notícia não precisa ser falsa pra ser fake
– parte 1
por gustavo schwabe
você já parou pra pensar que hoje em dia se tornou cada vez mais comum espalharmos mentiras dizendo apenas a verdade?
num momento, em plena pandemia, onde tem muita gente enclausurada em casa passando o dia todo debruçada na internet, e quando começamos a discutir com cada vez mais seriedade a punição de quem espalha mentira, saber identificar uma fake news é cada vez mais urgente.
uma pesquisa da universidade de oxford descobriu que uma notícia falsa tem 70% mais chance de ser compartilhada na internet que uma verdadeira. muitos pesquisadores tentam descobrir o motivo. e o consenso até agora é que nós, seres-humanos, não temos um relacionamento racional com a informação, e sim emocional. e os algoritmos que determinam o que a gente recebe nas redes sociais são programados justamente pra responder a essas nossas reações emocionais.
e se pra mim, um jornalista com 20 anos de experiência, isso exige uma mudança radical na forma de lidar com informação, já imaginou então pra quem nunca trabalhou com notícias? porque tem muita fake news sendo espalhada onde a informação em si não é falsa, mas a notícia mesmo assim é fake. deu pra entender? bom, vou tentar usar um pouquinho do que aprendi nesses anos todos pra explicar…
fake news, numa tradução literal, seria simplesmente notícia falsa. mas hoje em dia é muito mais que isso. vamos, por exemplo, imaginar a seguinte notícia:
pacientes internados com coronavírus são curados e recebem alta
uma notícia como essa é simplesmente falsa ou verdadeira. agora imagina essa:
pacientes internados com coronavírus recebem medicamento experimental
da mesma forma, se isso aconteceu a notícia é verdadeira. se não aconteceu, é falsa. o problema maior mesmo surge quando uma notícia falsa é formada apenas por partes verdadeiras. por exemplo (eu realmente vi essa manchete recentemente num site):
pacientes internados que tomaram cloroquina se curaram do coronavírus
pronto, uma manchete dessas é suficiente pra inflamar uma reação em cadeia de pessoas defendendo o uso do medicamento, afinal a notícia provaria que ele funciona, né? nesse caso, as informações são verdadeiras, mas a conclusão que a notícia provoca é falsa. essa é a maior complexidade ao se tratar de fakenews. e por isso eu reafirmo: uma notícia não precisa ser falsa pra ser fake.
“a desinformação mais eficaz tem sempre uma pitada de verdade” (claire wardle – diretora executiva da First Draft, organização criada dedicada a educar jornalistas em uma era de desordem da informação)
para claire wardle, nosso maior desafio na situação atual não é simplesmente separar verdades de mentiras, mas sim identificar quando informações verdadeiras acabam criando um contexto falso.
complicado? então pensa assim: cigarro faz mal, né? hoje em dia todo mundo concorda com isso. só que nem sempre foi assim, lá nos anos 50 quando as primeiras pesquisas sobre os riscos do cigarro começaram a pipocar, também houve polêmica. mas hoje acho que ninguém tem dúvidas. então tá: cigarro faz mal! isso não significa que cigarro vai fazer mal pra todo mundo que fumar. sempre existe aquele caso do seu fulano que viveu 100 anos fumando todo dia. mas mesmo que ele tenha mesmo vivido 100 anos e mesmo que tenha mesmo fumado todo dia, fumar ainda faz mal.
esse exemplo do cigarro ajuda a gente a aprender a diferenciar coisas bem importantes: história, fato, dado, e evidência. você sabe a diferença?
- uma história só pode ser tratada como fato se for verdadeira (ou seja, se o seu fulano realmente viveu 100 anos fumando todo dia, isso deixa de ser simplesmente uma história e passa a ser um fato)
- mas um fato só pode ser considerado um dado científico se tiver representatividade, ou seja, se esse fato se repetir vezes suficientes pra que seja considerado uma tendência. se a maioria das pessoas que fumam todos os dias vivessem 100 anos, aquele fato se tornaria um dado. e junto com outros dados, poderia construir a evidência que cigarro não faz mal a saúde
- mas como pesquisas demonstraram o contrário, que a maioria das pessoas que fumam não só não vivem 100 anos como ainda desenvolvem doenças graves, aquela história do seu fulano, mesmo sendo um fato, não é suficiente pra se tornar um dado científico capaz de sustentar a evidência que fumar não faz mal.
resumindo: uma única história, mesmo que verdadeira, será enganosa se não estiver acompanhada de dados em larga escala que a confirmem. voltando então ao caso da notícia da cloroquina: sim, os pacientes tomaram o medicamento. e sim, eles se curaram do coronavirus. ou seja: a história é verdadeira, então isso é um fato. mas além de ser um fato, é um dado suficiente pra concluirmos que se trata de uma evidência da eficácia do remédio? não.
cloroquina foi apenas um dos medicamentos que eles tomaram. quem garante que foi a cloroquina e não outro tratamento o responsável pela recuperação? pense o seguinte: todos os pacientes estavam no mesmo hospital. todos fizeram as mesmas refeições. vamos supor que todo dia no almoço e no jantar recebiam suco de caju para beber. a mesma manchete poderia ser: “pacientes que beberam suco de caju por 20 dias se curaram do coronavirus”. da mesma forma, seria uma história verdadeira – ou seja, um fato. mas insuficiente pra gente afirmar que suco de caju cura o corona!
pra isso, como vimos, muitos fatos similares precisam ser identificados e outras possibilidades precisam ser descartadas pra que esses fatos virem dados capazes de sustentar uma evidência.
o ponto aqui nem é discutir a eficácia ou não da cloroquina. mas apenas mostrar, com esse exemplo, como fake news vai muito além de uma notícia falsa. notícia falsa a gente rebate dizendo um simples “isso não aconteceu”. mas quando uma fake news vem em forma de notícia verdadeira, tudo fica muito mais difícil. porque aí a gente precisa começar dizendo “não é bem assim…”
então, como podemos nos defender? e como podemos rebater essas fake news? bom, a dificuldade só aumenta. mas isso é assunto pro nosso próximo texto…