A realidade implodiu a ficção sorrateiramente

“Somos esses personagens de histórias absurdas, em que o mundo está acabando mas a gente não percebe, ou não liga”

Aline Valek
5 min readSep 20, 2016

Ainda bem que vivemos no mesmo tempo. Se essa carta fosse escrita para alguém do futuro, eu não saberia nem por onde começar. Como explicar o que está acontecendo? Como contar como era viver numa época tão louca que difícil distinguir realidade de ficção?

Por isso é um alívio estar escrevendo para uma pessoa contemporânea, imersa nos mesmos tempos loucos que eu. Tempos de ver notícias do nível “Rapaz fantasiado de Homem-Aranha agride policial com pênis de borracha em manifestação”. Eu não saberia explicar para alguém de um futuro distante o contexto em que isso não parece assim tão absurdo; mas eu e você podemos apenas trocar um olhar de entendimento e rir.

Ou talvez seja essa pessoa hipotética do futuro com a qual me imagino conversando que consiga nos explicar melhor o que aconteceu? “Olha, entendo que vocês estavam muito loucos naquela época, meio anestesiados e mais preocupados em transformar tudo em meme, mas daqui dá pra ver claramente que…”

Em tempos em que é mais fácil encontrar Pokémons nas ruas do que alguém que concorde com você, acho que podemos concordar pelo menos que vivemos em um tempo de ruptura.

Alguns dirão que é a ruptura dos tempos de um governo corrupto no poder, embora quem esteja no poder agora tenha o currículo político tão sujo quanto o Rio Pinheiros; outros dirão que é a ruptura da estabilidade democrática, embora a democracia, na história do nosso país, tenha sido a exceção, e não a regra.

Ou seja, continuamos na mesma, só que diferente. Se não faz sentido, é porque esse é realmente o espírito da época. A gente não entende, só sente. Às vezes, nem isso.

E seguimos nossa vida, pegamos o metrô como todos os dias, continuamos a comentar o que está passando na TV, ainda precisamos que alguém num cartório autentique nossa assinatura em três vias para provar que nós somos nós mesmos, se nem nas nossas fotos ou redes sociais (às vezes usando arrobas que dizem mais sobre nós do que nosso nome verdadeiro), nem ali temos mais certeza de quem somos, de tão acostumados que ficamos com nossas versões editadas.

Pegamos Uber e Pokémons. Pagamos as contas e o pato. Trabalhamos e vamos à balada. Reclamamos do trânsito, do trabalho, da operadora de telefonia que não mandou um técnico no dia combinado para consertar a internet. Tomamos remédios e esquecemos. O mundo pegando fogo ao nosso redor, mas é vida que segue.

Futuros distópicos talvez sejam mais parecidos com esse momento de agora do que com alguns cenários imaginados pela ficção. Porque os acontecimentos que levam a uma distopia nunca vêm de uma só vez. A mudança acontece devagar. Tão devagar que permite que a gente simplesmente continue vivendo. Que tenha tempo de se acostumar e achar tudo normal.

Como diz a narradora de uma ficção distópica, “O Conto da Aia”:

“Era assim que vivíamos então? Mas vivíamos como de costume. Todo mundo vive, a maior parte do tempo. Qualquer coisa que esteja acontecendo é de costume. Mesmo isto é de costume agora. Vivíamos, como de costume, por ignorar. Ignorar não é a mesma coisa que ignorância, você tem de se esforçar para fazê-lo. Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de se dar conta.”

Somos esses personagens de histórias absurdas, em que o mundo está acabando mas a gente não percebe, ou não liga, ou vai se deixando levar porque o autor precisa fazer o absurdo acontecer.

E seguimos caminhando nessas cidades cenográficas, em vidas cenográficas, cercados de coisas de mentirinha, em cenários que basta um toque e se esfarelam, porque são apenas uma imitação, como o hambúrguer que é maquiado para parecer maior e mais suculento na foto, mas não serve para comer.

Temos comida de mentira, governos de mentira, ídolos que são reconhecidos sem ter feito bosta nenhuma, risadas e expressões exageradas de afeto quando na verdade não sentimos nada. São dias de farsa.

Hoje mesmo um cara me disse, depois de reclamar de ciclovias e dar grazadeus que o prefeito não vai ser reeleito, que as coisas estão difíceis mas, depois do que aconteceu, vai começar a melhorar. Vai melhorar, vai melhorar, ele dizia e os olhos até brilhavam, o mesmo brilho de quem espera um Papai Noel que nunca vem. Eu estava me perguntando “melhorar PRA QUEM, cara-pálida?”, mas o “vai melhorar, vai melhorar” dito com aquela convicção inabalável quase me convenceu. E isso me chamou a atenção para outra coisa.

Cara, as pessoas só querem acreditar.

Em algo. Em alguém. Em qualquer coisa.

Acreditar que isso é uma democracia, acreditar num currículo inflado, acreditar que a salvação vai vir de cima, acreditar no que dizem os jornais e as propagandas (que ultimamente são indistinguíveis), acreditar que aquele coração dado numa foto sua deitada no sofá significa que alguém se importa com você; acreditar.

E é curioso que com tanta gente querendo desesperadamente acreditar, ainda seja tão difícil viver de ficção. Livros tão cheios de histórias inventadas quanto são difíceis de vender. Porque a imaginação não é o suficiente.

Não basta ler. É preciso injetar o absurdo na veia, respirar o absurdo, sentar ao lado do absurdo no ônibus, morar no absurdo, transar com o absurdo, engravidar do absurdo, viver mergulhada no absurdo, ser o absurdo.

Quanto mais real o absurdo, melhor. E a realidade tem dado uma surra de bunda na ficção em matéria de absurdo. Lemos os livros com um olhar blasé de quem não se impressiona mais com nenhum malabarismo ou plot twist carpado que o autor tente apresentar, se basta dar uma olhada no jornal e, caramba, o Belo achou que a mulher havia sido sequestrada, enquanto ela só estava há horas cagando no banheiro. Tá brabo competir com o mundo real.

O problema é que há verdade demais na ficção. E a realidade simplesmente não pode com isso. Então ela tenta diminui-la, destrui-la, impossibilitá-la. Mas diante dos absurdos do mundo, a literatura ainda é o último refúgio. E é pra lá que vou.

“A minha alucinação

É suportar o dia-a-dia

E meu delírio

É a experiência

Com coisas reais”

– Belchior, “Alucinação”

PS1: Texto originalmente publicado na edição #123 da newsletter Bobagens Imperdíveis. Para receber no seu e-mail, assine aqui.

PS2: O título saiu dos versos de Mariana Lage, em seu livro de poemas Le Self Sélavy.

--

--

Aline Valek

Escritora e ilustradora. Autora do romance "As águas-vivas não sabem de si"