender aspectos de comunidades específicas sofrem o mesmo esvaziamento. Hiperfoco, termo usado para descrever o estado de concentração intensa e sustentada de uma pessoa por uma tarefa ou um conjunto de estímulos específicos, foi dissociada de autistas e pessoas com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) para tornar-se sinônimo de interesse. Grande problemática desse comportamento é que ferramenta para identificar neurodivergências com consequências reais no cotidiano de parte da população poderá, a longo prazo, perder parte da funcionalidade se não conseguir se distinguir do mero carinho e conhecimento extenso. Esse novo uso não trouxe reflexões sobre o hiperfoco e, talvez, as mesmas pessoas que dizem tê-lo estranhariam maneirismos autistas.

Vaca, veado, macaco

Quero esclarecer o raciocínio que aplico para separar o palavrão da ofensa (xingamento). Se o palavrão é algo que escandaliza por si, “vaca”, “veado” e “macaco” não podem se aplicar à categoria, porque ganham valor de ofensa, mas podem existir em outros contextos. Todo palavrão é ofensa, nem toda ofensa é palavrão. A ideia da ofensa envolve a presença do outro, há intencionalidade de ferir outra pessoa. Não é comum a aplicação da frase “esse lanche está um veado”, mas existe o uso de “esse lanche está uma porra”. Porra também pode ser forma de descrever pessoas: “Você é um porra”.

Retorno à questão porque grande parte da motivação deste ensaio foi a percepção de que xingar está atrelado a preconceitos como misoginia, racismo, transfobia e capacitismo. A resposta para o porquê ofender a partir disso é clara, cria-se no sistema percepção de que ser mulher, racializado, homossexual, neurodivergente e outras categorias fora do esperado é erro intrínseco. No entanto, isso levanta questões que não posso concluir. Em um mundo igualitário, onde todos os problemas sociais desaparecem, haverá necessidade de xingar? Porque ofender implica desejo de ferir o indivíduo, não o que ele faz. Hoje, percebo a importância de existir palavrões para expressar melhor o que sinto diante de frustrações diárias. Busco refletir sobre ofender, qual a necessidade de atacar outrem (sim, é necessário), que termos usar para tal (prefiro “vaca” a “puta”, “desgraçado” a “veado”, nunca uso “macaco” ou “retardado”) e até que ponto usar palavrão resolve minha dor (quase nunca, mas eu amo essa merda para caralho).

*: Tomei a liberdade de trazer a tradução de unalive como desviver apenas uma vez, e seguir com o inglês no resto da nota, porque percebo que esse uso ainda está reservado à língua inglesa. Não considero que seja um sinônimo exato do verbo desviver na língua portuguesa, sobretudo no contexto da internet a que me refiro neste ensaio.

**: Tradução minha de trecho do vídeo The War on S*x Scenes. De certa forma, o título exemplifica o algospeak aplicado ao YouTube. Essa foi uma das plataformas mais afetadas pela filtragem de conteúdo ao longo do tempo.

--

--

Débora Alecrim
Débora Alecrim

Written by Débora Alecrim

0 Followers

estudante de jornalismo. livros, música. fascinada pela internet.

No responses yet