Uma conversa entre Paul Gilroy e Achille Mbembe: brutalismo, covid-19 e o Afro-pessimismo

Allan Kardec Pereira
18 min readJun 28, 2020

Podcast organizado pelo Sarah Parker Remond Centre em 25 de junho de 2020.

Tradução: Allan Kardec Pereira

Paul Gilroy: Olá pessoal, sou Paul Gilroy, o diretor do Sarah Parker Remond Center para o estudo do racismo e racialização na University College London. Hoje de manhã, estou conversando com Achille Mbembe, autor ilustre, comentarista e filósofo; trabalha atualmente como professor pesquisador na unidade WISER (Wits Institute for Social and Economic Research) da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo; educado nos Camarões e em Paris; alguém que trabalhou nos Estados Unidos, trabalhou na África, trabalhou na Europa; então, que possui uma formação muito interessante, em particular, para falar sobre os mais recentes, Brutalisme, publicado pela La Découverte em fevereiro. Quer dizer, Achille, há muitas coisas para conversar com você, eu realmente não sei por onde começar, mas deixe-me dizer uma coisa: quando eu leio você e penso no seu trabalho como faço frequentemente porque sinto que estamos, se é que posso dizer isso, meio que trabalhando em uma espécie de contraponto a maior parte do tempo, e isso me dá um grande interesse em suas reflexões em evolução sobre o mundo e sua transformação. Suponho que fiquei muito impressionado com a ideia de que seu último livro seja dedicado à questão do brutalismo, que me parece falar de questões de planetariedade, questões do — como o chamaríamos — fim do universalismo europeu e, é claro, ao fato onipresente da catástrofe ecológica global. E isso é interessante — eu sei que esses elementos sempre estiveram presentes, mas há uma nova ênfase que eu detecto e talvez possamos começar apenas falando sobre essa nova ênfase.

Achille Mbembe: É uma nova ênfase e, ao mesmo tempo, parece-me que muito do que eu havia feito no início quase inevitavelmente me levou a isso. Portanto, a ênfase é, de fato, uma manifestação natural do que havia lá subterraneamente, por assim dizer. Parece-me que, ou subitamente me ocorreu, que muito do que eu pensava ser específico da África está de fato se tornando, ou sempre foi, uma condição que compartilhamos além do continente como tal. Então, se você quiser, é o meu momento de desprovincializar o conteúdo e levar a sério a possibilidade de que o devir-africano de grandes partes do mundo, assim como o devir-negro de grandes partes do mundo, não seja simplesmente um anseio, se pudermos falar naqueles termos, é algo real.

Gilroy: Que relação você diria, se houver, tem esse argumento contundente com o trabalho de Senghor? Porque talvez você saiba há 6–7 décadas atrás, ele estava pedindo ao mundo que viesse ao ‘rendez-vous du donner et du recevoir’ (o compromisso de dar e receber). E não sei se você fala com o fantasma dele, há vários fantasmas com os quais comungamos, mas há um certo lado de seu trabalho que nunca realmente — certamente o mundo anglófono — não esteve envolvido; e é menos o estadista do que o poeta, mas não apenas o poeta na verdade, nele. Então, eu estou curioso para saber como o seu projeto se conecta com essa pequena leitura, eu diria, talvez os intelectuais africanos sempre leram esses lados do trabalho e sempre lutaram com eles em relação às outras coisas que ele realizou e conseguiu diplomaticamente, em termos de sua visão particular do socialismo e assim por diante, que para muitos no mundo anglófono, esse não é um território familiar. Então, estou curioso para saber, porque você está de alguma forma assentado no terreno que ele preparou, é razoável dizer isso? Então, como você vê seu projeto urgente nesse contexto?

Mbembe: É uma pergunta muito complexa e requer um pouco de elaboração. Em primeiro lugar, parece-me que, tanto no mundo de língua inglesa quanto no francófono, o trabalho intelectual de Senghor, o trabalho poético, o trabalho estético, foi um enorme desserviço por causa de suas atividades políticas de ele ser chefe de Estado, tendo dirigido o primeiro governo pós-independência no Senegal. Portanto, talvez seja hora de talvez não instalar um muro entre essas duas dimensões de seu trabalho, mas talvez se avaliem por si só. Esse esforço está em andamento, não tanto quanto se gostaria, mas foi liderado por nomes como Souleymane Bachir Diagne, que é um filósofo senegalês que leciona na Universidade de Columbia, mas também por estudiosos mais jovens, como Donna Jones, que trabalha na Universidade da Califórnia em Berkeley, e ela escreveu um livro muito poderoso sobre Senghor, que parece estar indo na direção de uma renovação do conhecimento de seu trabalho. Também devo mencionar Gary Wilder, da CUNY University, que escreveu extensivamente sobre o trabalho de Senghor há 10 anos. Nesse ato de familiarização com Senghor, devemos definitivamente ir além de sua leitura aparentemente essencialista de “Négritude”, que é conhecida. E, no entanto, nessa leitura essencialista de Négritude, devemos tomar cuidado para não jogar fora a dimensão profunda — eu diria estética — e espiritual de sua compreensão do que significa ser negro; e essa crítica estética da negritude, acho que ainda está entre nós. É ainda mais necessário nestes tempos em que vivemos quando o negro e o corpo do negro estão novamente na cruz. Assim, gostaria de me apegar a essa dimensão poética e ao aspecto insurrecional da poesia de Senghor, que não foi levado em consideração tanto quanto deveria. Eu tenho em mente em particular uma coleção de poemas que ele escreveu quando era prisioneiro em um campo alemão — prisioneiro dos nazistas — chamado Chants d’Ombre. Eu também gostaria de levar a sério os comentários dele, de fato mais do que comentários, sobre o que chamaríamos de ‘fim da Europa’ — ou, para ser mais preciso, ‘os fins da Europa’ — o fim no sentido do que vem até o término, os fins também em termos do que diz respeito à ordem da promessa do horizonte daquilo que ainda está por vir. De fato, há no trabalho de Senghor uma conversa profunda com certas vertentes do pensamento judaico, como Frans Rosenzweig, até certo ponto. Então, temos que fazer esse trabalho de recuperação e seu conceito de ‘le rendez-vous du donner et du recevoir’ (o compromisso de dar e receber) deve ser entendido de dentro dessa perspectiva mais ampla; e sim, é um projeto que me fala extremamente diretamente em termos do que nos diz sobre o compartilhamento do mundo, o mundo que compartilhamos em comum, como podemos moldar nosso mundo compartilhado e viver na Terra com os outros. E isto é, parece-me, absolutamente crucial para os tempos em que vivemos.

Gilroy: É claro que Senghor tem uma preocupação fundamental com o ritmo [rhythm] e, para ele, a particularidade do ritmo na vida dos negros é atribuída não apenas a um mundo externo — às marés, aos dormitórios, ao ritmo do dia e da noite, ao fato de duas estações no ambiente africano em que ele se colocou — mas também ao ritmo dos batimentos cardíacos, ao pulso da vida no corpo e também ao ritmo da respiração — ao ritmo de respirar — e eu sei que nas coisas que você escreveu recentemente, essa questão do respirar em resposta aos horríveis assassinatos cometidos nos Estados Unidos, mas também pelas forças policiais em muitos países, muitos países realmente, um tipo semelhante de violência caprichosa e cruel que nem sempre se tornou espetacular da maneira que parece ser quando se origina nos nomos da vida racial nos Estados Unidos. Portanto, esta questão do ritmo do respirar, o ritmo da vida, o ritmo do sangue no corpo, o ritmo das tábuas das marés e assim por diante, esse é um componente fundamental em sua imaginação — não quero chamar de imaginação política, porque isso confunde com o governo até certo ponto, e também acho que menospreza. Então, da mesma maneira que ele pede e convoca, como muitos de sua geração, uma concepção diferente de política, fico imaginando o quanto essa ênfase na respiração é importante para você em seu pensamento no momento?

Mbembe: Isso está subjacente ao meu trabalho. Eu a encontrei pela primeira vez — esta questão da respiração — através de minha própria mãe, de quem entendi pela primeira vez que, no contexto africano, o ar ou a respiração está no começo e no fim da vida. Eu também o encontrei no trabalho de Fanon; Fanon fala constantemente sobre respiração, e me parece que as últimas palavras de Eric Garner, de George Floyd e inúmeras outras parecem repetir quase palavra por palavra esse léxico eólico; e, como você mesmo diz, é um tema que sustenta a poesia de Senghor, na qual está profundamente correlacionada estruturalmente com a temática do ritmo, e por trás do ritmo do curso da música, do que ele chama de participação, e podemos propor um pouco para refletir sobre esse conceito de participação. Mas parece-me que tanto a ideia de ritmo, respiração e participação em Senghor, em particular, nos levam a uma compreensão da vida em geral, como por definição, ‘bio-simbiose’ — bio-simbiose no sentido de uma ênfase nos pontos em comum que todos os seres humanos compartilham um com o outro, mas também com outras espécies, a despeito das diferenças que realmente existem. Então, é nesse contexto que vim prestar mais atenção à questão da respiração. Eu escrevi uma peça chamada O Direito Universal à Respiração pouco antes da execução de George Floyd, e no contexto do surto do Coronavírus, porque me parece que, no que estamos testemunhando, ou em qualquer caso, o que se tornou ainda mais claro para nossa mente desde a morte de George Floyd, é o entrelaçamento — a combinação que eu diria de duas histórias — do Coronavírus e a disparidade racial de mortes a que levou, e histórias de violência racialmente infligida — ambas as histórias têm, em todo o caso, tanto quanto eu estou preocupado, me deixado ainda mais consciente do que antes sobre a importância da luta pelo ar, a luta pela respiração, que faz parte de nossa tradição e de nossas lutas.

Gilroy: Tenho pensado realmente em como construímos ou contribuímos para a vida de formações políticas adequadas à tarefa do universal — de exigir o direito universal de respirar e atualizá-lo; e acho que essas coisas costumam ser tão localmente configuradas que é difícil avançar ou sair desse tipo para uma formação mais diaspórica, um movimento vagante, com uma possibilidade planetária. E eu me perguntei se você tinha alguma ideia sobre isso? Quero dizer, em Fanon, para quem a respiração é uma preocupação tão fundamental, isso está chegando a ele como médico, se você concorda, como doutor, como um ser humano que está tentando curar outros seres humanos; portanto, esse problema não surge para ele da mesma maneira que surge para aqueles que não possuem essa habilidade e essa inclinação. Você tem uma visão sobre isso?

Mbembe: Quero dizer, se entendermos o que está acontecendo enquanto falamos, parece-me que é claro que tudo isso é muito local, mas também tem, necessariamente, uma dimensão transnacional. Floyd foi morto em uma calçada em Minnesota, mas sua morte reverberou por todo o planeta; quero dizer, enquanto falamos, as pessoas ainda protestam aqui na África do Sul, não apenas contra o que aconteceu com ele ali — um lugar que muitos sul-africanos comuns nunca verão — mas também aqui neste mesmo país. E parece-me que tudo começou com o testemunho; não sei se teríamos o que está acontecendo sem o vídeo gravado por aquele jovem cujo nome não vem à minha mente no momento. Então, a questão de um direito universal de respirar — provavelmente começa com coisas assim, como testemunhar todos aqueles pequenos casos em que alguns são, por assim dizer, expropriados de sua respiração. Continua então com a demanda por justiça. Mas quero insistir nesse elemento de testemunhar, porque, enquanto falamos, é muito difícil alguém negar que o racismo existe. Em algumas partes do mundo, a negação do racismo ainda estava viva — as pessoas não acreditavam que ele existisse. Agora é impossível, inclusive em lugares como a França, para… quero dizer, é claro que você pode negar retoricamente, mas muitas pessoas não acreditam em você. Portanto, tornamos impossível através de certas formas de testemunho, tornamos impossível para muitos negar que o racismo existe; tornamos difícil para eles nos fazerem acreditar, como há muito tempo, que é apenas um acidente, que não faz parte de uma estrutura. Para mim, isso faz parte da prevenção de que muitos sejam expropriados da respiração. E esses pequenos atos são tão importantes quanto o que Fanon estava fazendo e através de sua própria prática médica; de fato, parece-me muito difícil, nesta nossa era, desvincular atos médicos de atos políticos.

Gilroy: Sim, eu concordo, especialmente agora. E acho que você está certo sobre as reverberações planetárias desta morte e deste espetáculo e dessa crueldade. Quero dizer, de uma maneira que você sabe que podemos dizer que a Covid — eu não estou inclinado a dizer que a Covid-19 é o primeiro evento planetário, porque os seres humanos convivem com epidemias por um período muito longo e elas moldaram a história do colonialismo, do imperialismo e a dominação europeia do planeta de uma maneira realmente interessante que às vezes é negligenciada. Eu me vi lendo a extraordinária história de Frank Snowden sobre essas questões e olhando de uma nova maneira a revolução haitiana com a questão da febre amarela em mente. Então eu acho que você está certo. Mas parece ter havido um limiar planetário na maneira como esse espetáculo de crueldade e horror e seu caráter sistemático — o fato de se estender à vida de tantas populações que normalmente não estão em um tipo de relacionamento em rede para além dos prazeres da cultura de consumo — descortinou essa resposta muito vívida — muito visceral — é algo notável. E ainda não estou acostumado, realmente não estou acostumado, não estou habituado a isso; e acho que você está certo ao dizer que, embora os ciclos de notícias globais tenham mudado um pouco agora, essas manifestações ainda estão acontecendo e são enormes, e são repetidas; então vamos trabalhar com isso e pensar sobre o que está do outro lado disso. E sinto que pelo que sei do seu novo trabalho sobre essa questão do brutalismo, talvez você tenha antecipado algumas dessas possibilidades. Sei que o tipo de treinamento que compartilhamos em nosso métier e assim por diante nos inclina a uma espécie de — um conjunto de práticas que são bastante específicas em termos de gerações — leitura atenta, certa sensibilidade às dimensões filológicas da linguagem e assim por diante — e, portanto, para mim, a questão do “bruto” é uma questão fundamental, porque no idioma inglês ‘bruto’ é uma palavra que pode ser aplicada aos seres humanos e à vida animal, e também a algumas coisas que Du Bois chamou de ‘tertium quid’[1], a terceira coisa, que fica em algum lugar alojada entre os dois. Mas quando você estava conversando, me vi pensando na mensagem de Las Casas a Carlos V, de quase 500 anos atrás, quando ele disse a Carlos V ‘essas pessoas, esses selvagens, eles não eram tratados como animais; se eles fossem tratados apenas como animais, eu não ficaria tão zangado com isso’, mas ele basicamente diz educadamente ‘eles foram tratados pior que estrume, eles foram tratados pior que estrume’; agora são quase 500 anos discutindo esse argumento em público, você sabe. Então, eu estou pensando sobre o bruto, e eu estou imaginando onde a figura do bruto como essa figura ambígua, para o problema que você está explorando, se assenta em relação a um conjunto mais longo de comentários relacionados ao tipo de objetificação do preto [objecthood of the black]. E isso — acho que temos que lidar com isso por causa da importância desse argumento de objetificação no momento, é tão poderoso e tão fundamental para a flutuabilidade da visão Afro-pessimista desses processos. Agora sua ênfase no brutalismo parece romper com isso de uma maneira interessante — estou levando isso longe demais ou há continuidade lá também?

Mbembe: Não, quero dizer, é a mesma lógica sobre a qual falamos no início que, na verdade, é como uma jornada e, em algum momento, você vê sob uma nova luz coisas que estavam lá em um estado incipiente, não realmente elaboradas. Comecei com a ideia do brutalismo, como foi exposto no movimento arquitetônico da Inglaterra em particular, mas também em outros lugares, durante a segunda metade do século XX. Eu estava muito interessado nas maneiras pelas quais nesse movimento a ‘matéria’ era central; não importa, mas o termo em francês é ‘le béton’ (concreto); usamos essa matéria para construir casas, estruturas fortes, na esperança de que durem para sempre ou, de qualquer forma, que durem por muito, muito tempo. E no processo de construção dessas estruturas, cujo objetivo é durar muito tempo, é necessário o desdobramento da força sem reservas — torna-se necessário separar as coisas para remodelá-las segundo a vontade dos modeladores, por assim dizer. E parece-me que é claro que várias pessoas estão tentando definir os tempos em que estamos; para alguns, estamos testemunhando a renovação do fascismo ou o retorno ao fascismo ou ao neo-fascismo; para alguns, a época é caracterizada pelo esvaziamento da democracia; para outros, o triunfo do neoliberalismo, e assim por diante. Mas parece-me que, ao redirecionar o termo brutalismo, talvez possamos estender essas decifrações clássicas do momento e dar uma marca ao momento; parece-me que é uma característica de suas propriedades, suas qualidades e atributos; o desejo do sistema, e eu uso esse termo propositadamente, para percorrer um longo caminho para quebrar o que pensávamos ser importante e remodelá-lo em uma imagem que nem reconhecemos. E, claro, também na dimensão racial, existe uma genealogia, há uma longa história de remodelação pela força, de exaustão, de esgotamento das energias físico-psíquicas e de basicamente reinventar o humano — ou as formas humanas em geral. Então, meu uso do brutalismo — essa é sua trajetória.

Gilroy: Para que o duplo movimento, então, do devir-artificial da humanidade e do devir-humano das máquinas, seja contrastado no trabalho, como eu o entendi, com uma sensibilidade diferente a — como você diz um momento atrás — formas simbióticas ou complexas de interdependência estabelecidas entre o tipo humano de todas as variedades de vida.

Mbembe: Sim.

Giloroy: Acho que é mais do que o tipo de linguagem multiespécies que vem da Califórnia, porque me parece infundida com uma certa espiritualidade africana que nos leva, suponho, de volta a Senghor e onde começamos, embora, claro, você saiba , quando penso nele, lembro-me também de que ele e Levinas nasceram no mesmo ano; portanto, muito do selo em seus pensamentos ou da ressonância que vemos nos projetos, por mais que desejássemos criticar os dois, é em certo sentido, uma espécie de manifestação de sua experiência geracional e exposição aos horrores do século XX. Então, vamos falar sobre a africanização desse sentido simbiótico; e para mim acho que não usei a ideia de simbiose em meu próprio trabalho, mas tentei pensar, de uma maneira filosófica, sobre a ideia de um continuum; sobre o que é: por que o pensamento filosófico se sai tão mal diante de um continuum? O que é o continuum que demanda da imaginação filosófica o desejo de quebrar, quantificar, fragmentar, entende? E há — obviamente, existem maravilhosos filósofos da quantificação, há maravilhosos estímulos filosóficos na ideia de fragmentação, mas estou pensando agora que é para mim o tempo do continuum realmente e como é o desafio do continuum — e isso se aplica não apenas como se força o peso, você o colocaria como o peso da categorização racial — mas, na verdade, sobre o continuum da vida, o continuum de todas as variedades de vida e o que compartilhamos, e isso não é o mesmo que dizer ‘oh bem, seu DNA é 96% o mesmo que o pepino do mar’ ou o que quer que seja, é um sentido diferente do valor desse continuum para nós em nossa situação urgente.

Mbembe: Sim. Eu adotaria esse termo continuum e realmente não queria seguir o caminho do termo multiespécie exposto na Califórnia, porque é claro que estou ciente disso, mas existem muitos arquivos diferentes do que você chama de continuum e o que chamo de biossimbiose. Parece-me que, entre eles, quero dizer que sabemos muito sobre o tipo de arquivo proveniente das culturas da Amazônia, escrito por vários antropólogos, Kohler e vários outros. Não aproveitamos os recursos provenientes do continente africano; os ricos recursos conceituais que a África ofereceu ao mundo em geral, em muitas disciplinas diferentes; o que seria ‘fetichismo’ no pensamento marxista da antropologia sem o continente? Qual seria o ‘fetiche’ na psicanálise sem o continente? Então, o ponto é que ainda há muito a extrair a partir daí.

Gilroy: Sim, não menos importante — para não falar do fetichismo das estátuas.

Mbembe: [rindo] … para não falar do fetichismo das estátuas. Então, na verdade, eu tenho tentado extrair desse arquivo há algum tempo. Há um capítulo em Crítica da razão Negra, que para mim é realmente o capítulo fundamental de todo o livro, chamado “Réquiem para o Escravo”, que é uma tentativa de repensar de maneira dinâmica o que a objetificação pode significar. Objetificação não significa a mesma coisa em todo lugar. E sei que é muito central para o trabalho de vários dos chamados Afro-pessimistas, mas o capítulo foi realmente uma tentativa de debater com eles sobre a questão da morte social ou da objetificação; mas, neste caso, em primeiro plano, recursos conceituais vindos do continente. E é a mesma coisa que tentei fazer em Brutalisme. Também o uso para refletir sobre a questão da tecnologia e sua relação com o que chamo de “animismo”; o termo animismo não é meu, é um antigo termo antropológico que significava algo totalmente diferente do que tenho em mente. Animismo na literatura antropológica significava a crença de que as crianças têm coisas animadas por formas de agência — é o tipo de crença que ao amadurecer homens e mulheres param de ter, mas continuam a tê-las porque nunca chegam a um estágio de maturidade. Portanto, não é nesse sentido que eu uso animismo; eu o uso em um sentido totalmente diferente, no espírito de continuidade, biossimbiose — o fato de uma ecologia compartilhada, se você desejar, um ecossistema compartilhado, circulação da vida, fluidos vitais — órgãos — entre diferentes tipos de espécies, e o processo de co-transformação, co-evolução, e assim por diante. Mas isso pode ser uma resposta bastante complicada, vamos deixar por enquanto.

Gilroy: Ok, quero dizer, estou curioso para saber rapidamente se você acha que recebeu alguma resposta daquele quartel [os Afro-pessimistas], porque eles não são conhecidos por sua leitura intima e cuidadosa do trabalho de outros, principalmente daqueles que eles afirmam ter sido tão profundamente influenciados; então estou curioso para saber se essa conversa foi proveitosa para você até agora, sabia?

Mbembe: Não, acho que eles puxaram bastante a ideia de devir-negro do mundo, o que, é claro, eles menosprezaram, mas não foram ao que realmente é o núcleo: o que queremos dizer com um objeto? Como repensamos a morte politicamente, bem como a esse respeito, teológica ou espiritualmente.

Gilroy: Bem, nós nos voltamos para materiais do espírito. Eu sei, você sabe, em uma vida anterior, você teve uma certa proeza no campo de futebol e eu estive pensando — eu sempre gosto de marcar essas conversas como pertencendo a um momento específico, porque você sabe que as coisas estão se movendo muito, muito rápido, e é importante não convidar para ser mantido refém pelas abstrações; temos que nos localizar com muito cuidado. E, é claro, hoje, se você me perdoa por falar paroquialmente, descobrimos que nossos jogadores famosos encontraram uma espinha dorsal política que não sabíamos que eles tinham e que pertencem à geração — a geração enfurecida — que tem governos em fuga em todos os lugares em todos os cantos do planeta. E eu estava pensando realmente sobre futebol, moralidade e política, e pensando em Marcus Rashford e sua geração, os outros, que receberam tratamento muito severo na mídia internacional e na mídia local como ‘mimados, privilegiados e desprezando a vida das pessoas comuns que investem tanto em suas ações sobre-humanas’ e assim por diante; e eu estava pensando que hoje em dia muitas pessoas têm relido Camus, pensando em La Peste, mas talvez estejam menos sensíveis às suas provocações sábias e ponderadas em relação ao valor do futebol — não apenas o valor do esporte em geral, mas também o valor do futebol em particular. Antes de morrer no acidente de carro, uma das últimas coisas que escreveu foi que ‘tudo o que sabia com certeza sobre moralidade, sobre dever, devia ao futebol’. Então, o que esse momento em que o futebol descobre, com novas energias, uma espécie de perspectiva política? Isso tem alguma promessa para você nesta geração em ascensão — essa maré de sentimentos que vemos varrendo tudo ao nosso redor? É muito interessante ver que eles podem derrotar um governo, mesmo nesta pequena questão — não é uma questão pequena de comida — ter comida suficiente não é uma pergunta pequena para as pessoas que não têm comida suficiente, mas na política mundial, no mundo do nosso governo, isso é visto como insignificante. Mas parece-me algo maior que isso.

Mbembe: Oh, vamos torcer para que seja algo realmente grande. Provavelmente você está em melhor posição do que eu realmente para comentar sobre isso — no caso da França em particular, tivemos alguns casos, não tanto quanto poderia haver, de jogadores de futebol se levantando e falando em público no sentido político do termo. É claro que um desses jogadores foi Lilian Thuram, não parou de falar, ainda está escrevendo livros e tudo mais. Mas, tendo em vista o número de jogadores negros nas equipes francesas, e em particular na seleção francesa, seria de esperar que a voz deles fosse um pouco mais alta; nem sempre foi alta. Portanto, espero que Rashford, ou Raheem [Sterling], e vários outros finalmente estejam de pé; eles finalmente estão de pé e percebendo que exercem uma enorme quantidade de influência; a voz deles conta, e pode contar ainda mais do que se falassem individualmente. Então, minha esperança é que, como indivíduos que estão bem ali nas engrenagens, eles se tornem cada vez mais conscientes da dívida que devem a outros na sociedade, não apenas aos negros, mas a todos aqueles que estão sob a ameaça do devir-negro, vamos colocar assim.

Gilroy: Achille Mbembe, muito obrigado por reservar um tempo para ter essa conversa comigo esta manhã e vamos manter a conversa em andamento. Tenho certeza de que esse momento será atenuado, vai durar um pouco, portanto, precisamos entrar em contato com você e ver como você está vendo as coisas nos próximos meses, em particular. E esperamos, eventualmente, ter a chance de levá-lo ao Sarah Parker Remond Center para uma visita prolongada para trabalhar com nossos alunos e participar de uma conversa aqui em Londres. Então, muito obrigado por isso.

Mbembe: Muito obrigado Paul, muito obrigado, obrigado.

Transcrição de podcast originalmente publicada no site do Sarah Parker Remond Centre em 25 de junho de 2020

Notas:

[1] — Em As Almas da Gente Negra, W.E.B. Du Bois usou o termo do latim “tertium quid” para se referir à identidade dos afro-americanos em uma sociedade anti-negra, onde pessoas não-brancas são vistas como uma categoria desvalorizada a meio caminho entre homem e animal. Em seus termos:

“O segundo pensamento fluente daquele tumbeiro (death-slave ship) e do rio serpenteante é a concepção do velho Sul — a crença sincera e apaixonada de que, nalgum lugar, entre o homem e o gado, Deus criou um tertium quid, e a isso chamou de negro: uma pessoa ridícula e simplória, às vezes até merecedora de econômios, dentro de suas limitações, mas conduzida a mover-se nos limites do Véu.” (p. 105).

--

--

Allan Kardec Pereira

Parahybano, doutorando em História pela UFRGS. Estudo o Black Lives Matter e o Afropessimismo https://twitter.com/allan_ksp