Minhocão: gentrificação, produção do espaço urbano e dinâmica urbana.

Alex Sartori
4 min readFeb 26, 2019

--

A discussão em torno do futuro do Minhocão reacendeu o debate sobre a cidade. Em grande parte dos casos, o ele gira em torno da gentrificação da região cortada pelo elevado, mas é feito de forma incompleta e confunde dinâmica urbana com produção do espaço urbano. Entender essa diferença é fundamental para falar sobre gentrificação e procurar formas de combatê-la. Explico abaixo.

Dinâmica urbana é relativa às atividades e às suas transformações. Por exemplo: se há acréscimo de moradores em um bairro, pode-se imaginar que surgirão uma série de novos comércios e serviços para atender a essa crescente demanda. Muitas pessoas comentam que o aparecimento de estabelecimentos “gourmet” gentrificam o bairro, mas na verdade eles são o sintoma de um processo que começou muito antes, que é a produção do espaço urbano.

A produção do espaço urbano é muito mais complexa e é ela que dá suporte para a dinâmica urbana. O espaço urbano está em constante produção, é como uma obra que nunca acaba porque a sociedade muda, as tecnologias avançam, a população cresce e o espaço urbano precisa ser adequado.

Alguns conceitos são importantes para compreender isso:

1. Localização: é um ponto no espaço, pode ser um lote, uma quadra, um bairro, a cidade inteira, uma região ou um planeta, depende da escala em que se trata. Mas o importante é: localizações estabelecem relações entre si e não existem duas idênticas.

2. Valor de uso: são as qualidades que algo ou um espaço tem que permite que seja utilizado para um determinado fim. Podemos imaginar que o espaço adequado para uma fazenda é diferente daquele adequado para a moradia urbana, diferente para indústrias e, também, para escritórios de empresas (não estou falando dos edifícios, mas da localização para esses usos)

3. Valor de troca: é a quantidade de trabalho inserido em algo, ou um espaço. O que é preciso para transformar uma maçã em alimento? Colhe-la, aplicar trabalho sobre ela. O que é preciso para transformar um lugar qualquer em um bairro? Trabalho. E nesse caso não é o trabalho de uma só pessoa, mas de muitas e organizadas, portanto, trabalho social.

Dessa forma, a produção do espaço urbano depende da aplicação de trabalho social e da ação de diversos agentes: o pequeno empreendedor que constrói um conjunto de casinhas, uma imobiliária que constrói um condomínio, o movimento social que reivindica seus direitos, os ambientalistas que exigem mais áreas verdes, os moradores que se opõe à construção de uma linha de metrô, os investidores que pressionam o poder público, os governos que tomam decisões, etc. Cada grupo tem seus interesses, muitas vezes conflituosos, ainda mais quando o espaço urbano é desigual na oferta de infraestrutura e equipamentos como escolas, teatro, cinema, etc.

Quanto mais infraestrutura e equipamentos uma localização possui, maior o seu valor de uso para moradia e trabalho. Evidentemente as pessoas tendem a preferir morar nessas localizações. Mas há mais demanda que oferta. E ai entram as regras do mercado: quanto maior a demanda por uma localização, maior tende a ser o preço da terra. Essa regra básica determina quem vai ficar com uma determinada localização: quem tiver renda suficiente para pagar.

No caso do Minhocão: ao alterar uma via expressa para um parque há alteração do valor de uso das imediações dos seus quase 3km e o torna mais atraente para uso residencial, logo a tendência é aumentar a procura e o custo dos imóveis. O valor dos imóveis pode torná-los inacessíveis a uma parte dos moradores atuais, que seriam substituídos por outros de maior renda.

Em outros termos: a população de maior renda demanda e pode pagar por localizações com maiores valores de uso.

Mas é preciso considerar que nos últimos anos houve uma serie de investimentos no centro: instalação de gás encanado, fibra ótica, estações de metrô, e a praça Roosevelt foi reconstruída. O Plano Diretor de 2014 também alterou a lei de uso e ocupação da região. Isso tudo combinado alterou o valor de uso de todos os arredores do minhocão.

Edifícios construídos após 2010 (verde) e após 2014 (amarelo). Em rosa são retrofits. A Linha branca é o Minhocão. Mapa feito de memória, com ajuda do google Earth.

Por outro lado, se uma favela passa por um processo de regularização fundiária, ela passa a compor a “cidade formal”, aquela dentro das regulações de uso e ocupação, e passa a estar dentro do mercado formal de imóveis, logo seu valor de uso e o preço dos imóveis sofre alterações e pode ocorrer gentrificação da mesma forma que no centro.

Esse processo de transformação das localizações e modificações dos valores de uso é contínuo e desigual. É a produção do espaço urbano. E a forma como ela acontece todos os dias, há muitas décadas nos levou a uma cidade onde, de forma geral, as elites ocupam os bairros mais centrais e as periferias tem menor renda. E esse processo é continuo: a periferia continua em expansão porque os valores do imóveis segue aumentando, mesmo fora do centro.

Por isso não dá para falar que uma obra gentrifica uma bairro. Também não dá para falar que um grupo ou um tipo de comércio gentrificou um bairro. A gentrificação é resultado de um processo complexo e longo de produção do espaço. Ele acontece o tempo todo, ao mesmo tempo em toda a cidade. Somos todos agentes da produção do espaço urbano.

--

--

Alex Sartori

Arquiteto urbanista, mestre em Planejamento Urbano e Territorial, ciclista e fotógrafo amador.