V de Vorazes

As semelhanças entre as distopias criadas por Alan Moore e Suzanne Collins

Aline Valek
7 min readDec 9, 2014

Histórias sobre injustiça mexem com a gente. É difícil não ser tocado por personagens revolucionários quando eles refletem a nossa própria indignação, uma inconformidade às vezes contida, o nosso desejo de mudar as coisas.

Encontramos na figura desses justiceiros, rebeldes e inimigos da ordem a grandiosidade que não sentimos em nós, quando somos tão apequenados pela opressão de quem realmente detém o poder. Podemos nos projetar neles. Podemos nos apropriar de sua força. Podemos vibrar com suas conquistas ainda que na vida real a gente continue a se foder.

Por isso resolvi falar de duas dessas histórias que fizeram muito sucesso e acho que compartilham de uma mesma essência. São muito parecidas, especialmente porque se tratam de revoluções — de lutar contra a injustiça, de se levantar contra o poder e a ordem.

Jogos Vorazes, trilogia escrita por Suzanne Collins e posteriormente adaptada para o cinema (em filmes protagonizados por Jennifer Lawrence) é uma dessas histórias.

Li todos os livros e assisti recentemente ao último filme “A Esperança — Parte 1” (mas calma que não vou comentar o filme com detalhes aqui). Quando Jogos Vorazes começou a estourar, confesso que vi com desconfiança e fiquei com medo de ser mais uma historinha aos moldes de Crepúsculo — mas assim que me percebi enganada, virei fã imediatamente.

Na época, até escrevi um texto sobre a série de livros e conto por que me surpreendi com a trilogia de Suzanne Collins: ela conseguiu criar não apenas um universo rico e assustador, mas também uma trama sobre xóvens que não gira em torno de romance; além disso, também me surpreendi com o fato de um livro tão violento e extremamente político ser direcionado a adolescentes.

O primeiro filme até que foi bem ameno, enquanto do livro escorria sangue (claro que isso foi evoluindo, de forma que esse último filme é muito violento. Achei pesadíssimo, filme de guerra mesmo. Algumas cenas até pareciam tiradas do jogo Counter Strike).

Cena de Jogos Vorazes: A Esperança — Parte 1. Não deve nada aos filmes de guerra.

A história é escrita por uma mulher, protagonizada por uma mulher e vendida para um público adolescente, o que pode fazer com que muita gente não leve Jogos Vorazes a sério, considere uma história menor, coisa boba.

Para essas pessoas, talvez eu vá cometer uma heresia agora ao ousar comparar com outra história sobre revolução e política que já foi alçada ao status de cult: V de Vingança.

V de Vingança é uma história em quadrinhos criada por Alan Moore e também teve sua adaptação para o cinema (com Hugo “Agente Smith” Weaving e Natalie Portman, como não amar?). Basicamente, é a história de um terrorista mascarado de peruquinha que quer acabar com o estado fascista da Inglaterra distópica de Moore e se vingar dos algozes que o torturaram.

O simbolismo é a primeira das semelhanças entre essas duas histórias. V de Vingança é, sem dúvidas, um marco, especialmente por ter se transformado um símbolo de anarquia, revolução, protesto. É emblemática a cena em que os cidadãos de Londres saem às ruas usando a máscara de V, que conseguiu transcender a ficção e invadir manifestações na vida real.

Nesse sentido, Jogos Vorazes também pode se considerar um símbolo: o filme mais recente não foi exibido na Tailândia porque os cidadãos que se opõem ao golpe militar que houve em maio no país começaram a usar a saudação do Distrito 12 como sinal de protesto. Teve até prisão de estudantes que fizeram esse gesto em público — exatamente o que o presidente Snow faz contra seus opositores.

Ativista na Tailândia foi detida por usar o gesto do Distrito 12 como protesto

(acho que isso já seria o suficiente para mostrar a força política contida em Jogos Vorazes, né. Mas aí vai mais uma: nos protestos em Ferguson contra a morte de pessoas negras por policiais brancos, a frase de Katniss “if we burn, you burn with us” foi encontrada pichada em muros.)

O “símbolo” é especialmente importante em ambas as histórias: V e Katniss encarnam esse símbolo de enfrentamento ao poder, embora de formas diversas.

V não mostra o rosto, não se sabe quem é — o que ele usa a seu favor para enganar a polícia e se tornar mei que “imortal”; ele chega a dizer “você acha que pode me matar? Não há carne e osso por trás dessa capa que você possa matar. Há apenas uma ideia. E ideias são à prova de balas”.

Já Katniss se torna o símbolo da revolução justamente por ser um rosto, por ser uma pessoa de carne e osso que deu a cara à tapa e desafiou a Capital na frente de todo mundo. Aliás, essa é a premissa do terceiro filme (e livro): ela se tornar o Tordo que vai guiar a rebelião, usando sua própria imagem como arma.

No entanto, as semelhanças entre V e Katniss não vão muito além; acho que V tem muito mais a ver com Snow do que com o Tordo. “Mas Aline, Snow é o cara mau, o tirano, etc!” Sim. Mas convenhamos que V não é exatamente um herói.

V não é o mocinho. V não é um revolucionário preocupado com o povo em primeiro lugar. Ele simplesmente busca vingança, promovendo morte e caos. Porque faz parte do seu processo de vingança fazer com que, através de tortura e sofrimento, outras pessoas compartilhem de seus ideais; afinal, ele acredita que a “iluminação” que ele alcançou só foi possível através da dor — e é o que ele busca fazer com os outros, até com quem ele diz amar, Evey.

Cena do filme V de Vingança: V e Evey

Além disso, V e Snow são unidos por algumas semelhanças curiosas (apesar de um ser anarquista e o outro um ditador): ambos são homens muito eruditos, com gostos sofisticados; ambos usam rosas para ameaçar seus inimigos e como um aviso de morte (V usa rosas vermelhas e Snow, brancas); e, por fim, ambos são conhecidos por matar seus inimigos com veneno (V chega a matar um bispo fazendo-o engolir uma hóstia envenenada).

Katniss guarda alguma semelhança com Evey. Primeiro, porque nenhuma das duas, por mais marcadas que tenham sido pela tirania de seus mundos, tinha a intenção de fazer revolução; Katniss se voluntariou para os Jogos Vorazes para ir no lugar da irmã mais nova, enquanto Evey foi “resgatada” por V depois de ser atacada por policiais. As duas foram empurradas para o meio dessa história meio sem querer, mas acabaram se tornando as peças protagonistas na execução dos planos rebeldes (seja do Distrito 13 ou de um terrorista anônimo).

Outra: Katniss e Evey foram o tempo inteiro manipuladas para cumprir esses planos. Foram torturadas física e psicologicamente para se tornarem parte da revolução — e como podem dizer que V é um herói depois do que ele fez a Evey? Elas foram transfiguradas. Toda a violência que sofreram, todo o sofrimento a que foram expostas, toda a dor e raiva de um sistema opressor foram se acumulando para transformá-las. É o que as fortalece — ou o que eventualmente as arruina?

Há alguns outros detalhes deliciosos que as duas histórias compartilham: na distopia de Moore, o governo tirânico se divide em departamentos nomeados como partes do corpo humano — The Voice (a mídia), The Head (o centro de comando), The Fingers (ou “dedos”, a força policial). A divisão em distritos de Panem obedece à mesma lógica e Snow chega a evidenciar isso em seu discurso: “os distritos são o corpo. A Capital é o coração pulsante. Seu trabalho duro nos sustenta e, em retorno, nós os alimentamos e protegemos.”

É genial como Moore e Collins mostram o sistema político opressor como um corpo. Uma unidade bem coordenada, gigante, capaz de esmagar as pessoas embaixo dela. Claro que a força desse corpo se manifesta também de formas diferentes: em V de Vingança seu poder está estruturado no controle, enquanto em Jogos Vorazes está estruturado na desigualdade.

Sem falar que as duas histórias estão cheias de intrigas políticas e muita violência (embora eu ache muito mais chocante a forma como adolescentes e crianças são assassinadas pela Capital em nome do entretenimento em Jogos Vorazes).

São histórias que tocam fundo na ferida, com uma crítica política e social que vai fazer com que sejam lembradas durante anos, enquanto puderem dialogar com o revolucionário que há dentro de nós.

E como não levar a sério uma história que traduz tão bem o grito dos oprimidos?

“If we burn, you burn with us”.

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Aline Valek

Escritora e ilustradora. Autora do romance "As águas-vivas não sabem de si"