Filosofia para designers (3/3)

O mundo é repleto de códigos e precisamos estar, a todo tempo, decifrando-os para poder nos sentirmos presentes. Nele há coisas materiais, e mais ainda, imateriais, as não coisas, onde valores e significados se misturam para compreendermos sua verdadeira essência. Seja bem-vindo(a) ao mundo codificado e fenomenológico!

Almir Henrique Dantas
CESAR Update
Published in
7 min readJun 7, 2019

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Se você caiu neste post de paraquedas, saiba que ele começa em ‘Filosofia para designers (1/3)’ e continua em ‘Filosofia para designers (2/3)’. Recomendo então, a leitura destes artigos anteriores para poder assimilar bem a viagem que estou fazendo pelos universos do design, da filosofia e da tecnologia. ;)

FULGOR NOCTURNUS — A caneta mais cara do mundo.

A imagem acima trata-se de uma caneta que vale 6 milhões de euros, você acredita? Pensei: para valer isso tudo ela deve ter wifi, bluetooth, dez câmeras de 80 Megapixels, servir como caneta espiã, ter tinta ultravioleta e inesgotável, um projetor multimídia, ser uma espécie de controle universal para todos os equipamentos eletrônicos inclusive drones, além de GPS, ter tecnologia 6G, corte à laser e inteligência artificial, e vir com um iate ou um jatinho de brinde, porque não é possível, né não?! Pois sim amigos, é verdade… ela foi produzida pela casa Tibaldi e vendida em 2010 num leilão em Xangai por 6 milhões de euros. Isso tudo porque ela é decorada com 945 diamantes negros e 123 rubis e é peça única no mundo.

Mas véi, é apenas uma caneta!

Para que tá feio!

Mas então, onde quero chegar com essa introdução é: por que o valor de algo pode ser tão expressivo para algo que nem é assim tão substancial? O design tem valor? É responsabilidade do designer atribuir esse valor?

Ouvimos muito que o design agrega valor, seja em produtos, serviços, processos, organizações etc. Então, vamos ver como e por que o design tem esse poder e os impactos que isso causa na sociedade, além de saber qual a conexão disto com o mundo codificado de Villém Flusser.

Design como uma terceira cultura do conhecimento, por Bruce Archer.

Bruce Archer, um engenheiro mecânico britânico, professor de Design Research, um dos principais agentes defensores da pesquisa em design e quem ajudou a estabelecer a área como uma disciplina acadêmica, esquematizou essa relação do design como sendo uma terceira cultura do conhecimento além das ciências exatas e humanas.

Todas essas culturas do conhecimento, podemos dizer, investigam a natureza do mundo e do homem, e para Flusser essa investigação trata-se de decodificar o que está codificado para obtermos respostas e compreender melhor suas essências através dos seus significados e valores.

O mundo é todo codificado e o seu código é a informação.

Do ponto de vista etimológico, ou seja da origem da palavra, Rafael Cardoso afirma que "a manufatura corresponde ao sentido estrito do termo “in+formação” (literalmente, dar forma a algo). Portanto, no sentido mais amplo, fabricar é informar," ou seja, é pôr uma dose de informação em uma forma.

Para entender isso veja o que Flusser diz sobre a relação forma e matéria tendo como ponto de ação transformadora o design:

Se “forma” for entendida como o oposto de “matéria”, então não se pode falar de design “material”; os projetos estariam sempre voltados para informar. E se a forma for o “como” da matéria e a “matéria” for o “o quê” da forma, então o design é um dos métodos de dar forma à matéria e de fazê-la aparecer como aparece, e não de outro modo. O design, como todas as expressões culturais, mostra que a matéria não aparece (é inaparente), a não ser que seja informada, e assim, uma vez informada, começa a se manifestar (a tornar-se fenômeno). A matéria no design, como qualquer outro aspecto cultural, é o modo como as formas aparecem.

Deu um nó na cabeça um pouco? Calma, é o seguinte: "como a própria palavra 'informação' indica, trata-se de 'formar em' coisas, portanto todas as coisas contém informações: livros, imagens, embalagens, paisagens, objetos ou qualquer outra coisa que você imaginar. Para que a informação — uma não coisa — se torne evidente, é preciso apenas ler as coisas, 'decifrá-las'."

Uma não coisa? Humm interessantxe…

Pensando nessas "não coisas" podemos constatar em nosso século o que Flusser afirma sobre o objetivo das ciências, que antes, "era formalizar o mundo existente e hoje o objetivo é realizar as formas projetadas para criar mundos alternativos. Isso é o que ele entende por 'cultura imaterial'." A realidade virtual é um belo exemplo disto. "Nosso interesse existencial desloca-se então, das coisas para as informações — das coisas para as não coisas. Estamos cada vez menos interessados em possuir coisas e cada vez mais querendo consumir informações."

Os códigos que Flusser tanto fala, (e os símbolos que os constituem) “tornam-se uma espécie de segunda natureza, e o mundo codificado e cheio de significados em que vivemos (o mundo dos fenômenos significativos, tais como o anuir com a cabeça, a sinalização de trânsito e os móveis) nos faz esquecer o mundo da “primeira natureza”. E essa é em última análise, o objetivo do mundo codificado que nos circunda: que esqueçamos que ele consiste num tecido artificial que esconde uma natureza sem significado, sem sentido, por ela representada.” — Portanto o objetivo da comunicação humana é nos fazer esquecer desse contexto insignificante em que nos encontramos e resignificar o que em aspecto fenomenológico apenas há.

O significado e sentido das coisas e das não coisas então são medidos através do valor que cada indivíduo atribui.

Informações são muito valiosas e isso retrata bem o chamado "novo imperialismo", onde "a humanidade é dominada por grupos que dispõem de informações privilegiadas, como por exemplo a construção de usinas hidrelétricas e armas atômicas, de automóveis e aeronaves, de engenharia genética e sistemas informáticos de gerenciamento. Esses grupos vendem as informações por preços altíssimos a uma humanidade subjugada."

Este fato demonstra a transvaloração dos valores, onde "todas as coisas perderão seu valor, e todos os valores serão transferidos para as informações (não coisas)."

Portanto para equilibrar essas culturas, material e imaterial, segundo Flusser, “é necessário ter à disposição informações inconsumíveis, ‘inesquecíveis’, que não poderiam ser manipuladas. As informações inconsumíveis, portanto, não devem ser armazenadas em coisas. Se isso ocorresse, não haveria mais esquecimento, e assim a história da humanidade consistiria efetivamente num progresso linear: uma memória crescente, em plena expansão. Essas não coisas são simultaneamente efêmeras e eternas. Não estão ao alcance da mão, embora estejam disponíveis, pois são inesquecíveis.”

E o que seriam essas informações inconsumíveis porém inesquecíveis?

Nossas emoções e sentimentos. É nisto que companhias e designers deveriam se preocupar cada vez mais.

Uma pessoa pode esquecer de um produto que já teve e que, na época, tanto quis e ganhou ou comprou, mas que ficou obsoleto. Mas com certeza não esqueceu da primeira vez que o abriu da embalagem, daquela sensação que a experiência proporcionou e da história que teve por trás daquele ato.

Então, para nós designers, mais importante do que saber qual o verdadeiro valor das coisas que temos ou se estamos dando o devido valor as coisas e as não coisas, é saber qual o verdadeiro valor daquilo que fazemos, fabricamos, produzimos?

Como se opera então, esse processo de transpor qualidades perceptíveis visualmente para juízos conceituais de valor? De que modo as formas expressam significados?

Estas reflexões de Rafael Cardoso nos faz questionar se as informações que estamos produzindo estão sendo realmente úteis, éticas, sociais, holísticas, universais, acessíveis, inclusivas, para todos.

A questão da responsabilidade e da liberdade (inerente ao ato de criar) para Flusser, "surge não apenas quando se projetam os objetos, mas também quando eles são jogados fora. Pode ser que essa tomada de consciência da efemeridade de toda criação (inclusive a criação de designs imateriais) contribua para que futuramente se crie de maneira mais responsável, o que resultaria numa cultura em que os objetos de uso significariam cada vez menos obstáculos e cada vez mais veículos de comunicação entre os homens."

Então pessoal, para finalizar… Para quem estamos criando?

Flusser compara o novo homem (o novo consumidor) a um perfomer (participante ativo, ator, protagonista), ou seja "o novo homem é uma pessoa de ações concretas, um Homo ludens, e não Homo faber. Para ele a vida deixou de ser um drama e passou a ser um espetáculo.

Não se trata mais de ações e sim de sensações.

O novo homem não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja experimentar, conhecer, e sobretudo, desfrutar. Por não estar interessado nas coisas, ele não tem problemas. Em lugar de problemas, tem programas. E mesmo assim continua sendo um homem: tem consciência de que um dia irá morrer. Essas reflexões não atingirão a disposição básica da existência humana, o ser para a morte. Seja a morte considerada como a última coisa ou como uma não coisa."

A morte como uma não coisa? Rapaz…

Concluindo nossa viagem, repara essa provocação do Flusser:

O que aconteceria se no design dos produtos pós-industriais pudesse se manifestar um novo sentimento existencial?

“Reconhecer a complexidade do sistema já é um grande avanço. Se todos adquirirem alguma consciência do tamanho e do intricado das relações que regem o mundo hoje, será possível caminhar coletivamente em direção a um objetivo, seja qual for. O grande inimigo é sempre a ignorância, e as ideias preconcebidas que derivam da falta do exercício do pensamento.

Em termos históricos, o grande trabalho do design tem sido ajustar conexões entre coisas que antes eram desconexas. Hoje chamamos isso de projetar interfaces" — interfaces como elos de comunicação.

“Trata-se, contudo, de um processo bem maior e mais abrangente do que imagina o projetista sentado à sua estação de trabalho.

A parte de cada um é entender sua parte no todo.”

THE END.

Pois bem pessoal, é isto…chegamos ao fim da nossa viagem…

Aaaaahhhh… (espero que sua reação tenha sido essa).

Espero de verdade que você tenha gostado e aprendido muito sobre os universos incríveis da filosofia e do design!

Se quiser revisitar alguma das postagens desta série ou compartilhar fique à vontade, eu agradeço inclusive, pois quanto mais conhecimento espalhado melhor, e quanto mais disseminarmos o poder, o valor e a responsabilidade do design acredito que teremos um mundo melhor, um mundo onde as pessoas se unam cada vez mais para resolverem seus problemas de forma criativa, colaborativa, holística e eficiente.

Obrigado a você caro leitor pela companhia ao longo da jornada. Gostaria de agradecer também a essas pessoas que me ajudaram nas revisões e que sem elas este trabalho não teria saído tão legal como foi: Alex Pessoa, Carla Alexandre, Danielle Nathalia, Felipe Malafaia, Giselle Rossi, Luciana De Mari, Mariana Ramos, Mário Brandão, Priscila Alcântara, Rayanne Albuquerque, Tamires A.

Até breve \o

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