Studium e Punctum: notas sobre fotografia por Roland Barthes

Aline Zorzo
24 min readNov 10, 2018

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Conforme Susan Sontang, em texto publicado em 1968 como prefácio do livro “O grau zero da escrita”, “seria uma redução absurda descrever Roland Barthes apenas como crítico literário”. Além de teórico, foi filósofo, lingüista, crítico e semiólogo. Ou mais, ainda nas palavras de Sontang:

“Um homem de aprendizado prodigioso, de inquebrável energia mental e sensibilidade extremamente original, […] crítico de teatro, sociólogo, meta-psicólogo, crítico social, historiador de ideias e jornalista cultural. […] Barthes é o crítico mais consistente, importante e útil — no sentido mais alongado do termo — que emergiu nos últimos quinze anos”.

Em suma, é um escritor que desafia classificações.

Roland Barthes

Com um posicionamento questionador e um tanto rebelde, Barthes sempre escreveu fora das normas estabelecidas, explorando temas polêmicos e lutando contra ideias pré-concebidas. A teoria bartheasiana é mutante, o que reflete uma obra rica de variados campos de pensamento, enfocando um corpus extremamente diversificado, como a literatura, a autoria, os sistemas de signos culturais, o noticiário, a propaganda, a moda, a fotografia, entre outros. Movido sempre pelo desejo, Barthes acabou sendo seduzido por inúmeros assuntos, alias é possível afirmar que a sedução acaba por ser um sujeito bastante presente em sua obra.

Nascido em Cherbough, na baixa-Normandia, em 12 de Novembro de 1915, mudou-se para Bayonne ainda muito novo, devido à morte prematura de seu pai em uma batalha da Primeira Guerra Mundial. Foi em Bayonne, na fronteira espanhola, que Barthes passou sua primeira infância, até se mudar para Paris em 1924. O início de sua idade adulta foi marcado por dois fatos inter-relacionados: seu evidente brilho e promessa como estudante e, a partir de 1934, seu problema de saúde (tuberculose pulmonar), que exigiu tratamento prolongado em sanatórios isolados até meados dos anos 50. Devido à doença, Barthes não pôde completar os prestigiosos exames de admissão que permitem que os estudiosos franceses obtenham postos nas universidades renomadas. Como consequência, a carreira acadêmica de Barthes não teve uma trajetória linear e tradicional como ocorria aos demais intelectuais franceses.

Barthes finalizou seus estudos na Sorbonne, graduando-se em letras clássicas, gramática e filosofia, entre os anos de 1939 e 1943. Ainda jovem, começa a lecionar cursos de curta duração em centros de ensinos e pesquisa de menor porte. Também se envolve em um grupo teatral universitário, que lhe permitiu estreito contato com peças teatrais. Como Sontang observa em outra publicação a respeito de autor: “[…] algo do teatro, um amor profundo pelas aparências, colore seu trabalho quando ele começou a exercer, com força total, sua vocação de escritor. Seu senso de ideias era dramatúrgico: uma ideia sempre estava em concorrência com outra ideia.”

Nos anos do pós-guerra, à sombra das questões éticas de Sartre, Barthes passa a ser reconhecido com manifestos sobre o que é literatura (“O grau zero da escrita”, 1953) e retratos espirituosos dos ídolos burgueses (ensaios inicialmente publicados na revista francesa “Les lettres Nouvelles” e posteriormente coletados em “Mitologias”, 1957). Foi nesta coletânea de ensaios que Barthes aborda pela primeira vez o tema da fotografia. Destaca-se, entre tantos, o da “Fotogenia Eleitoral”, em que Barthes, por meio de um discurso sarcástico, discorre sobre o caráter mítico construído para os retratos dos políticos em suas campanhas eleitorais. Seu objetivo era desmascarar a naturalização que tanto a mídia, as artes e o senso comum davam à realidade. Nos trabalhos publicados em “Mitologias” é possível notar a presença de traços do trabalho do lingüista suíço Ferdinand de Saussure, bem como um marxismo inspirado em Brecht quem, como ele diz em um prefácio de 1970, vê o “inimigo essencial” como “a norma burguesa”.

Em 1960, sua carreira começou a ganhar estabilidade em termos de emprego permanente e reconhecimento acadêmico, quando foi nomeado Diretor de Estudos na École Pratique des Hautes Études (EPHE). Neste período, escreve “A Mensagem Fotográfica”, 1961, um texto sobre a fotografia da imprensa como um tipo de mensagem ideológica orquestrada por seus criadores e distribuidores. Em 1964, em ensaio intitulado “Retórica da Imagem”, Barthes retorna à mesma problemática, mas desta vez tomando como objeto de análise uma imagem publicitária. Nesse texto, analisa de que modo a fotografia opera como linguagem e, para tanto, utiliza-se do exame minucioso de um anúncio para molho de macarrão, no qual escancara a possibilidade de se extrair diferentes mensagens. Um pouco mais tarde, em 1975, em “Roland Barthes de Roland Barthes”, ele inaugura a “peça” imagem-texto, abrindo com uma série de fotografias pessoais acompanhadas de legendas eruditas e meditativas.

A aceitação de Barthes na cadeira de semiologia literária no Collège de France acontece somente em 1976, evento que demandou esforços de figuras como Michel Foucault, uma vez que sua candidatura era escrutinada por intelectuais e professores pouco à vontade com sua variada obra e seu caráter “impuro” (como ele mesmo se intitula em sua Aula Inaugural, proferida em 07 de janeiro de 1977, no Collège de France). Naquele mesmo ano, em “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, elabora um sofisticado estudo lingüístico sobre o sentimentalismo, transformando-se assim num famoso sucesso.

Dentro do Collège de France, ministrou quatro cursos anuais (Como viver junto, O Neutro e A preparação do romance 1 e 2). Sua Aula inaugural defendendo e ilustrando “o sabor da sabedoria”, acaba se tornando seu testamento intelectual. Tinha apenas 64 anos quando foi atropelado por uma caminhonete, ao atravessar a Rue des Écoles, em Paris. Foi hospitalizado, mas morreria de complicações decorrentes do acidente, exatamente um mês depois, em 26 de março de 1980. Seu último livro, “A câmara clara — notas sobre a fotografia”, foi publicado postumamente, naquele mesmo ano. Além desta, outras coleções póstumas de seus escritos foram publicadas, incluindo “A Barthes Reader”, 1982, editado por sua amiga e admiradora Susan Sontag e “Diário de Luto”, 2009, livro organizado por Nathalie Léger que reúne 330 anotações breves do escritor sobre o sofrimento em decorrência da morte de sua mãe.

O que motivou Barthes a escrever a “A Câmara Clara”?

O livro “A Câmera Clara” surgiu como uma promessa de escrever um “breve texto sobre fotografia” para a revista “Cahiers du Cinéma”. Naquele período, Barthes vivia sob o luto de sua mãe, Henriette Barthes, que havia morrido no dia 25 de outubro de 1977. Dentro desse contexto, não é por um acaso que Barthes batizou aquele que seria seu último curso — o terceiro dado no Collège — de “A Preparação do Romance”. Nas aulas, meditava sobre as possibilidades de reinvenção do trabalho intelectual na literatura. O tempo do luto era, para Barthes, o tempo de gestação de uma nova forma de escrita em sua obra, que ele batizou de “romance”, mas que não necessariamente obedeceria às regras do gênero. Assim como Proust, que, em crise pela morte da mãe, hesita entre o ensaio que vinha praticando e o romance que iria consagrá-lo, Roland Barthes impõe-se tal reflexão que viria a reunir, em um único texto, todos os temas que o rondavam e o feriam — fotografia, lembrança e morte. Barthes iniciou seu manuscrito em 15 de abril de 1979 e o finalizou, como ele nos diz em uma nota de conclusão do livro, apenas quarenta e nove dias depois, em 3 de junho. Tal inferência sugere que o livro foi escrito em alta velocidade, implicando, por sua vez, um fluxo de pensamento não ensaiado e quase em tom de conversa.

O manuscrito incorporou a diversa gama de leitura de Barthes, de modo que é possível encontrar em uma única página da obra, referências ao trabalho do psicanalista Jacques Lacan e um livro sobre o budismo zen (Barthes, 1984, p.13). Outras páginas reconhecem a influência de Italo Calvino, Proust, Paul Valéry e, claro, Sartre. Sua bibliografia também inclui trabalhos filosóficos de Julia Kristeva, Jean-François Lyotard, Philippe Lacoue-Labarthe e Edmund Husserl, bem como livros sobre fotografia de Raul Beceyro, Pierre Bourdieu, Susan Sontag e Gisèle Freund. Barthes também consultou a edição de 1964 de “The History of Photography” de Beaumont Newhall e a edição de novembro de 1977 de “Le nouvel observateur”, que continha, entre outras coisas, uma tradução francesa do ensaio de Walter Benjamin de 1931 “Pequena História da Fotografia” (texto este que não é mencionado por Barthes em sua bibliografia).

Repercussão da publicação:

Certamente um dos livros mais citados no cânon fotográfico dos últimos tempos, a onipresença e repercussão de “A Câmara Clara” inicia-se em 1997, quando aparece o livro de Nancy Shawcross “Roland Barthes on Photography: The Critical Tradition in Perspective” oferecendo uma visão provocativa do tema. O foco de Shawcross neste livro é localizar “A Câmera Clara” em relação aos temas encontrados em outras obras de Barthes, bem como posicioná-la em relação aos escritos de predecessores como Charles Baudelaire e contemporâneos como Marguerite Duras.

Mais tarde, no mesmo ano, foi publicada uma antologia de ensaios editada por Jean-Michel Rabaté. Baseada em uma palestra realizada na Universidade da Pensilvânia em 1994, “Writing the Image after Roland Barthes” compreendeu 19 artigos sobre vários aspectos do trabalho de Barthes, incluindo sua leitura sobre fotografia.

Outra reconhecida antologia publicada é a “Critical Essays on Roland Barthes”, editada por Diana Knight, lançada nos anos 2000. A preocupação central deste livro foi reunir num único volume, as principais críticas prestadas pelos autores franceses ao “A Câmara Clara”. Neste livro aparecem ensaios como “As mortes de Roland Barthes” de Jacques Derrida, que surge velando a obra de Barthes e serve de ponto inaugural para uma série de outros ensaios de luto que escreveria posteriormente.

Do ponto de vista do debate anglo-americano, a coletânea editada por Geoffrey Batchen, professor de fotografia da City University of New York, mapeia o impacto imediato e longevo que “A Câmara Clara” teve e continua a ter no contexto de língua inglesa. Com contribuições de professores norte-americanos e britânicos de teoria literária, história da fotografia, artes visuais e outros campos das humanidades, “Photography degree zero. Reflections on Roland Barthes’s Camera Lucida” é uma compilação de 14 artigos previamente publicados em livros e periódicos.

A câmara clara estrutura-se a partir de quarenta e oito breves textos, divididos em duas partes de 24 cada, como se fosse idealizado a partir de dois rolos fílmicos. E, numa simetria quase perfeita, inseriu também 24 fotografias, sendo 15 delas na primeira parte e nove na segunda.

Parte I : Introdução

Na primeira parte do texto Barthes desmonta a imagem fotográfica pré-concebida e propõe, numa posição menos intelectual e mais selvagem, uma busca pelo traço essencial da Fotografia, sempre movido por um desejo que ele denomina como sendo ‘ontológico’: “eu queria saber a qualquer preço o que ela era “em si”, por que traço essencial ela se distinguia da comunidade das imagens.” (p.12)

Barthes define a fotografia como algo inclassificável pelo fato de reproduzir um momento, que, repetido mecanicamente, jamais se reeditará existencialmente. Como contingência soberana, a fotografia revela sempre o real, o que de fato é, trazendo sempre consigo seu referente. Dessa forma, o referente da fotografia não se distingue de imediato dela mesma, pois, para tanto, exige um ato segundo de saber ou de reflexão. “Por natureza, a Fotografia tem algo da tautológico: um cachimbo, nela, é sempre um cachimbo, intransigentemente.” (p.15) Barthes diz que essa constante presença do referente leva a fotografia para todos os objetos do mundo — o fotógrafo escolhe tal objeto, tal instante, tal lugar — fato que a reforça como sendo inclassificável, pois não há razão ou explicação para marcar tal ocorrência. A fotografia, assim, é privada do princípio de marcação (principio fundamental do signo) e tornar-se, portanto, um signo que não prospera bem, que “coalha, como o leite.” (p.16)

Como o referente adere, há uma enorme dificuldade de acomodação da vista à fotografia. Os livros que falam dela são obrigados a acomodar a vista muito perto (os técnicos), ou muito longe (os históricos ou sociológicos). Barthes constata a inexistência de livros que tratassem das fotos sob o ponto de vista que o emocionavam, que lhe davam prazer. Tal noção lhe induz a tornar-se, então, mediador de toda a Fotografia: comprometido à uma força da ordem dos afetos, capaz de resistir aos sistemas redutores. “Aceitei então tomar-me por mediador de toda a Fotografia: eu tentaria formular, a partir de alguns movimentos pessoais, o traço fundamental, o universal sem o qual não haveria Fotografia.” (p.19)

Ao colocar o próprio corpo neste jogo, Barthes observa que a foto pode ser objeto de três práticas: há o fazer, cujo sujeito é o Operator, o fotógrafo; o olhar do Spectator, que somos nós, o observador, aquele que consome as imagens; e enfim, o suporte, o alvo, o referente, o fotografado: o Spectrum.

O “Spectrum” Barthes: o encontro com a morbidez da fotografia

Por não ser fotógrafo, escapa-lhe a emoção do Operator, sobrando-lhe duas emoções: a do sujeito olhado e a do que olha. Como sujeito olhado (Spectrum), Barthes observa que seu “eu” não coincide com sua imagem, pois ela é pesada, imóvel, obstinada, enquanto seu verdadeiro “eu” é leve, dividido, disperso. O ato de posar sugere uma mortificação do seu corpo, uma espécie de transformação do sujeito em objeto. Esse instante fotográfico em que o sujeito se torna objeto é interpretado por Barthes como uma microexperiência da morte, revelando-se assim a camada mortífera da pose (ainda que exista um sentido oposto: refere-se aqui ao nascimento da imagem a partir do campo imaginário). De maneira alguma, Barthes banaliza ou naturaliza tal relação de ver-se a si mesmo, fato que o motivou a aprofundar-se ainda mais em fotografia, essa coisa que ao mesmo tempo é o “advento de mim mesmo como outro” (p.25), produzindo a partir desse outro um objeto, um spectro. Comparando-a a um relógio de ver, Barthes nos afirma, desde o início de seu livro, que o êidos da Fotografia é apontar para a Morte.

O “Spectator” Barthes: o encontro do studium e punctum na fotografia

Ainda na busca de entendimento desse sentimento proporcionado pela fotografia, Barthes reflete: seria fascinação, atração? interesse? Substantivos ainda insuficientes — todos, segundo ele, ainda “frouxos, heterogêneos” (p.35). Apega-se, portanto, às fotos pelas quais se interessa muito, que lhe dão o estalo, que lhe despertam sentimento de aventura, e descarta as que lhe são indiferentes.

“O principio da aventura permite-me fazer a Fotografia existir” (p.36), revela. Movido por esta animação, o spectator Barthes expande sua análise fotográfica e revela “Como Spectator, eu só me interessava pela Fotografia por “sentimento”, eu queria aprofunda-la, não como uma questão, mas como uma ferida “vejo, sinto, portanto noto, olho e penso.”(p.39)

Ao ver a foto da Nicarágua de Koen Wessing (p.41) Barthes pressente uma regra estrutural que servirá de chave de leitura para sua narrativa fotográfica. Na foto, há uma espécie de dualidade, de co-presença de dois elementos que seriam nomeados adiante de Studium e Punctum.

Koen Wessing-Nicaragua 1979

Studium, palavra latina que a priori remete à ideia de estudo, carrega em si um significado mais complexo, pois é simultaneamente um sentimento de vastidão, pertencente ao campo do gosto inconsequente e, ao mesmo tempo, interesse histórico, que pode ser percebido em função da cultura, remetendo sempre a uma informação clássica. Studium seria um sentimento que, às vezes, proporciona emoção, mas sempre margeado pelo “revezamento judicioso de uma cultura moral e política”(p.45) Barthes define o studium como uma experiência de afeto médio, sendo justamente ele o responsável por seu interesse em muitas fotografias. “Reconhecer o studium é fatalmente encontrar intenções do fotógrafo” (p.48); o que permite a leitura dos seus mitos, que visam evidentemente a “reconciliar a Fotografia e a sociedade.” (p.48) O studium, enquanto desprovido de um punctum, gera um tipo de foto muito difundida, que Barthes chama de fotografia unária. É unária pois seria uma foto que transforma a realidade sem duplicá-la — sua ênfase engendra uma força de coesão. Um bom exemplo de fotos unárias são as de reportagens — esta pode gritar e não ferir. A fotografia unária sugere, portanto, uma busca por unidade, um toque de banal. Nesse espaço unário, às vezes, um detalhe sobressai. É desse detalhe que advém o punctum.

Sendo assim, o Punctum pode ser lido como um elemento ativo, da ordem do aparecimento, jamais um sentimento buscado, possuindo o caráter de incodificável. Como uma flecha, o punctum é aquilo que penetra, que transpassa, que fere. Remete também à ideia de pontuação, como se algumas fotos fossem pontuadas por pontos sensíveis. “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere).” (p.46)

Barthes continua alargando seu pensamento sobre a Fotografia revelando-a como um “material do saber etnológico” (p.49), pois uma vez contingente, é sempre alguma coisa representada, fornecendo de imediato detalhes de um lugar, de uma época, de um povo. Ao observar a foto de William Klein, “Primeiro de Maio de 1959” em Moscou (p.50), identifica que ela permite o acesso a um “infra-saber” (p.51), que se apropria dessa parte fetichista e curiosa do “eu”.

Não é pela pintura, mas pelo teatro, que a Fotografia tem a ver com a arte, diz Barthes. A foto se aproxima do teatro uma vez que ambas cultuam a morte. Os primeiros atores desempenhavam papeis dos mortos, uma vez no placo, o ator está ao mesmo tempo vivo e morto. A Foto pra ele é assim — como um teatro primitivo, “como um quadro vivo, a figuração da face imóvel e pintada sob o qual vemos os mortos.” (p.54) Outro valor dado à fotografia é o da máscara, expressão emprestada de Calvino para revelar o poder que uma foto tem de criar uma face, transformando-a num produto de sua sociedade e de sua história. Desse ponto de vista, acaba revelando um caráter subversivo da fotografia. Ao analisar a imagem de Sander (Notário p.61), Barthes retoma suas reflexões de matriz brechtiniana (uma extensão àquelas inauguradas nos ensaios de Mitologias). O que ele revela nesse ponto do texto é o caráter hostil da fotografia em virtude da “fraqueza de seu poder crítico” (p.62). A Fotografia é justamente consumida mais esteticamente do que politicamente pelo fato de carregar em si o perigo de induzir a pensar.

Agora, numa meditação freudiana sobre a Fotografia, toma por exemplo a foto da paisagem de predileção para expressar seu caráter uterino, acolhedor, metafísico, que simultaneamente sugere “um estado de estar aí ou querer estar aí” (p.65). Ao tratar da mãe, Barthes começa a dar sinais de seu pensamento psicanalítico que ser revelaria ainda mais profundo na segunda parte do livro.

Ainda em tom psicanalítico, Barthes revela: “ao dar exemplos de punctum é, de certa modo, entregar-me.” (p.69) De fato ele tem razão: o ato de colocar-se disponível para o aparecimento do punctum é, à luz de uma sessão lacaniana, um entregar-se às associações livres, capazes de desafiar as emoções, de proporcionar o encontro com o desejo reprimido, com as memórias enterradas, um modo de refletir sobre as próprias feridas.

Na fotografia das duas crianças anormais de Lewis H. Hine (p.79), Barthes revela-se mais como um “selvagem, uma criança ou um maníaco.” (p.78) Nessa passagem do livro, ele inicia sua aproximação ao leitor, que chegará ao limite na segunda parte. A partir deste ponto, torna-se possível o entendimento do que de fato é a impureza barthesiana, impureza esta que permite penetrá-lo, algo difícil de extrair dos clássicos acadêmicos. O que Barthes vê nesta foto não é óbvio, mas o detalhe descentrado, incodificável, o punctum revela-se na gola do menino e no curativo do dedo da menina.

Lewis H. Hine. New Jersey, 1924

Ainda sobre a subjetividade do punctum, Barthes medita sobre a necessidade de distanciamento que, por vezes, este exige para ser atingido. Em outras palavras, é necessário um distanciamento da imagem, um “fechar os olhos” para que seja possível vê-lo ou senti-lo. Neste ponto, ele faz uma alusão ao que Kafka diz sobre seu livro “Fotografam-se coisas pra expulsá-las do espírito. Minhas histórias são uma maneira de fechar os olhos.” (p.84) É bela a relação que traça entre fotografia e necessidade do silêncio — a foto ganha a capacidade de tocar diante da possibilidade de “deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva.” (p.85)

Talvez numa tentativa de chegar ao grau zero desse conceito, Barthes se aprofunda no puctum, ao passo que chega a compará-lo ao cinema. Segundo o autor, a tela no cinema é um esconderijo, uma espécie de campo cego, o que estaria, a principio, ausente na fotografia, pois, como um objeto imóvel, não permite visão parcial. Barthes surpreende ao revelar que o punctum é justamente o campo cego da Fotografia, pois é capaz de libertar os objetos imobilizados, criando, a partir do campo do imaginário, o inexistente em sua realidade. O punctum seria, portanto, a capacidade de dar vida exterior àqueles sujeitos condenados à uma eterna prisão.

Após traçar essa história pessoal da visualidade, apresentando o seu olhar sobre a essência fotográfica, declara, ainda não satisfeito, que não era nada do que queria dizer. Ao final da parte I do livro, renuncia de vez à semiologia e se encaminha para a exploração direta de seu imaginário, dizendo que era preciso fazer a sua “palinódia” (p.91): o que sugere mudança de opinião, retratação, ou até uma forma arcaica de poema a que renuncia e tenta consertar tudo o que foi dito anteriormente.

Parte II : A fotografia do Jardim de Inverno

Desde o início de “A câmara Clara”, o Tempo, a Fotografia e a Morte são os fantasmas, talvez os personagens de uma mitologia que ele busca instaurar. Marcados em maiúsculas, estão lá, desde o começo, desde o primeiro fragmento. Outra maiúscula importante revelada na parte II do livro é a Fotografia do Jardim de Inverno.

Ao início da segunda parte, Barthes anuncia a grande busca: “Ora, numa noite de novembro, pouco tempo depois da morte de minha mãe, organizei as fotos.” (p.95) A partir daí, a narrativa se desloca para uma espécie de diário, em que Barthes remonta seus dias de luto após a morte da mãe, o que pode levar o leitor (espectador) ao entendimento de que ele chega à fotografia devido à impossibilidade de falar da dor.

Ao longo desses fragmentos nos quais busca “a foto”, Barthes conta de maneira emocionada a sua tentativa de reconhecer a mãe. Como ele diz “A fotografia me obrigada assim a um trabalho doloroso; voltado para a essência de sua identidade, eu me debatia em meio a imagens parcialmente verdadeiras e portanto, totalmente falsa […]”,“é quase ela!” (p.99) Entre tantas fotos ele se depara, enfim, com a “Fotografia do Jardim de Inverno”, uma fotografia de um tempo que ele não viveu, pertencente ao período mais rico da história de quem amava, a infância de sua mãe. Ao rever as fotos, no sentido em que os gregos penetravam na Morte: “caminhando para trás” (p.106), o amor barthesiano surge pulsante ao recuperar a infância de sua mãe. Compara a primeira e a última de suas fotos, abraçando, assim, a totalidade de sua alma. Não é por acaso, porém, que Barthes realiza esse movimento de inverter a ordem cronológica das fotos. Ele fazia o mesmo gesto, na medida em que cuidava de sua mãe doente. Assim, a última imagem que tinha de sua mãe era como se fora sua filha, a mesma imagem presente na criança do Jardim de Inverno. “Eu resolvia assim, à minha maneira, a Morte.” (p.108)

Entre tantas fotos, a do Jardim de Inverno é a única que não é mostrada, mas como Barthes nos ensina no início do livro, a foto não prescinde do olhar, para vê-la, é preciso renunciar a imagem, fechar os olhos. Como Derrida descreveria posteriormente em seu livro “Chaque fois unique, la fin du monde” (2003), a Fotografia do Jardim de Inverno “é o punctum de todo o livro”. Para uma interpretação alternativa, ou melhor, usando um trocadilho, kafkaniana, vale ler o artigo de Margaret Iversen “What is a photograph?” (publicado no livro Photography degree zero).

O noema, Isso-Foi: o punctum da Fotografia

Agora dominado pela verdade da imagem, Barthes reafirma sua ideia original de que “toda foto é de alguma forma co-natural a seu referente.”(p.114) Ele nomeia “referente fotográfico, não a coisa facultativamente real, a que remete a uma imagem ou signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia.”(p115) Na fotografia, jamais pode-se negar que a “coisa esteve lá” no passado. A foto é literalmente uma emanação do referente. O real e o passado, duas determinantes que só existem na fotografia, aparecem, portanto, conformando o noema da fotografia. “O que intencionalizo em uma foto não é a Arte, nem a Comunicação, é a Referência, ordem fundadora da Fotografia.” (p.115) Barthes, assim, batiza o noema da Fotografia como: “Isso-foi” ou ainda: o Intratável” (p115). Em latim seria “interfuit”, ou seja, isso que vejo encontrou-se lá, nesse passado entre o infinito e o sujeito (o operator e o spectator).” (p.115–16)

Ainda sobre a natureza da fotografia, Barthes dirá que o que funda sua essência fotográfica é a pose. É na interrupção do movimento que se constitui a pose, o “instante, por mais breve que seja, no qual uma coisa real se tornou imóvel diante do olho.” (p.117) Barthes continua: “Na fotografia a presença da coisa (em um certo momento do passado) jamais é metafórica […] a não ser quando se fotogravam cadáveres” (p.118) Desse modo, a imobilidade acaba resultando na confusão entre dois conceitos: o Real e o Vivo. Ao atestar que o objeto foi real, acredita-se que ele está vivo, mas ao transpor o real para o passado, a foto sugere que “isto-foi”, isto é, que já existiu e está morto. Assim, Barthes conclui, “o traço inimitável da Fotografia (seu noema) é que alguém viu o referente (mesmo que se trate de objeto) em carne e osso, ou ainda em pessoa.” (p.118) A intensidade, ou melhor, a violência do noema revela-se na foto de William Casby, “nascido escravo” (fotografado por Avedon), “pois aquele que vejo aí foi escravo: ele certifica que a escravidão existiu, […] e o certifica, não por testemunhos históricos, mas por uma ordem nova de provas.” (p.119)

A Ordem Metafísica da Fotografia

Sobre a criação da fotografia, Barthes entrega os méritos aos químicos, uma vez que sua existência se deve a uma circunstância científica, capaz de permitir a captação da luz, emiti-la num objeto e imprimi-la num papel fotográfico.

O que de fato escandaliza Barthes na fotografia é o seu caráter testemunhal, menos de lembrança, uma vez que ela atesta a existência das coisas. Em seu texto, consegue verbalizar sentimentos que muitos nutrem pela fotografia, mas que poucos conseguem expressar. Quando ele se refere a uma fotografia anônima, como por exemplo a de um casamento inglês, logo olha a data (1910) e imagina: estão todos mortos! “A data faz parte da foto: não porque ela denote um estilo […], mas porque ela faz erguer a cabeça, oferece ao cálculo a vida, a morte, a inexorável extinção das gerações.” (p.125) Este lugar, de se colocar como ponto de referência da fotografia, possibilita o enfrentamento de questões existenciais como “por que será que vivo aqui e agora?” (p.125) A fotografia, mais do que qualquer outra arte, propõe uma presença imediata no mundo, presença esta que pode ser tanto de natureza política e/ou metafísica.

Somente um sujeito impuro como Barthes seria capaz de ensinar a olhar uma fotografia e analisá-la de modo sensível. Longe dos obscurantismos acadêmicos, ele narra a verdade e estabelece essa ponte escritor-leitor, ainda que carregada de profundidade e complexas referências. A leitura de Barthes da foto “Ernest”, de A. Kertész, mostra como é possível construir narrativas por meio de imagens, uma boa forma dele incentivar seus leitores a se aventurarem na invenção de romances.

A fotografia só fala daquilo que foi. Não há futuro nela, a não ser aquele criado pelo próprio imaginário. Este poder de autenticação que a diferencia da linguagem, sendo esta carregada de impotência e caráter ficcional. A Fotografia pode até mentir sobre seus sentidos, mas jamais sobre sua existência — é a pura garantia da realidade. Entretanto, não é podssível saber até que ponto este “certificado de presença da fotografia” (p.129) se aplica aos dias de hoje. O mundo contemporâneo altamente tecnológico, tende a iludir com uma enxurrada de imagens manipuladas, renderizadas, photoshopadas.

Fotografia não é lembrança, mas sim testemunho, ela não fala daquilo que não é mais, mas daquilo que certamente foi. Barthes diz que essa “sutileza é decisiva” (p.127), uma vez que diante de uma foto, a consciência não tem a lembrança de algo, e sim o pressentimento de sua essência, que consiste em ratificar o que ela de fato representa. A fotografia não inventa nada, é a própria autenticação. Ela não é ficcional, mas sim a cristalização da cena no papel, um documento do real.

Essa certificação de presença intrínseca da fotografia faz cessar a resistência do homem em acreditar na história. Barthes fala como o homem resiste a acreditar no passado, a não ser sob a forma de mito. Com a fotografia, o passado se torna tão seguro quanto o presente. Tal argumentação levanta uma polêmica, que o próprio Barthes tenta desfazer à página 32. Há uma linha de pensamento que indica que a fotografia, assim como a história, é manipulada, uma vez que “o que ela representa é fabricado.” (p.132) Ao se posicionar junto aos realistas, diz que este é um “debate em vão” (p.132), uma vez que na fotografia, do ponto de vista fenomenológico, seu poder de autenticação sobrepõe-se ao poder de representação, isto é, a foto não é uma cópia do real, mas uma emanação do real passado, ela é uma magia, não uma arte. Pra Barthes, o que importa é justamente esta força constativa, força esta que incide sobre o tempo, não sobre o objeto, o que torna superficial a discussão dela ser analógica ou codificada.

Ainda sobre a morbidez da fotografia, Barthes reflete sobre o vínculo antropológico entre morte e o advento da fotografia. Uma vez asimbólica, fora da religião e do ritual, a morte passa a ocupar outro lugar na sociedade moderna, talvez esse lugar mórbido produzido pela imagem ao desejar cristalizar a vida. Ao perceber que por mais que a foto tente conservar a vida, continua sem dizer nada sobre este alguém que partiu, abre-se um espaço para um vazio doloroso. Além disso, a foto em si envelhece — o papel fotográfico é perdido — uma vez que “como organismo vivo, nasce dos próprios grãos de prata que germinam, desabrocha por um instante, depois envelhece.” (p.139) A foto tangencia novamente a morte quando vista pela perspectiva de sua fugacidade, ela é ao mesmo tempo um testemunho seguro mas que certamente será perdido, uma vez que a aquele papel também morrerá, será jogado no lixo. O lixo digital produzido pela fotografia atual, reitera a afirmação barthesiana. Entretanto, se há neste livro algum traço arcaico (inclusive assumido pelo autor à página 140), está no fato de ser uma espécie de último suspiro do noema “Isso-foi”, o fim desse espanto primordial gerado pelas fotos analógicas, que fatalmente se perde com o excesso de exposição à imagens como acontece na atualidade.

Aprofundando-se ainda mais no êxtase fotográfico, Barthes se depara com a existência de outro punctum, além do detalhe. Ele não é mais da forma, mas de intensidade, que é o Tempo; é a força do noema (“isso-foi”), sua representação pura. No retrato de Alexander Gardner “Retrato de Lewis Payne” fica claro a revelação do punctum diante da descoberta de que o jovem estava prestes a morrer ao ser fotografado. Esse sentimento gera um esmagamento do tempo, que faz pensar “isso está morto, isso vai morrer”. A fotografia nos diz a morte do futuro, a mesma sensação que Barthes tem diante da foto de criança de sua mãe: “ela vai morrer” (p.142) As fotos carregam em si esse cárter predestinatório, que vem para nos interpelar revelando-se como “esse signo imperioso de minha morte futura.” (p.144), o que leva a desenvolver uma relação privada, individual com cada fotografia.

Alexander Gardner: Retrato de Lewis Payne, 1865

A imagem está lá, insinua-se. Barthes admite não poder penetrá-la, apenas varrê-la com o olhar. É equivocadamente que, em virtude de sua origem técnica, associam-na à ideia de uma passagem obscura (câmera obscura) que tende a uma ideia de isolamento. Ao contrário, a fotografia tende a uma ideia de coexistência. O que se deve dizer é câmera lúcida, pois do ponto de vista do olhar, “a essência da imagem está toda fora, sem intimidade, e no entanto, mais inacessível […]; sem significação, mas invocando a profundidade de todo sentido possível — irrevelada e todavia manifesta, tendo essa presença-ausência que faz a atração e o fascínio das sereias. (Blanchot)” (p.157) Se a fotografia não pode ser aprofundada é devido à sua força de evidência, ao contrário do texto, que dá o objeto de maneira vaga, discutível, que incita a desconfiar do que se vê. É justamente “na proporção de sua certeza que nada posso dizer dessa foto”. (p.158) O que resta, para Barthes, é o ar que algumas fotos podem lhe transmitir “O ar é assim, a sombra luminosa que acompanha o corpo; e se a foto não chega a mostrar esse ar, então o corpo vai sem sombra, e uma vez cortada essa sombra, como no mito da Mulher sem Sombra, resta apenas um corpo estéril” (p.161) Esse ar, entretanto, deve-se ao acaso (como no caso da Fotografia do Jardim de Inverno) ou à sorte de ser fotografo por um grande fotografo. Se trata de um im(pulso) de vida que algumas poucas “imagens verdadeiras” carregam em si (p.163).

Sobre a olhar fotográfico, Barthes dispara: “tem algo de paradoxal e de louco”. Paradoxal pois produz a qualidade mais rara que é o ar a partir de uma mirada sem alvo (exemplo: foto do menino segurando cãozinho de A. Kertész — olhar digno de pena mas ao mesmo tempo simulado pois ele de fato não olha pra nada) e louco pois é ao mesmo verdadeira ao nível do tempo e falsa no nível da percepção — o que produz certo nível de alucinação.

Num discurso final emocionante, o sofrimento do amor barthesiano lateja sob a ação do punctum. Como numa espécie de belo final de filme, ou de um romance literário, Barthes finaliza, mais afiado do que nunca, com um pergunta sutilmente irônica: a fotografia seria então louca ou sensata? E responde, reiterando sua selvageria e seu dom visceral, como que se estivesse presenteando o leitor — em seu último suspiro — com um sopro para o êxtase fotográfico:

“Essas são as duas vias da Fotografia. Cabe a mim escolher, submeter seu espetáculo ao código civilizado das ilusões perfeitas ou afrontar nela o despertar da intratável realidade.” (p.175).

Cabe, por fim, ao leitor, escolher o que deseja ver.

Referências Bibliográficas:

STAFFORD, Andy. Roland Barthes (critical lives). London: Reaktion Books Ltd, 2015

ALLEN, Graham,. Roland Barthes. London: Routledge, 2003

SOTANG, Susan. Under the Sign of Saturn. New York: Random House, 1981 (prefácio)

BARTHES, Roland. Writing Degree Zero. USA:Beacon Paperback, 1970. (Preface 1968 by Susan Sontag)

BATCHEN, Geoffrey. Photography Degree Zero: Reflections on Roland Barthes’s Camera Lucida. Cambridge: MIT Press, 2009

KNIGHT, Diana. Critical Essays on ROLAND BARTHES. New York: G. K. Hall & Co., 2000

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: BCD União de Editoras SA, 2001

On line:

https://monoskop.org/Roland_Barthes

http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/media/bancoteses/mariaclaradasilvaramoscarneiromestrado.pdf (sobre Derrida)

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Aline Zorzo

Arquiteta e pesquisadora em Teoria e História do projeto de Arquitetura.