Questionando a realidade.

Alê Garcia
Alê Garcia
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21 min readNov 22, 2014

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Estranhamento e jogo na obra de Julio Cortázar.

A consciência do artifício, do “faz de conta”, não impede o arrebatamento total do jogador. (John Huizinga. Homo Ludens.)

Sinta a vertigem: você está lendo Julio Cortázar.

Quando se recuperar, já estará implicado num jogo misterioso que vai te impelir a buscar mais, a envolver-se. Tome “Casa tomada” como exemplo. Conto que apareceu pela primeira vez no final da década de 40, publicado em uma revista argentina, dirigida por Jorge Luis Borges, o qual foi entregue pelas mãos do próprio Cortázar. Nele, uma estranha e invisível presença invade, pouco a pouco, os cômodos de uma casa em Buenos Aires, onde vivem solitários Irene e o narrador, “num simples e silencioso matrimônio de irmãos”, até expulsá-los em definitivo. O conto é considerado a inauguração do universo ficcional de Cortázar, incluído no livro Bestiário, em 1951, embora antes o autor já tivesse publicado, em 1938, um livro de poemas chamado Presencia, onde assinava como ‘Julio Denis’, e também Los Reyes, um poema dramático sobre o tema do Minotauro, publicado em uma edição privada feita por um amigo, em 1949.

Livro que inaugurou a prosa de Julio Cortázar.

Se na literatura das Américas o conto é um gênero especialmente favorecido, Julio Cortázar, contista por excelência e extremamente fecundo, presenteou-nos com mais de uma centena deles, além de análises e reflexões sobre o próprio fazer literário. Duas, pelo menos, essenciais para se compreender o conto: “Alguns aspectos do conto”, feito a partir de uma conferência realizada em Havana em 1962, e “Do conto breve e seus arredores”, que apareceu em Último round, em 1969. Os dois fazem parte da antologia de ensaios Valise de Cronópios, publicados aqui pela Editora Perspectiva. Assim, utilizo-me da própria generosidade de Cortázar para discutir sua obra, tentando compreender, através deste ensaio, um pouco mais sobre o universo deste genial escritor.

Fantástico ou narrativas de estranhamento?

Já em Bestiário é evidente a extrema habilidade do contista: a sutileza com que o mundo cotidiano sofre a intrusão do chamado fantástico vem disfarçada de prosa corriqueira, displicente, mas econômica e precisa como cabe a um grande contista. Assim, e sem ceder a truques e clichês, instala-se em sua narrativa um sentimento de estranhamento que, aos empurrões, vai se ajeitando onde menos se espera e surgem, então, os encontros fora de hora ou de lugar, as brechas e os interstícios mais insuspeitos no cotidiano mais banal.

A dificuldade de definição do fantástico e ao mesmo tempo, a facilidade de agregar elementos e características que tentam resumi-lo, juntando-se à necessidade de rotulação, talvez sejam os motivos que, em primeira instância, levam a classificar os contos e até alguns romances de Julio Cortázar de tal maneira.

Acontece com o fantástico a mesma coisa que acontece com a poesia, que, segundo o humorista, é “o que resta depois de definida a poesia”. (…).

Desisti de definir o fantástico. Em alguns pequenos ensaios de A volta do dia em oitenta mundos e de Último Round tentei encontrar os caminhos do fantástico ao comentar contos meus ou de outros autores, mas nunca pretendi chegar a definições.

Tudo que se pode haver — e isso se valer a pena — é tentar buscar uma noção do fantástico que seja satisfatória para alguém como você ou como eu. Senão, nem vale a pena, porque continuaremos na mesma.

(BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. Pg. 36)

Como a própria declaração do autor, no livro Conversas com Cortázar, de Ernesto González Bermejo, definir o fantástico encobre uma gama demasiada de possibilidades e, no momento em que escrituras como as de Cortázar surgem, apresentando situações em que, sobre o sólito irrompe o inesperado e temais quetais, ligados ao metafísico, como estruturas espaço-temporais (temas que são focos de tensão dominante em seus contos), a primeira intenção é de tachar-lhe tal denominação: fantástico. No entanto, embora seja inevitável que eu tente aqui relacionar algumas significações sobre o fantástico, melhor definição, se assim posso dizer, à obra de Julio Cortázar, provavelmente esteja como narrativas de estranhamento. Eis o que o próprio autor diz sobre o fantástico.

Para mim, o fantástico é, simplesmente, a indicação súbita de que, à margem das leis aristotélicas e da nossa mente racional, existem mecanismos perfeitamente válidos, vigentes, que nosso cérebro lógico não capta, mas que em certos momentos irrompem e se fazem sentir.

(BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. Pg. 37)

Como se vê, sempre é mais fácil caracterizar o fantástico do que tentar defini-lo de forma acabada. Se ele compreende enigmas, absurdos, incoerências, escândalos, rupturas, estes somente existem em contrapartida a uma idéia estabelecida de mundo sólito, congruente, irretocável, coerente, ortodoxo. Cortázar reforça:

Quase todos os contos que escrevi pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de nome melhor, e se opõem a esse falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo filosófico e científico do século XVIII, isto é, dentro de um mundo regido mais ou menos harmoniosamente por um sistema de leis, de princípios, de relações de causa e efeito, de psicologias definidas, de geografias bem cartografadas. No meu caso, a suspeita de outra ordem mais secreta e menos comunicável (…) foram alguns dos princípios orientadores da minha busca pessoal de uma literatura à margem de todo realismo demasiado ingênuo.

(CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. Pg. 147.)

Livro em que Todorov tece sua clássica definição sobre o fantástico.

Existe, obviamente, a tentação de definir o fantástico tão-somente como o terreno onde surge o sobrenatural, o mistério, o terror. Todorov (Cf. Introduction à la Littérature Fantastique. Paris: Seuil, 1970.), considera que o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, diante de um conhecimento aparentemente sobrenatural. Seu conceito de fantástico se estabelece, então, entre a dicotomia Real/Imaginário, Natural/Sobrenatural. Já Ana Maria Barrenechea em La Literatura Fantástica em Argentina, (México, Imprensa Universitária), estabelece como base do fantástico, a existência implícita ou explícita de fatos a-normais, a-naturais ou irreais junto a seus contrários. Considera fantástico quando ocorre o contraste do a-normal, como problema. Para H.P. Lovecraft, o critério do fantástico situa-se não na obra, mas na experiência particular do leitor — um conto é fantástico se o leitor experimenta profundamente um sentimento de temor e de terror, a presença de mundos e poderes insólitos.

Cortázar diverge muito desta definição de Lovecraft, considerando o fantástico “uma coisa muito simples, que pode acontecer em plena realidade cotidiana” e criticando os estratagemas utilizados por Lovecraft para alcançar seus intentos artísticos:

H. P. Lovecraft: exemplo de anacronismo, para Cortázar.

(…) Embora muita gente admire os contos fantásticos de Lovecraft — este público ficará horrorizado com o que vou dizer — eu, pessoalmente, não me interesse nem um pouco por eles, pois me soam inteiramente fabricados e artificiais.

Lovecraft começa criando um ambiente que já é fantástico, mas anacrônico. Parece coisa dos séculos XVIII ou XIX. Tudo acontece em casas velhas, em mesetas açoitadas pelo vento, ou em pântanos com vapores que invadem o horizonte. Assim que ele consegue aterrorizar os leitores ingênuos, começa a despejar no texto bichos peludos e maldições de deuses misteriosos. Isso podia ficar muito bem há dois séculos, quando coisas deste tipo eram capazes de assustar qualquer um, mas atualmente, pelo menos para mim, são desprovidas de qualquer interesse.

(BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. Pg. 37)

Filme inspirado no conto “As babas do diabo”, de As Armas Secretas.

Por que, então, pode-se dizer que na obra de Cortázar o fantástico vai além destas caracterizações superficiais? Principalmente, porque no seu universo, isso a que chamam de fantástico, não se constrói a partir de situações-clichês, muito menos sob estratégias ou ambientações que já trazem em si o pressuposto do a-normal, a-natural. Seu estranhamento surge no cotidiano, o absurdo irrompe em meio às atividades do dia a dia, e por vezes, é tão sutil, que não se cogita que seja pertencente à outra esfera que não a da nossa própria realidade. Freqüentemente, é fruto de uma ótica distorcida, de um não entender bem, de uma difusão. Por isso alcança a maestria em contos como “As babas do diabo”, pertencentes ao livro As armas secretas. Inspiração para Antonioni em Blow up, esta peça literária só pode ser resolvida pelo leitor — possibilitando, portanto, definições sempre únicas, individuais. Nele, o jogo, recurso muito utilizado pelo autor para provocar este estranhamento, já se estabelece na própria dificuldade proposta pelo narrador desde o início sobre qual pessoa usar para contar o que se passou.

Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventado constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus rostos. Que diabo.

(CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo. As armas secretas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006. Pg. 60.)

Ao brincar com a própria dificuldade da construção da literatura, Cortázar vai revelando as camadas significantes por debaixo de sua obra — para mostrar ao leitor, de uma forma mais densa do que uma literatura escapista ou de entretenimento poderia ser capaz, suas impressões sobre o que chama de “testemunho de estranhamento”. O estranho para Cortázar é o cotidiano, é ele que é questionado, é o sólito o inquirido, a modorra cotidiana é o fruto da sua indagação. A dita normalidade não é “tranqüila” como se supõe. Por que, segundo o próprio Cortázar afirma no ensaio “Do sentimento de não estar de todo”, presente em Valise de Cronópio, “nada é sólito desde que submetido a um escrutínio secreto e contínuo.”

Na literatura de Julio Cortázar, as significações já codificadas são obra de constante deslocamento, desviando a atenção do leitor para outra maneira de utilizar a linguagem, obrigando-a a desautomatizar sua percepção, a atentar-se aos “achados” constantes durante o texto. Suas escolhas de procedimentos formais, tão ou mais que os temáticos, são alvo de constantes rupturas que desestabilizam o leitor e, aí, sim, poderiam gerar características dominantes, propícias de análise para entendermos de que maneira o fantástico se estabelece em sua obra.

É bastante seguro afirmar que a questão formal se torna mais evidente na construção do estranhamento que leva à definição como fantástico do texto de Cortázar, porque, ainda que em uma rápida análise, em sua obra, a temática normalmente recorrente da literatura fantástica não é tão contundente. Quando existem alguns destes elementos — sintetizados por teóricos do fantástico em uma lista grandiosa envolvendo temas como fantasmas, vampiros, diabo, necrofilia, loucura, telepatia, ritos esotéricos, organizados em subcategorias como “temas do maravilhoso”, “temas contrários às ciências biológicas”, “perturbações mentais”, entre outros — são camuflados em planos tão sutis, que acabam não sendo o motivo pelo qual o estranhamento é gerado. Assim, e conforme se pode descobrir principalmente através de entrevistas do próprio escritor, um tema tão recorrente na literatura fantástica, como o vampirismo, só pode ser constatado (e por ser uma obsessão e uma crença do escritor na existência do) muito nebulosamente em um conto como “Reunião com um círculo vermelho” (Alguém que anda por aí, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1977). E o incesto, outro tema catalogado como entre aqueles que contrariam as ciências biológicas ou revelam desvios sociais, foi identificado em investigações psicanalíticas de seus contos como “Casa tomada” e “Bestiário”, ambos do livro Bestiário (Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1986), além de recorrentes situações em que seus personagens podem ser classificados como tomados por perturbações da personalidade.

Vampirismo

Alguém que anda por aí. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, onde está presente “Reunião com um círculo vermelho”.

Em “Reunião com um círculo vermelho”, conto que aborda o tema do vampirismo, Cortázar ficcionaliza um episódio que teria acontecido com ele na Alemanha. Todo o episódio corresponderia à primeira parte do conto, sendo que na segunda, irrompe o fantástico. No conto, narrado em improvável segunda pessoa, o protagonista, Jacobo, entra em um restaurante no meio de uma noite chuvosa para jantar. É o único cliente ali dentro até que surge uma mulher, que o Jacobo crê tratar-se de uma turista inglesa, míope e uma tanto atrapalhada a quem chama “toupeira”. Não tarda para que ele comece a perceber certa animosidade vinda dos funcionários do restaurante, uma mulher e dois garçons que começam a dirigir olhares desagradáveis para a turista, sem que esta perceba qualquer coisa ou se apresse um tanto no seu pedido e na sua indecisão. E embora já tenha terminado sua refeição, Jacobo sente-se tomado de um sentimento que o impede de ir embora do restaurante, deixando a turista sozinha, temendo que lhe aconteça algum mal:

Você, como acontece tantas vezes, não teria podido precisar o momento em que acreditou entender; também no xadrez e no amor há esses instantes em que a névoa se levanta e então se realizam os lances ou os atos que um segundo antes teriam sido inconcebíveis. Sem uma idéia articulável sentiu o perigo, disse a si mesmo que por mais atrasada que a turista inglesa estivesse em seu jantar era necessário permanecer ali fumando e bebendo até que a toupeira indefesa decidisse enfiar — se em sua bolha de plástico e saísse.

(CORTÁZAR, Julio. Reunião com um círculo vermelho. Alguém que anda por aí. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. Pgs. 139 e 140)

Sentindo-se na obrigação de protegê-la, Jacobo permanece no restaurante, emendando à sua refeição xícaras de café, a fim de aguardar que a turista deixasse o local. Quando ela enfim o faz, finalmente o protagonista se sente aliviado para deixar o restaurante, ele também sentindo que não mais seria agradável permanecer ali sozinho com na presença de funcionários tão descorteses. O que sente quando sai à rua é alívio em relação à turista, afinal

salvara-a e precisava assegurar-se de que não voltaria, de que a desajeitada toupeira metida em sua úmida bolha chegaria com total inconsciência feliz ao abrigo do hotel, a um quarto onde ninguém a olharia como a tinham olhado.

(CORTÁZAR, Julio. Reunião com um círculo vermelho. Alguém que anda por aí. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. Pgs. 139 e 140)

Quando dobra uma esquina, entretanto, ainda preocupado em assegurar que a turista chegasse ao seu hotel em completa segurança, não a vêm mais à sua frente. Desapareceu de maneira que não consegue explicar, assim como não consegue explicar o motivo que o faz retornar ao restaurante. Quando chega, é recebido pela funcionária com a enigmática frase que vai anunciando o findar do conto:

— Pensamos que voltaria — disse. — Está vendo que não tinha razão para ir tão cedo.

(CORTÁZAR, Julio. Reunião com um círculo vermelho. Alguém que anda por aí. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. Pgs. 139 e 140.)

O que se segue, de maneira não-dita, é o que Cortázar chama de vampirização. O fim é tão nebuloso, este retorno sem razão ao restaurante, que as explicações do autor são quase indispensáveis para que saibamos a que, afinal, o conto se refere.

Tive medo por uma série de detalhes muito precisos que estão expostos no conto. Quanto entrou a turista, que imaginei ser inglesa, me senti na obrigação de protegê-la, já éramos as duas únicas pessoas que estavam ali naquela noite de chuva.

E não me mexi até que ela se foi, ainda que — e isto pode ser uma sugestão — tivesse a sensação palpável de que o pessoal do restaurante, a dona e os garçons, estavam me odiando por causa disso.

O que se segue é a inversão da situação: foi a turista que, tendo sido vampirizada, tratou de me proteger; e não pôde fazê-lo porque no final do conto eu mesmo vou e me entrego. Isso não me aconteceu, como demonstra o fato de estar falando com você agora.

(BERMEJO, Ernesto González. Conversas com Cortázar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. pg. 125.)

A rápida análise do conto já deixa claro que Cortázar em nenhum momento cede a lugares-comuns e construções atmosféricas que por si só poderiam denunciar a situação “vampiresca” que queria, com o conto, expressar. Todo o clima alcançado, e a estranheza resultante deste, não se deve, nem de longe, a construções tais quais as que tomaria, por exemplo, H.P. Lovecraft na construção de suas peças literárias. Pelo contrário, o que acontece na obra de Cortázar é a criação de um clima absurdo que vai se instaurando ainda que as razões para isso sejam muito tênues. Clima de absurdo, aliás, recorrente na obra do autor quando exposto através de uma atitude de hostilidade de várias pessoas em ambiente público. Assim também acontece em “Ônibus”, do livro Bestiário.

Cortázar só fazendo o que sabia fazer melhor.

Mas em “Reunião com um círculo vermelho”, muito menos o tema da vampirização do que a forma com que o mesmo é construído, é a mola propulsora. A tensão e ambigüidade frente ao desconhecido, mas com uma construção que torna crível o medo que passa a assolar o protagonista. Desta maneira, vemos o quanto Cortázar cumpre com os pressupostos da mensagem estética, definida por Umberto Eco:

A mensagem com função estética é, A mensagem com função estética é, antes de tudo, estruturada de modo ambíguo em relação ao sistema de expectativas que é o código.

Uma mensagem totalmente ambígua manifesta-se como extremamente informativa porque me dispõe a numerosas escolhas interpretativas, mas pode confinar com o ruído, isto é, pode reduzir-se a pura desordem. Uma ambigüidade produtiva é a que me desperta a atenção e me solicita para uma esforço interpretativo, mas permitindo-me, em seguida, encontrar direções de decodificação, ou melhor, encontrar, naquela aparente desordem como não-obviedade, uma ordem mais calibrada do que a que preside às mensagens redundantes.

(ECO, Umberto. A Estrutura Ausente. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.)

Capa da edição espanhola do livro de Eco que destrincha os pressupostos da mensagem estética.

A técnica literária, ao mesmo tempo em que condiciona o desenvolvimento temático, também é condicionada pelo tema. Também é fato que técnica literária pode levar a um descobrimento temático. Quando analisadas as preferências técnicas de Cortázar — a narração em primeira pessoa, ou, mais especificamente, sua predileção por narrar pelo ângulo ficcional interno — , descobrimos que elas não traduzem tão somente uma necessidade inerente de um certo gênero de narrativa para garantir sua estabilidade estrutural. Suas preferências se dão por causa da preocupação que o próprio Cortázar sente com a adequação de suas técnicas ao seu tema. Quando Julio Cortázar lança mão da narração em primeira pessoa (ou mesmo quando em terceira, com uma abordagem que leva à sensação de estar sendo narrado em primeira), situa-se ele, o narrador, no centro do relato, de onde pode sondar a realidade na medida em que a própria narrativa vai sendo construída: o narrador se entrosa no centro da trama para dar testemunho do estranhamento que o ângulo ficcional interno lhe possibilita. Cortázar, ao empreender esta técnica de sua predileção se vale de um preceito elaborado por Horacio Quiroga e que faz parte do seu “decálogo do perfeito contista”:

“Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não há outro modo para se obter a vida no conto”.

Para Cortázar, a noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao conto, definindo a sua forma fechada e que o levará à sua idéia do conto perfeito: uma esfera. Compreenderemos ainda mais profundamente o conto de Cortázar se nos dermos conta de uma estratégia constamente utilizada pelo escritor: a de que o narrador poderia ter sido uma das personagens do conto. Ao não optar por um distanciamento narrativo na criação do conto, Cortázar busca “instintivamente que ele seja de algum modo alheio a mim enquanto demiurgo, que se ponha a viver com uma vida independente, e que o leitor tenha ou possa ter a sensação de que de certo modo está lendo algo que nasceu por si meso, em si mesmo e até de si mesmo, em todo caso com a mediação mas jamais coma presença manifesta do demiurgo”. (Cf. CORTÁZAR, Julio. Do conto breve e seus arredores. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993.)

Revelando e questionando o fazer literário

É verdadeiro que a intenção de Cortázar na utilização destes pressupostos técnicos na construção de suas obras literárias é a de proporcionar uma visão interna, distante, demiurgicamente, da narrativa fria do narrador onisciente, por exemplo. Mas também é fato, ainda que não seja intenção manifesta, que ao inserir-se de maneira tão profunda no ângulo ficcional interno da obra, portando-se o narrador como um personagem que acompanha o fazer da construção, que Cortázar acaba assim por “desnudar” os procedimentos de construção da obra. Um procedimento que se faz presente desde Edgar Allan Poe e que, na literatura norte-americana talhou-se a partir do narrador irônico para o desmascaramento da construção literária. Por ser um processo que envolve domínio absoluto das convenções existentes no gênero que se está subvertendo, corre-se o risco de críticas sobre um “exibicionismo virtuosista”, como as que foram dirigidas à Cortázar.

No entanto, é perfeitamente compreensível que, no momento em que Cortázar utiliza-se de técnicas que conduzem ao estranhamento, ao absurdo, ao fantástico, para revelar e questionar não somente as preocupações existenciais humanas e as tênues noções pré-concebidas do que se chama “realidade”, mas também revelar e questionar o próprio fazer literário, críticas deste tipo existam. Assim como as críticas a quaisquer formas artísticas que rompam com o que até então era estabelecido, promovendo renovações estéticas por vezes difíceis de compreender em sua totalidade quando ainda são analisadas sem o devido distanciamento temporal.

Chklovski já definia: “a finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; os procedimentos da arte são os do estranhamento dos objetos, que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção.” (CHKLOVSKI, V. L’Art Comme Procedè. Théorie de la Littèrature [Textos dos Formalistas Russos organizado e traduzido por Todorov]. Paris: Suil, 1965.) De tal maneira que, na obra de Julio Cortázar, o contraponto entre verossimilhança e estranhamento é a mola propulsora de uma infinidade de estratégias que o autor costumava muitas vezes definir como jogos. O que não é difícil compreender, já que, diante de sua obra, o leitor poderá sentir-se à frente de textos para diversão (não por acaso, o autor produziu uma novela chamada Divertimento), por diversas razões: a construção acrobática, de um virtuose das letras; as inter-relações que a porosidade de seu mundo possibilita; a presença da fala coloquial; os comentários com o leitor; os convites à participação do leitor.

O jogo, da mesma forma que o jazz, é um leitmotiv da sua obra, um tema recorrente e é motivo de constante indagação da crítica.

Assim, para Néstor García Canclini (Cf. CANCLINI, Néstor Garcia. Cortázar: uma antropología poética. Buenos Aires: Nova, 1968.), que interpreta o conjunto da obra de Cortázar, o jogo remete a outros aspectos temáticos: o da liberdade e da responsabilidade, tal como aparece, sobretudo, para os personagens adolescentes, que são numerosos na ficção cortazariana.

Um eterno perseguidor.

O jogo, na obra de Julio Cortázar, pode ser considerado como um elemento de transcendência da realidade, como um instrumento revelador de potencialidades que desviam da normalidade repetitiva, apontando para uma outra dimensão da realidade. É importante, no entanto, deixar claro a possibilidade de muitos elementos entrarem nesse jogo: construções de palavras, como anagramas e palíndromos — como podemos tão bem observar em “Satarsa” (Cf. CORTÁZAR, Julio. Fora de Hora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.) — , uma revolução, a busca de sentidos para a existência, a própria vida. E, não obstante, o jogo por si só. O jogo como proposta de desvio da normalidade.

Cena de Jogo Subterrâneo, filme brasileiro de 2005, dirigido por Roberto Gervitz, estrelado por Felipe Camargo e baseado no conto “Manuscrito achado num bolso”.

“Manuscrito achado num bolso” (CORTÁZAR, Julio. Octaedro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.) é exemplo máximo e incontestável disso: o protagonista do conto inventa um sistema de combinações com as linhas do metrô que se mostram como uma tentativa de substituir a forma ocasional de conhecer uma mulher; regras rígidas e elaboradas matematicamente que criam combinações com as quais o protagonista pretende invadir “outra dimensão” — porém, sem que tal intento seja explicitado. As regras, diabólicas em sua rigidez, são inventadas pelo protagonista sem uma razão explicada. No entanto, ao quebrar suas próprias regras ao conhecer uma mulher é invadido por um complexo de culpa que o obriga a cumprir as regras até o final. E falha, perdendo a mulher. Não faltam elementos simbólicos e próprios das obsessões de Cortázar a entrar nestes contos: estruturas e meios de passagem sempre o fascinaram, tais como os metrôs, os bondes, os barcos, as pontes. As possibilidades de combinações possíveis, a ilusão espaço-temporal que compreendem.

Edição especial do conto divisor de águas de Cortázar, “O Perseguidor”, que têm ilustrações de José Muñoz.

Todos estes elementos e símbolos são constantemente utilizados por Cortázar em suas tramas, remetendo, de repente, a outra coisa, além. São como válvulas para instantes epifânicos. Desde uma sensação que um personagem sente quando anda no metrô (Johnny, personagem de “O perseguidor” , presente em As armas secretas. [Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006], conto divisor de águas na carreira de Cortázar) ou a ponte que antevê em sonhos (“Satarsa”), tudo pode ser visto “como o comentário de outra coisa que não alcançamos”, conforme diz em O Jogo da Amarelinha (Cf. CORTÁZAR, Julio. O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999). O jogo, na obra de Cortázar, implica uma probabilidade de passagem, uma abertura ao novo, mas também funciona como um elemento que aciona uma outra abordagem na trama: é o estranhamento tão levado ao extremo que vira o start para o absurdo. Dois contos, especialmente, (além do já citado “Manuscrito achado num bolso”) explicitam bem o processo lúdico gerador deste absurdo: “As fases de Severo” (Cf. CORTÁZAR, Julio. Octaedro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.), com sua estrutura de repetição e fábula em torno do personagem Severo, uma espécie de “xamã” em cuja casa acontecem ritos repletos de fases misteriosas, nas quais diversos convidados aguardam por supostas profecias. Outro é “Instruções para John Howell” (Cf. CORTÁZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.), em que uma noite de ida ao teatro se transforma em detonação do absurdo: o protagonista da trama passa de espectador, num teatro em Londres, a personagem da peça que fora assistir — a contragosto, num jogo divertido mas perversamente assustador.

Segundo Todorov, o fantástico exige o preenchimento de três condições, concernentes ao ponto de vista do leitor.

Primeiro, o leitor deve considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre uma explicação natural e outra sobrenatural. E esta hesitação pode ser sentida igualmente por uma personagem; assim, o leitor pode identificar-se com a personagem, assumindo o seu papel. Por contraste, exige-se igualmente que o leitor renuncie tanto a uma interpretação alegórica, quanto a uma interpretação poética. É preciso que sua percepção não fique distanciada com estas duas possibilidades, uma vez que a obra fantástica deve provocar no leitor reações de hesitação, dúvida, medo e terror. Para Caillois (Cf. CAILLOIS, R. Anthologie du Fantastique. Paris: Gallimard, 1966.), a literatura fantástica é um jogo voluptuoso com o medo. O leitor sente o prazer do medo. Por outro lado, o fantástico provoca uma possibilidade de re-operação da obra ao nível do receptor. Este é estimulado pela própria estruturalidade da obra. Por isso, Caillois define o receptor como um “decifrador do universo”, identificando-o com o emissor que, ao re-operar a obra, defrontar-se-ia com uma revelação que não estaria explícita na literalidade. O inexplicável é aceito pelo receptor, mas o enigma permanece associado à obrigatoriedade de uma explicação, estimulada pela espera, mesmo que este esclarecimento se una à suspeita inconfessada de que a claridade desejada vá romper o encantamento. Eis a motivação pela qual o leitor, talvez consciente desta possibilidade, preserve sua obra contra o perigo de esclarecimentos que ameacem este encantamento. Tal tipo de obra, desta forma, não provocaria no receptor o medo apontado por Todorov, mas a vontade de resolver o enigma, integrando o receptor, desautomatizado da condição de leitor passivo, no processo criativo.

Seria a desautomatização do receptor, portanto, a maior estratégia de Cortázar para possibilitar ser bem sucedido em suas narrativas de estranhamento: com naturalidade e amparando-se no conforto possibilitado por situações cotidianas, o autor insere sutilmente seus elementos que corrompem e modificam a ordem estabelecida — peças de “desordem” que atraem para o caos sem, no entanto, jamais esfacelar a obra. Seu jogo é tão eficiente que o estranhamento é aceito como um aliado a questionar o estabelecido e o que era tido como fantástico torna-se verossímil. Tudo por que o receptor — o leitor — foi convidado ao divertimento, envolvido de maneira lúdica. Um cúmplice no eterno e fascinante jogo de Cortázar de questionar o que convencionou-se chamar de realidade.

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Alessandro Garcia é escritor. Autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti, segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional, com conto traduzido para o espanhol na Revista Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional.

Participou das coletâneas Contos de Natal (Editora e-galáxia, 2014), Assim Você Me Mata (Editora Terracota, 2012), É Assim que o Mundo Acaba (Editora Oito e Meio, 2012), Ficção de Polpa Vol. 3 (Não, 2009), Ficção de Polpa Vol. 1 (Fósforo, 2007; Não, 2008) e Cenas de Oficina (Unidade Editorial, 2000). Escreveu o perfil do escritor Jonathan Franzen para o livro Por que Ler os Contemporâneos? (Dublinense, 2014).

Publicou em revistas literárias como Ficçōes e Cult, teve conto traduzido para o inglês pelo Contemporany Brazilian Short Stories e traduzido para o espanhol pelo Cuentos Brasileños de la Actualidade. Foi colunista das revistas digitais Digestivo Cultural, Cronópios, Scream & Yell e Paralelos, no Globo On Line, além de escrever para o Jornal Rascunho, entre outros.

Finaliza o romance A Zona da Invisibilidade. Mais em alessandrogarcia.com.

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Alê Garcia
Alê Garcia

Escritor e criador de conteúdo. Um dos 20 Creators Negros Mais Inovadores do País, segundo a Forbes. www.alegarcia.cc