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11 min readMay 4, 2024

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Que é filosofar?, de Josef Pieper — Resenha #01.

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Como o nome sugere, Joseph Pieper, neste livro, destrincha a questão do filosofar, mostrando inicialmente como esta é uma problemática propriamente filosófica e deve ser abordada nessa linha. Dessa forma, como todo problema filosófico, ele não nos dá uma resposta exaustiva, i.e., não aborda o tema em sua plenitude, mas antes nos propõe uma resposta não manipulável.

A primeira aproximação que Pieper faz, visando ao cerne da indagação, é afirmar que o ato de filosofar possui em ultrapassar o mundo do trabalho. Desdobrando a definição do mundo do trabalho, percebemos que refere-se ao âmbito quotidiano, no qual prioriza-se as necessidades mais sensíveis e imediatas do ser humano — a saber, pagar contas, comprar alimentos, ter acesso aos devidos medicamentos etc. — . Esta é a esfera da “utilidade comum”, parte essencial do bonum commune, conquanto este seja mais abrangente — abarcando, por exemplo, a vida dedicada à contemplação, à filosofia. Acontece, entretanto, que nos tempos hodiernos as esferas da “utilidade comum” e do bonum commune têm sido cada vez mais identificadas, e o mundo do trabalho tem subjugado progressivamente toda a existência humana. Conquanto o autor explicite esta subjugação em um aparente tom negativo, não propugna a rejeição do mundo do trabalho, mas o considera como parte essencial (apenas) da realização física da existência humana.

Assim, a filosofia dá um passo além do mundo do serviço, e se mostra incomensurável com ele, na medida em que não podem ser equiparados. Pieper nos mostra, além da filosofia, que a poesia, a oração e qualquer abalo que leve o humano às fronteiras da existência (Dasein), também são incomensuráveis. A seguir, discorre como o mirandum, i.e., aquilo que é admirável, digno de admiração, tem a ver com filosofia e com a poesia, uma vez que transcende o mundo do trabalho. Isto porque a alma humana, diante de um objeto real pelo qual se admirou e tenta conhecer, exerce somente a função de receptora do objeto admirado. Essa pura recepção do ser que se afigura é a essência teórica da filosofia, a theoria.

Concluindo que a filosofia essencialmente deve transpor o mundo do trabalho, o autor visa a explicar para onde vai. Ela ultrapassa uma fronteira. Devemos então saber o que há além desta. Para irmos ao cerne desta indagação, devemos antes nos ater ao fato de que toda resposta deve presumir que a região além da fronteira faz parte do mundo do homem, pois precisa levá-lo em consideração. Nessa linha, Pieper desdobra o que é o mundo humano; para tal, naturalmente, devemos primeiro firmar o que entendemos por “mundo”. Este conceito está intimamente ligado, em primeiro lugar, a um aspecto relacional. “No”, “com”, “ao lado de”: todos esses termos designam relação. Acontece, entretanto, que uma relação genuína só pode ser erigida de dentro para fora; só pode ser estabelecida onde há um interior (em sentido qualitativo, e não uma mera situação espacial, que é a única afirmação de interior plausível de ser afirmada, por exemplo, para uma pedra) a partir do qual uma ação se dá e ao qual se refere aquilo que recebe e sofre. Assim, pode-se concluir que o interior é a capacidade de algo real de possuir relação com um exterior a partir de um processo de inclusão; mundo é o campo no qual uma relação acontece, e possuir um mundo é ser o centro e o suporte de um campo de relação.

Uma planta difere de uma pedra, pois as substâncias nutritivas absorvidas pelas raízes, e que percorrem a estrutura restante do vegetal, fazem parte dela, de seu mundo, uma vez que se relaciona com o seu interior por um processo de inclusão. Os nutrientes absorvidos são essenciais para a manutenção da vida vegetal. Isto não acontece em seres inanimados. Uma planta possui um mundo; uma rocha, não.

Agora preocupado em descrever o mundo animal, aqui nos deparamos com uma distinção entre “ao redor” e “meio ambiente”. É de se esperar que um animal dotado de olhos pudesse enxergar os objetos visíveis que estão à sua volta. Porém, sob a autoridade de Jakob von Uëxkull, o filósofo nos diz que o oposto é verdadeiro. Os animais — a princípio, incluindo o homem — , possuem um campo de relação, um “meio ambiente” limitado pelas finalidades biológicas essenciais e individuais deles. O mundo do animal é o seu meio ambiente, esta realidade-restrita à qual ele está adaptado e trancado simultaneamente, pois não é escapável. Este é o campo de relação do qual ele pode ser suporte.

Partindo, enfim, para o ser humano, Pieper distingue no humano a capacidade denominada conhecimento espiritual, cuja tradição filosófica ocidental define como a faculdade de se colocar em relação com a totalidade das coisas existentes. A essência do espírito, segundo o filósofo, é antes a sua capacidade de relação, com a totalidade do ser do que sua característica de não-corporeidade. Espírito é uma capacidade de relação com tal abrangência que suplanta o antes chamado meio ambiente, a realidade restrita pertencente aos animais não-humanos. O espírito possui mundo (no sentido de realidade total), não meio ambiente, pois é da natureza do ser espiritual transcendê-lo.

Sob os escritos de Aristóteles, no qual ele diz que a alma é todo o ser, pode-se afirmar que ela, através do conhecimento (e conhecer significa tornar-se realmente idêntico ao que é conhecido), é tudo, na medida em que se coloca em relação com a totalidade dos seres, visíveis e invisíveis. Qualquer outro ser possui uma participação fragmentária no ser, enquanto o ser espiritual é capaz de apreender a realidade total. Esta natureza essencial do espírito é o que torna a realidade total e o espírito conceitos recíprocos. É o mesmo dizer “as coisas possuem ser” e “as coisas estão remetidas ao espírito”. Também os conceitos “ente” (aquilo que possui ser) e “verdadeiro” tornam-se permutáveis, tomando por verdadeiro, no sentido de verdade da coisa, como aquilo que é conhecido e cognoscível — conhecido através do espírito absoluto, no qual a perfeição do todo completo adquire existência (Dasein), e cognoscível mediante o espírito criado, não-absoluto. —

Outro pontos adicionais importantes são a) ser remetido à totalidade das coisa existentes é um atributo somente de um ser fundado em si mesmo. Pode-se identificar que quanto maior campo de relação de um ser, tanto maior é o grau de interioridade do ser, o grau do ser-em-si. Assim, o maior campo de relação comporta também o modo supremo da fundação em si mesmo. Conforme o grau de interioridade aumenta, tanto maior é a autonomia, a independência do ser. A isto a tradição chama “pessoa”, “personalidade”; e b) aquilo que distingue o ser espiritual do ser não-espiritual não é somente a relação deles com a totalidade das coisas, mas também a essência das coisas. Para o animal, a essência das coisas é oculta. Mas o humano é capaz de apreender o universal, e por isso a alma espiritual possui capacidade infinita.

Expostas as explicações necessárias, o autor regressa às duas questões centrais a que se propõe responder: a) de que espécie é o mundo do homem; e b) que é filosofar. Vamos esclarecer ambas.

a) Destrinchando a primeira resposta, percebemos por São Tomás de Aquino que o homem, enquanto espiritual e corpóreo simultaneamente, encontra a perfeita realização da sua essência na harmonia entre seu aspecto físico e seu aspecto espiritual; esta consonância é que aproxima o homem de Deus. O ser humano, portanto, é necessariamente um intermediário entre o mundo espiritual e o mundo físico. Assim, embora não seja restrito ao mundo do trabalho, também não o elimina totalmente, mas realiza perfeitamente sua essência vivendo num entrelaçamento do “mundo” com o “meio ambiente” (no sentido que o diferencia do mundo). Em certo sentido, portanto, a própria alma humana também é corpórea. O homem vive em um meio ambiente em virtude dos fins vitais imediatos, mas sua natureza espiritual faz seu comportamento, sua cultura, seus hábitos se diferenciarem dos seres não-espirituais;

b) Diante do que foi explicado até aqui, o autor nos concede uma definição do filosofar, e filosofar significa experimentar que o meio ambiente, esta realidade restrita vivida habitualmente, pode ser abalada e superada pela busca da apreensão das essências eternas, da realidade total; ultrapassar o mundo do trabalho em direção à totalidade do ser, vis-à-vis de l’univers. Não nos é possível, entretanto, permanecer neste ato por muito tempo, ignorando o teto sobre nossa cabeça (o mundo do trabalho).

Descrito o filosofar em um aspecto geral, pode-se questionar o que diferencia uma questão filosófica de uma questão não-filosófica. O autor nos sugere que, embora uma questão não-filosófica também possa se remeter à realidade total, ao todo das coisas existentes, a pergunta filosófica é aquela cuja resposta necessariamente deve incluir simultaneamente Deus e o mundo para ser respondida (na medida em que é possível uma resposta), ou seja, a totalidade daquilo que é. A questão filosófica é aquela na qual o espírito perfaz sua essência de entra em conveniência com tudo o que existe.

Foi dito que o humano deve adaptar-se ao meio ambiente e, ao mesmo tempo, estar aberto ao mundo. Entretanto, o autor frisa que, desse fato, não se pode concluir que ambos sejam lugares diferentes. O filósofo não se desloca de um ligar para o outro quando decide filosofar, nem o poeta. Na verdade, o “mundo” acontece no próprio meio-ambiente em que o homem vive. “Saímos” do meio-ambiente quando, diante dos objetos que se nos apresentam, tudo o que parece óbvio é abalado e então se estabelece a admiração, tão própria do conceito de filosofia que não se pode pensá-las separadas — Joseph Pieper, inclusive, propugna que a admiração é o fator essencial que dá início ao filosofar, mas não apenas isso: é ela na verdade a força motriz que faz o pensamento filosófico autêntico perdurar no tempo —; o meio-ambiente é transcendido quando o homem busca entender o objeto em sua essência, em sua totalidade. Aqui, segundo Pieper, ficamos vis-à-vis o caráter não-burguês da filosofia, pois o “aburguesamento” ocorre quando todo o meio-ambiente, sujeito apenas às exigências mais vitais e sensíveis da vida, mostra-se suficiente; o meio-ambiente basta para o burguês. Ele não filosofa porque não julga precisar de nada além daquilo que já possui. O burguês fecha-se para a admiração. Ora, a filosofia vai no caminho contrário: ela é fruto da perda do óbvio e da admiração profunda que se segue à luz inesgotável e inexaurível do ser. Diante do misterioso, ou melhor, do mirandum, arvora a admiração, e com ela, a busca pelo conhecimento da essência das coisas, pelo entendimento do mundo.

Filósofos houve que interpretaram, a partir dos diálogos socráticos, o surgimento da filosofia como a confusão. Hegel, em seu Introdução à Filosofia, afirma que a confusão é seu cerne, e então será necessário abandonar todos os pressupostos para readquirir premissas melhores ou mais verossímeis. Wildebrand, seguindo essa linha, no fundo cartesiana, traduziu filosofia como o enlouquecimento do pensamento em si mesmo.

Embora essa concepção da filosofia como fruto de um fato negativo tenha sido respondida acima — ela é fruto da admiração do mundo, não da confusão do pensamento — , elas arem azo para comentar os dois aspectos (o negativo e o positivo) da admiração. O primeiro, negativo, só se admira quem não sabe e, principalmente, quem entende que não sabe. Para se admirar, é necessária a ignorância acerca do objeto admirado. Nesse sentido, o humano não conhece as coisas tal como Deus e a infinidade presente no ser obriga-nos a nunca chegar numa resposta conclusiva, completa, pois nunca se esgotará o que pode ser conhecido do objeto. Assim, Deus não se admira, pois conhece todas as coisas na sua totalidade. O segundo, positivo, é que, como diz Aristóteles, e também o seguiu a Idade Média, da admiração provém o deleite. Estabelecido nesse entrelaçamento da admiração que nunca se esvai com o deleite que dela vem, o filósofo se vê numa condição de esperança: ele não sabe tudo, mas o quer saber, e nisso se concretiza a plenitude da existência humana. Aqui vemos uma característica própria do homem. Ele não pode saber (como Deus), embora uma aproximação da verdade da coisa efetivamente ocorra, mas ainda pode avançar em direção ao conhecimento da essência das coisas. A admiração também não pode ocorrer nos animais, pois, nas palavras de São Tomás de Aquino, “não pertence à alma sensível se intranquilizar em função do conhecimento das causas”.

Há, na interpretação original da palavra filosofia, ainda um segundo enunciado além daquele que preconiza o amor à sabedoria, cuja lenda atribui a Pitágoras a autoria, e Platão e Aristóteles reiteram. Ocorre uma contraposição entre o philosophos humano e o sophos divino. Por essa via, a filosofia não é somente uma busca amorosa ao conhecimento das coisas, mas está referida à sabedoria tal como Deus a possui.

Destrinchando o que se quer dizer com “sabedoria tal como Deus a possui”, o autor explana o conceito de sabedoria como aquele que conhece a causa suprema (não meramente causa eficiente, mas principalmente causa final). Conhecer absolutamente tudo quer dizer conhecer o princípio e o fim, o de onde e o para quê, a origem constitutiva e a estrutura; compreender o mundo no seu fundamento último. E Deus compreende o mundo a partir de si mesmo como sua causa unitária e última.

Aqui, vemos uma ligação da filosofia à teologia. O objetivo da filosofia é “a compreensão da realidade a partir de um princípio último de unidade”. Porém, é também essencial dela permanecer nesta busca sem as condições de finalizá-la, pois não possui o suporte necessário para tal. Este é um ponto decisivo para a entender a filosofia: ela não é capaz de auferir uma interpretação racional do mundo a partir de um só princípio, e toda tentativa de angariar um sistema fechado do mundo filosoficamente se apresenta como uma pseudofilosofia.

Por fim, o autor nos apresenta uma relação entre a filosofia, a teologia e a tradição. Já foi dito que o filosofar se orienta para o mundo total. No entanto, antecedendo qualquer filosofar, “desde sempre”, na história da humanidade, foi dada ao homem uma interpretação pronta do mundo, que descreva-o em sua totalidade, embora seu entendimento não tenha partido do mesmo ponto que a filosofia. Esta parte, se assim se pode dizer, “debaixo para cima”, das coisas do cotidiano, que fazem parte da nossa experiência empírica; aquela, é uma interpretação de “cima para baixo”, uma interpretação não identificável pelos sentidos, que transcende a experiência cotidiana.

Aqui vemos uma relação de origem entre a filosofia e a teologia. Esta manifesta-se previamente àquela não somente na cronologia histórica, mas também no sentido de princípio originário. Sem uma cosmovisão prévia a partir da qual o todo do mundo é considerado e entendido, a filosofia, entendida como busca amorosa pela sabedoria tal como Deus a possui, não poderia se estabelecer. Aqui vemos uma forte oposição ao racionalismo que, preso ao seu princípio de progresso, colocou o início da filosofia como derrocada da tradição, da fé e da teologia, e propugna que os pré-socráticos estivessem, em verdade, buscando entender o mundo rejeitando sua cosmovisão teológica, coisa que nunca passou pela cabeça deles. A filosofia se inicia por um pressuposto adotado acriticamente e que já abarca o sentido da existência do homem e do mundo. A teologia é necessária para desdobrar de um pensamento filosófico autêntico e verdadeiro, e somente pela ótica cristã encontramos uma teologia verdadeira que nos permita filosofar corretamente.

O autor, na reta final para entender definitivamente o que é filosofar, debruça-se em fazer ponderações sobre o filosofar cristão. Em primeiro lugar, há uma falsa perspectiva popular que trata as soluções filosóficas cristãs como mais límpidas e simples do que aqueles que estão desvincilhados dos pressupostos da revelação cristã. Apesar de assumir acriticamente as verdades da fé, a filosofia cristã tende a ser muito mais tortuosa, pois ela mantém o caráter inconcluso da filosofia. Só ela completa com perfeição e veracidade o sentido da admiração do filosofar. Somente uma filosofia cristã, amparada pelos seus pressupostos teológicos, pode conservar plena e verdadeiramente a inesgotabilidade do conhecimento do ser.

Resta-nos então distinguir mais precisamente uma filosofia cristã de uma filosofia não-cristã. Aqui nos deparamos com uma importante diferença na forma de conhecer algo, que o filósofo nos explicita através de São Tomás de Aquino. Podemos conhecer algo de dois modos distintos, a saber: pelo conhecimento técnico-conceitual, per cognitionem, e pelo conhecimento fundado na afinidade de essência, per connaturalitatem. Pelo primeiro modo, conhece-se algo estranho. Tem-se o conhecimento teórico daquilo de que se fala. Pelo segundo modo, conhece-se aquilo de que faz parte — se podemos dizer assim, tem-se o conhecimento prático. O filosofar cristão não pretende somente que o homem crente saiba discorrer teses, mas também que as sofra, que faça parte dela e viva como se ela fizesse parte de sua vida.

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