Fantasmas e feitiços

Allan M. Hillani
12 min readFeb 19, 2018

--

Reduzido ao status de clássico, daqueles que é preciso conhecer mas nunca estudar, Marx é constantemente tratado como um “cachorro morto”, um cadáver que tantas correntes teóricas — da teoria marginalista à filosofia pós-estruturalista — teriam cumprido a tarefa de enterrar. Nada poderia ser mais enganador. 150 anos depois da publicação da primeira edição do Livro I de O Capital (1867) — o início do projeto ambicioso de produzir uma crítica da economia política, isto é, de colocar em xeque não uma teoria ou um autor, mas toda uma ciência social — sua teoria nunca foi tão atual. Seu fantasma nunca deixou de nos assombrar e a história do século XX parece ter sido perseguida por sua sombra.

Marx não era economista. Filósofo de formação, jornalista de profissão, seu objetivo teórico estava longe de ser a correção das teses de Adam Smith e David Ricardo. Como disse em uma carta de juventude, sua auto-imposta missão era a de levar a cabo a “crítica impiedosa de tudo o que existe”. Dele próprio incluso, é preciso dizer. Seu voraz auto-questionamento não o permitiu concluir os outros volumes do Capital — sobre a circulação e sobre o processo global de produção, respectivamente –, cabendo a Engels publicá-las heroicamente a partir dos rascunhos caoticamente deixados após sua morte.

É inócuo, portanto, o esforço de produzir um Marx homogêneo, harmônico, sem contradições, em que os textos engajados da juventude complementam a rigorosa análise categorial da maturidade — um esforço que tanto entusiastas quanto detratores insistiram em realizar. São justamente essas “linhas de fuga”, suas inconsistências e vacilações, que fazem do projeto marxiano uma tarefa a ser ainda cumprida pelas gerações que vêm, gerações que passam a enxergar com novos olhos críticos não só a realidade, mas também esse livro tão impactante.

Mesmo os leitores de má vontade, que insistem em caracterizar Marx como um “homem de seu tempo”, precisam admitir que o Capital é um livro extraordinário. Não bastassem as mais de 700 páginas logicamente encadeadas e a escrita compenetrante, que passa da discussão de um árido conceito econômico a uma citação de Aristóteles ou Shakespeare com uma naturalidade invejável, O Capital é definitivamente um dos livros formadores do que foi o século XX, mas o valor de Marx de modo algum se resume ao seu impacto histórico. Para a infelicidade de seus críticos, Marx não queria analisar o funcionamento concreto do capitalismo — uma análise que estaria fadada ao esquecimento ao ser produzida em uma época em que carros sequer existiam –, mas sua estrutura fundamental, o núcleo constitutivo da sociedade capitalista que permite diferenciá-la das outras formas de organização social. Se diagnosticamos que ainda vivemos no capitalismo, então a crítica de Marx continua sendo a única a realizar esse feito, e a ela que inevitavelmente voltamos em tempos de crise, como os que vivemos.

Muitos seriam os caminhos possíveis para apresentar a relevância de Marx para a análise contemporânea, mas prefiro me ater a uma metáfora muito precisa da obra de Marx: a assombração do valor que sustenta a dominação social capitalista. Seria um erro desprezar as metáforas de Marx. Sua crítica às “robinsonadas” (em alusão a Robinson Crusoe, de William Defoe), suas paráfrases bíblicas (“eles não sabem, mas o fazem”), as comparações do capital com o Mefistófoles (do Fausto de Goethe), longe de meros adornos da escrita, são justamente a forma pela qual Marx busca na estética e na religião a linguagem necessária para transmitir suas ideias e realizar a crítica de uma ciência que, ainda nos dias de hoje, se propõe a explicar o fundamento de tudo. Ironicamente, é justamente no desconhecido e inexplicável — naquilo que Freud chamava de Unheimliche, o “estranho-familiar” — que Marx vai localizar o calcanhar de Aquiles do esforço racionalista de entender o mundo sem apresentar sua “razão”. Hic rodus, hic salta!

Marx escreve em um tempo no qual surgia a antropologia moderna e se consolidava o evolucionismo social. Obras clássicas como A cultura primitva (1871) de Edward Tylor e A sociedade antiga (1877) de Henry Morgan são obras que consolidam teoricamente uma forma de compreender as sociedades humanas extremamente influente no período vitoriano inglês. O clássico de Charles Darwin, A origem das espécies (1859), contribuiu significativamente para esse contexto dando as bases para as teorias que transpunham a evolução das espécies para a evolução das sociedades e que colocavam a Europa e os Estados Unidos no ápice desse processo de crescimento do espírito humano. Marx, aliás, era um grande admirador de Darwin. Chega a enviar uma cópia especial do Capital ao grande biólogo e a dizer que vê sua própria obra como uma espécie de continuação da teoria da evolução na análise das sociedades. Contudo, seria um erro grotesco juntar Marx no bojo dos evolucionistas sociais, algo que fica especialmente claro em uma das análises mais negligenciadas do Capital: a passagem sobre o “fetichismo da mercadoria e seu segredo”.

É possível dizer que a ideia de fetichismo em Marx se aproxima da ideia de “animismo” de Tylor, uma espécie de força espiritual que se apropria de objetos comuns dando a eles características mágicas que só fazem sentido para os membros daquela cultura. A diferença de Marx perante os antropólogos novecentistas é que ele não via o animismo como um delírio primitivo, muito pelo contrário: encontrava sua forma mais delirante no cerne da sociedade moderna, no núcleo fundamental da sociedade capitalista, isto é, na forma mercadoria. A análise do feitiço da mercadoria — o termo alemão usado por Marx (Fetichismus) tem origem, precisamente, na palavra portuguesa “feitiço” — dá substrato precisamente para compreender como opera a “ilusão” típica da sociedade capitalista, uma ilusão tão irracional quanto a dos totens e bonecos vodu ironizados pelos acadêmicos europeus e americanos.

A teoria do fetichismo é o fundamento social para a teoria do valor de Marx. Esta, longe de uma mera teoria econômica, busca precisamente explicar como uma relação social pode se revelar objetivada na sociedade, como se dá os efeitos dessa percepção ao mesmo tempo ilusória e real. Como, em suma, o valor, sendo uma abstração que se apresenta no mundo somente por meio de suas representações (no valor de troca, na forma dinheiro), pode ter uma realidade inquestionável que independe da consciência humana e que possui efeitos materiais concretos na organização social.

Não é à toa que para Marx o valor se revele na dinâmica do capitalismo como uma “objetividade fantasmagórica”, na “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”. O século XIX é permeado por fantasmas, das ghost stories da Inglaterra vitoriana ao espectro do comunismo que então rondava a Europa. A metáfora do fantasma usada por Marx é precisa em muitos sentidos. Primeiro, porque o valor é uma espécie de assombração da mercadoria. Intangível, porém existente, o valor de uma mercadoria pode nos aterrorizar “muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria”. Mas o valor se assemelha ao fantasma também em outro aspecto: fantasmas não precisam “materialmente” existir para nos assombrar do mesmo modo que a intangibilidade do valor não o impede de causar efeitos como se tangível fosse. A “verdade” do fantasma (ou do valor) não importa para os seus efeitos: quem corre de um fantasma não se preocupa, no momento da fuga, com a sua existência material. Da mesma forma, não importa se o dinheiro é um mero pedaço de papel se sem ele não é possível sobreviver, se a sua ilusão se impõe socialmente de maneira incontestável.

O enigma do valor, portanto, não deve ser procurado na mente dos trocadores de mercadorias, mas em suas ações, na sua prática. Uma abstração geralmente é fruto do pensamento. Toma-se um conjunto de particularidades e abstrai-se uma categoria que seja comum a todas, mas que não exista naquele universo de particularidades, por exemplo. No caso do valor, no entanto, estamos lidando com uma abstração real, uma abstração que surge pela própria ação humana independentemente de sua consciência. “Eles não sabem, mas o fazem”, lembra Marx. No ato de troca é gerada uma abstração real que surge para eles como algo que não é resultado da relação de troca, mas de algo aparentemente inerente às mercadorias e, mais amplamente, inerente à sociedade como um todo: parece que as coisas naturalmente possuem “valor”, como possuem peso, volume ou cor, e portanto seguem leis objetivas às quais devemos simplesmente nos submeter, como a lei da gravidade.

A diferença entre a lei da gravidade e do valor, contudo, é que essa é puramente social, não existe fora das sociedades capitalistas e nem continuará existindo em uma sociedade pós-capitalista — ainda que hoje se imponha como tal. Essa naturalização fetichista não seria possível sem o semblante objetivo, “coisal”, pelo qual o valor de uma mercadoria se apresenta socialmente. É claro que as coisas não vão sozinhas ao mercado, são as pessoas que as levam. O ponto de Marx, contudo, é que as relações sociais próprias e fundamentais da sociedade capitalista — ainda que não sejam as únicas — não se dão diretamente entre as pessoas: são mediadas por coisas, pelas mercadorias. As pessoas relacionam entre si seus produtos de trabalho como valores, estabelecem preços, vendem suas mercadorias em troca de dinheiro, compram produtos para satisfazer suas necessidades etc. e graças a isso permitem que os valores e os trabalhos abstratos se relacionem entre si estabelecendo uma proporção. Por essa razão, afirma Marx, quando se diz que a relação de troca se dá pela equivalência do trabalho abstrato “salta aos olhos a sandice dessa expressão”, mas quando se vai ao mercado e compra um produto com dinheiro, a relação de seus trabalhos privados com seu trabalho social total lhes aparece “exatamente nessa forma insana”.

A ideia de que existe uma “relação social entre coisas” (a famosa “reificação” das relações sociais) não é uma metáfora. No capitalismo, as coisas de fato se relacionem entre si. Os seres humanos, apesar de atores do processo, apenas obedecem à lógica da mercadoria, por mais destrutiva e irracional que ela possa se tornar. É a própria relação, portanto, que produz os efeitos e não uma consciência prévia à relação — mesmo a consciência de uma “classe dominante” está submetida à abstração real das relações de valor. É como a hierarquia militar: a relação entre superior e subordinado não surge idealmente na cabeça de nenhum dos dois, mas da prática, da efetivação dessa relação — e, como no exemplo da hierarquia, não basta discordar individualmente dessa abstração pois ela se impõe objetivamente àqueles que dela participam.

O que torna o fetiche da forma mercadoria algo tão obscuro, para Marx, é que ao mesmo tempo em que não pode ser resumido a um fenômeno subjetivo, ou a uma simples percepção falsa da realidade, o seu aspecto (inconscientemente) artificial não pode ser descartado. O fetichismo da mercadoria, ou o feitiço que a forma mercadoria lança sobre a sociedade, é o que permite que “uma relação social determinada entre os próprios homens” assuma para eles “a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”, que a sociedade possa ser “governada” por coisas, ainda que a contingência dessa situação seja a própria condição de possibilidade de outra forma de organizar a vida em sociedade.

A tese de Marx é a de que a sociedade que se estrutura pela troca de mercadorias não se baseia em algum tipo de alucinação coletiva, mas em uma espécie de miragem. Quando alucinam, as pessoas têm suas faculdades mentais obscurecidas, enquanto que em uma miragem são os próprios elementos “objetivos” que se apresentam de forma distorcida para a consciência. A ilusão, desse modo, não está nos olhos e na cabeça de quem vê, mas no próprio objeto do olhar: se a alucinação é uma ilusão subjetiva, a miragem causada pelo fetichismo da mercadoria é uma espécie intrigante de ilusão objetiva, uma ilusão que se apresenta na própria coisa por não ser fruto de um erro individual, mas de relações sociais que se dão de forma não consciente. Os teóricos que insistem em uma compreensão da ideologia como “falsa consciência” — um erro solucionável com uma boa dose de “ciência” marxista-leninista e consciência de classe — ignoram essa dimensão do fenômeno. A consciência do processo não exime ninguém de estar enredado em relações fetichistas e de lidar de forma fetichista com o mundo (como quando vai no mercado e se preocupa com o preço e com o dinheiro no bolso, e não com todo o processo de trabalho e de valorização envolvido).

Na sociedade capitalista, a consciência espontânea das pessoas sucumbe ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro. O fetichismo, portanto, não esconde as relações “reais” por meio de relações “ilusórias”, ele é constitutivo das próprias relações “reais”, da relação de troca, da equivalência de valor, da inserção do trabalho particular concreto no trabalho abstrato da sociedade. Sem ele não seria possível essa relação social mediada pela relação entre coisas. É central para Marx, no entanto, o aspecto inconsciente envolvido no fetichismo, condição para que esse encantamento funcione. Não se trata de mera ilusão, novamente, posto que a própria efetividade social do processo depende de os indivíduos envolvidos nela não estarem cientes de sua lógica subjacente.

É claro que a forma dinheiro e a forma mercadoria só podem funcionar em uma sociedade que age de acordo com a sua existência. Se todos parassem de agir como se um pedaço de papel representasse o “valor” das coisas, tivesse “permutabilidade imediata” para adquirir seus produtos necessários à sobrevivência, a relação de valor seria impossibilitada. O fetichismo, portanto, não só é um fenômeno que se estrutura a partir da sua não-consciência (posto que as pessoas têm plena consciência de que possuem no bolso “apenas” um pedaço de papel), mas um fenômeno objetivo que possui uma força material própria. Não só eles “não sabem, mas o fazem”, como saber não muda a obrigação de continuar agindo dessa forma para sobreviver. Como Marx percebeu, sua descoberta científica (no nível da consciência, portanto) não tem o poder em si de alterar a realidade, da mesma forma que “a decomposição científica do ar em seus elementos deixou intacta a forma do ar”.

Por isso, em Marx, a transformação social não pode se dar pela “educação”, pela “ilustração”, pela “consciência” simplesmente, mas pela ação política concreta, que não tem uma relação imediata com essa consciência. Apesar da mudança de foco da sua obra teórica madura, Marx ainda mantinha a ideia de que toda a crítica do mundo feita até então ainda não teria sido apta a transformá-lo, e nesse sentido continua a estar certo. A “consciência” dos indivíduos opera dentro dos parâmetros “inconscientes” da forma mercadoria. Isso é o que estrutura uma formação social em que “o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção”. Ou, como ele famosamente formulou no 18 de Brumário de Louis Bonaparte, “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem circunstâncias sob as quais ela é feita”. A descoberta de Marx não está na afirmação de que a história é um produto das pessoas, mas no desamparo delas perante o que elas mesmas criaram.

O fetichismo da mercadoria não está em nossa mente, no modo como percebemos “falsamente” a realidade, mas na própria realidade. Não basta estar ciente do fetichismo envolvido nas mais banais atitudes da vida cotidiana, pois ele se impõe a todos ainda assim e com isso conforma as ações e a organização social. Desse modo, a “irracionalidade” envolvida no fetichismo faz com que o capital seja o verdadeiro sujeito autônomo dessa “fenomenologia do antiespírito” que é o capitalismo, como diria Theodor W. Adorno. Não a realização histórica do progresso humano racional, mas justamente o declínio da sociedade moderna. A dinâmica capitalista só faz cavar sua (e a nossa, consequentemente) própria cova ao gerar, pelo seu próprio desenvolvimento, barbáries antagônicas aos valores iluministas e racionalistas que eram (em tese) seu pressuposto inicial, como a história de guerras, genocídios, totalitarismos, fome e pobreza do último século pode facilmente demonstrar.

Não é à toa, portanto, que a política do início desse novo milênio esteja cada vez mais se afastando dos ideais deliberativos dos democratas apaziguados prometidos pelos profetas do “fim da história” e ressuscitando ideologias que pareciam estar enterradas, que ressurgem como assombrações catastróficas na Europa, nos EUA, no Brasil e no resto do mundo. O “impulso cego e desmedido” do capital está destruindo a própria sociedade e mais urgente do que nunca é preciso puxar o freio de emergência do trem da história que segue rumo ao abismo. Mas o capitalismo dificilmente parece perecer de “overdose”. Seu prolongamento infinito só poderá ser interrompido por algum tipo de ruptura política, para o bem ou para o mal. Hoje, contudo, nenhuma alternativa sistêmica parece se apresentar no horizonte, à esquerda ou à direita, o que gera essa situação agonizante na qual o velho já morreu sem o novo ter nascido.

Ao menos, não ainda. O ressurgimento do supremacismo branco, a nova política migratória dos EUA e da Europa, o surgimento de uma “arabofobia” simultâneo ao ressurgimento do antissemitismo, a consolidação de uma tendência mundial neoconservadora desglobalizante, dentre outros sintomas, abre caminho para que uma saída sistêmica à direita surja. Do outro lado, o ciclo de protestos de massa entre 2011 e 2013 — Brasil incluso — não parece ter se traduzido em alternativas políticas factíveis como o desempenho eleitoral do Podemos, a capitulação do Syriza e as derrotas de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, infelizmente, parecem revelar. Se estamos naquele momento sombrio em que o velho morreu e o novo ainda não nasceu, é preciso mais do que nunca “cortar o rastilho antes que a centelha chegue à dinamite” como Walter Benjamin propôs. O tempo está correndo e a solução não se dará num passe de mágica.

--

--