Judith Butler: feminismo radical trans-excludente, J.K. Rowling e a “cultura do cancelamento”

Allan Kardec Pereira
9 min readSep 28, 2020

Tradução: Allan Kardec Pereira

Entrevista com Alona Ferber para o portal New Statesman

Há trinta anos, a filósofa Judith Butler, agora com 64 anos, publicou um livro que revolucionou as atitudes populares sobre gênero. Problemas de Gênero, o trabalho pelo qual ela é talvez mais conhecida, introduziu ideias de gênero como performance. Ele perguntou como definimos “a categoria das mulheres” e, como consequência, por quem o feminismo pretende lutar. Hoje, é um texto fundamental em qualquer lista de leitura dos estudos de gênero, e seus argumentos há muito passaram da academia para a cultura popular.

Nas três décadas desde que Problemas de Gênero foi publicado, o mundo mudou além do reconhecimento. Em 2014, a TIME declarou um “Transgender Tipping Point”. A própria Butler partiu desse trabalho anterior, escrevendo amplamente sobre cultura e política. Mas as divergências sobre o essencialismo biológico permanecem, como evidenciado pelas tensões sobre os direitos trans dentro do movimento feminista.

Como Butler, que é Maxine Elliot Professor of Comparative Literature em Berkeley, vê esse debate hoje? Ela vê uma maneira de quebrar o impasse? Butler recentemente trocou e-mails com o New Statesman sobre esse assunto. A troca foi editada.

Alona Ferber: Em Problemas de Gênero, você escreveu que “debates feministas contemporâneos sobre os significados de gênero levam repetidamente a um certo sentimento de dificuldade, como se a indeterminação do gênero pudesse culminar no fracasso do feminismo”. Até onde vão as ideias que você explorou naquele livro há 30 anos para ajudar a explicar como o debate dos direitos trans mudou para a cultura e a política convencionais?

Judith Butler: Eu quero primeiro questionar se feministas trans-excludentes são realmente iguais às feministas mainstream. Se você está certo em identificar umas com as outras, então uma posição feminista se opondo à transfobia é uma posição marginal. Acho que isso pode estar errado. Minha aposta é que a maioria das feministas apóia os direitos trans e se opõe a todas as formas de transfobia. Portanto, acho preocupante que de repente a posição feminista radical trans-excludentes seja entendida como comumente aceita ou mesmo dominante. Eu acho que é na verdade um movimento marginal que está procurando falar em nome do mainstream, e que nossa responsabilidade é nos recusar a permitir que isso aconteça.

Alona Ferber: Um exemplo do discurso público dominante sobre essa questão no Reino Unido é o argumento sobre permitir que as pessoas identifiquem a si próprias nos termos de seu gênero. Em uma carta aberta que publicou em junho, JK Rowling articulou a preocupação de que isso “abriria as portas de banheiros e vestiários para qualquer homem que acredita ou sente que é mulher”, potencialmente colocando as mulheres em risco de violência.

Judith Butler: Se olharmos de perto o exemplo que você caracteriza como “mainstream”, podemos ver que um domínio da fantasia está em ação, um domínio que reflete mais sobre a feminista que tem esse medo do que qualquer situação realmente existente na vida trans. A feminista que defende tal visão presume que o pênis define a pessoa, e que qualquer pessoa com um pênis se identificaria como uma mulher para o propósito de entrar em tais vestiários e representar uma ameaça para as mulheres lá dentro. Supõe que o pênis é a ameaça, ou que qualquer pessoa que tenha pênis e se identifique como mulher está se envolvendo em uma forma de disfarce vil, enganoso e prejudicial. Esta é uma fantasia rica, que vem de medos poderosos, mas não descreve uma realidade social. As mulheres trans são frequentemente discriminadas nos banheiros dos homens, e seus modos de auto-identificação são maneiras de descrever uma realidade vivida, que não pode ser capturada ou regulada pelas fantasias que lhe são colocadas. O fato de essas fantasias passarem por uma discussão pública é em si motivo de preocupação.

Alona Ferber: Eu quero desafiá-la sobre o termo “terf”, ou feministas radicais trans-excludentes, que algumas pessoas vêem como uma calúnia.

Judith Butler: Não estou ciente de que terf seja usado como um calúnia. Eu me pergunto como seriam chamadas as autodeclaradas feministas que desejam excluir as mulheres trans dos espaços femininos? Se elas favorecem a exclusão, por que não chamá-las de excludentes? Se elas se entendem como pertencentes a essa linha de feminismo radical que se opõe à redesignação de gênero, por que não chamá-las de feministas radicais? Meu único arrependimento é que houve um movimento de liberdade sexual radical que antes viajava sob o nome de feminismo radical, mas infelizmente se transformou em uma campanha para patologizar os povos trans e não-conformes com o gênero. Minha sensação é que temos que renovar o compromisso feminista com a igualdade e liberdade de gênero, a fim de afirmar a complexidade das vidas generisadas como elas estão sendo vividas atualmente.

Alona Ferber: O consenso entre as progressistas parece ser que as feministas a concordar com o argumento de JK Rowling estão do lado errado da história. Isso é justo ou há algum mérito em seus argumentos?

Judith Butler: Vamos deixar claro que o debate aqui não é entre feministas e ativistas trans. Existem feministas trans-afirmativas, e muitas pessoas trans também são feministas comprometidas. Portanto, um problema claro é o enquadramento que age como se o debate fosse entre feministas e pessoas trans. Não é. Uma razão para militar contra esse enquadramento é porque o ativismo trans está ligado ao ativismo queer e aos legados feministas que permanecem muito vivos hoje. O feminismo sempre esteve comprometido com a proposição de que os significados sociais do que é ser homem ou mulher ainda não foram estabelecidos. Contamos histórias sobre o que significava ser mulher em um determinado tempo e lugar e acompanhamos a transformação dessas categorias ao longo do tempo.

Dependemos do gênero como uma categoria histórica, e isso significa que ainda não conhecemos todas as maneiras como ele pode vir a significar e estamos abertos a novas compreensões de seus significados sociais. Seria um desastre para o feminismo retornar a uma compreensão estritamente biológica de gênero ou reduzir a conduta social a uma parte do corpo ou impor fantasias de medo, suas próprias ansiedades, às mulheres trans … Seu senso de gênero duradouro e muito real deve ser reconhecido social e publicamente como uma questão relativamente simples de conceder outra dignidade humana. A posição feminista radical trans-excludente ataca a dignidade das pessoas trans.

Alona Ferber: Em Problemas de Gênero, você perguntou se, ao buscar representar uma ideia particular das mulheres, as feministas participam da mesma dinâmica de opressão e heteronormatividade que estão tentando mudar. À luz dos amargos argumentos em jogo dentro do feminismo agora, o mesmo ainda se aplica?

Judith Butler: Pelo que me lembro do argumento em Problemas de Gênero (escrito há mais de 30 anos), a questão era bem diferente. Em primeiro lugar, não é necessário ser mulher para ser feminista e não devemos confundir as categorias. Homens que são feministas, pessoas não binárias e pessoas trans que são feministas fazem parte do movimento se eles se apegarem às proposições básicas de liberdade e igualdade que fazem parte de qualquer luta política feminista. Quando as leis e as políticas sociais representam as mulheres, elas tomam decisões tácitas sobre quem é considerado mulher e, muitas vezes, fazem pressuposições sobre o que é uma mulher. Já vimos isso no domínio dos direitos reprodutivos. Portanto, a pergunta que eu estava fazendo é: precisamos ter uma ideia consolidada das mulheres, ou de qualquer gênero, a fim de avançar os objetivos feministas?

Eu coloquei a questão dessa maneira … para nos lembrar que as feministas estão comprometidas em pensar sobre os diversos e historicamente inconscistentes significados de gênero e os ideais de liberdade de gênero. Por liberdade de gênero, não quero dizer que todos nós podemos escolher nosso gênero. Em vez disso, podemos fazer uma reivindicação política de vivermos livremente e sem medo de discriminação e violência contra os gêneros que somos. Muitas pessoas que foram designadas como “mulheres” ao nascer nunca se sentiram à vontade com essa designação, e essas pessoas (incluindo eu) dizem a todos nós algo importante sobre as restrições das normas tradicionais de gênero para muitos que estão fora de seus termos.

As feministas sabem que as mulheres com ambição são chamadas de “monstruosas” ou que as mulheres que não são heterossexuais são patologizadas. Combatemos essas representações errôneas porque são falsas e porque refletem mais sobre a misoginia daqueles que fazem caricaturas degradantes do que sobre a complexa diversidade social das mulheres. As mulheres não devem se envolver nas formas de caricatura fóbica pelas quais foram tradicionalmente rebaixadas. E por “mulheres” quero dizer todas aquelas que se identificam dessa forma.

Alona Ferber: Até que ponto a toxicidade nesta questão é uma função das guerras culturais ocorrendo online?

Judith Butler: Acho que estamos vivendo em tempos anti-intelectuais, e isso é evidente em todo o espectro político. A rapidez da mídia social permite formas de virulência que não apoiam exatamente um debate cuidadoso. Precisamos valorizar as formas mais extensas [de debate].

Alona Ferber: Ameaças de violência e abuso parecem levar estes “tempos anti-intelectuais” ao extremo. O que você tem a dizer sobre a linguagem violenta ou abusiva usada online contra pessoas como JK Rowling?

Judith Butler: Sou contra o abuso online de todos os tipos. Confesso que estou perplexa com o fato de você apontar o abuso contra JK Rowling, mas não citar o abuso contra pessoas trans e seus aliados que acontece online e pessoalmente. Eu discordo da visão de JK Rowling sobre as pessoas trans, mas não acho que ela deva sofrer assédio e ameaças. No entanto, vamos lembrar também as ameaças contra pessoas trans em lugares como o Brasil, o assédio de pessoas trans nas ruas e no trabalho em lugares como a Polônia e a Romênia — ou mesmo aqui nos Estados Unidos. Portanto, se vamos nos opor ao assédio e às ameaças, como certamente deveríamos, devemos também nos certificar de que temos uma visão ampla de onde isso está acontecendo, quem é mais profundamente afetado e se é tolerado por aqueles que deveriam se opor isto. Não adianta dizer que ameaças contra algumas pessoas são toleráveis, mas contra outras são intoleráveis.

Alona Ferber: Você não foi signatária da carta aberta sobre “cultura do cancelamento” na Harper’s neste verão, mas aqueles argumentos ressoaram em você?

Judith Butler: Tenho sentimentos confusos sobre essa carta. Por um lado, sou um educadora e escritora e acredito no debate lento e ponderado. Aprendo ao ser confrontada e desafiada, e aceito que cometi alguns erros significativos em minha vida pública. Se alguém então dissesse que eu não deveria ser lida ou ouvida como resultado desses erros, bem, eu faria uma objeção interna, já que não acho que qualquer erro que uma pessoa cometeu possa, ou deva, resumir essa pessoa. Vivemos no tempo; erramos, às vezes seriamente; e se tivermos sorte, mudamos precisamente por causa de interações que nos permitem ver as coisas de forma diferente.

Por outro lado, alguns desses signatários estavam mirando no Black Lives Matter como se a oposição ruidosa e pública ao racismo fosse em si um comportamento incivilizado. Alguns deles se opuseram aos direitos legais da Palestina. Outros [supostamente] cometeram assédio sexual. E ainda outros não desejam ser questionados sobre seu racismo. A democracia exige um bom desafio, e nem sempre chega em tons suaves. Portanto, não sou a favor de neutralizar as fortes demandas políticas por justiça por parte das pessoas subjugadas. Quando alguém não é ouvido há décadas, o clamor por justiça deve ser alto.

Alona Ferber: Este ano, você publicou The Force of Nonviolence. A ideia de “igualdade radical”, que você discute no livro, tem alguma relevância para o movimento feminista?

Judith Butler: Meu ponto no livro recente é sugerir que repensemos a igualdade em termos de interdependência. Costumamos dizer que uma pessoa deve ser tratada da mesma forma que outra e medimos se a igualdade foi alcançada ou não comparando casos individuais. Mas e se o indivíduo — e o individualismo — for parte do problema? Faz diferença nos entendermos como vivendo em um mundo no qual somos fundamentalmente dependentes dos outros, das instituições, da Terra, e ver que esta vida depende de uma organização sustentável para várias formas de vida. Se ninguém escapa dessa interdependência, então somos iguais em um sentido diferente. Somos igualmente dependentes, ou seja, igualmente sociais e ecológicos, o que significa que deixamos de nos entender apenas como indivíduos demarcados. Se feministas radicais trans-excludentes se entendessem como compartilhando um mundo com pessoas trans, em uma luta comum por igualdade, liberdade da violência e por reconhecimento social, não haveria mais feministas radicais trans-excludentes. Mas o feminismo certamente sobreviveria como prática de coalizão e visão de solidariedade.

Alona Ferber: Você falou sobre a reação contra a “ideologia de gênero” e escreveu um ensaio para o New Statesman sobre isso em 2019. Você vê alguma conexão entre isso e os debates contemporâneos sobre direitos trans?

Judith Butler: É doloroso ver que a posição de Trump de que o gênero deve ser definido pelo sexo biológico, e que o esforço evangélico e católico de direita para eliminar o “gênero” da educação e das políticas públicas está de acordo com o retorno das feministas radicais trans-excludentes ao essencialismo biológico. É um dia triste quando algumas feministas promovem a posição da ideologia anti-gênero das forças mais reacionárias de nossa sociedade.

Alona Ferber: O que você acha que quebraria esse impasse no feminismo sobre os direitos trans? O que levaria a um debate mais construtivo?

Judith Butler: Suponho que um debate, se fosse possível, teria que reconsiderar as maneiras pelas quais a determinação médica do sexo funciona em relação à realidade vivida e histórica do gênero.

Texto originalmente publicado no site New Statesmen com o títuto deJudith Butler on the culture wars, JK Rowling and living in ‘anti-intellectual times’”, em 22 de setembro de 2020.

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Allan Kardec Pereira

Parahybano, doutorando em História pela UFRGS. Estudo o Black Lives Matter e o Afropessimismo https://twitter.com/allan_ksp