Sobre linhas intransponíveis

Amanda Lira
3 min readApr 25, 2019

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Durante alguns bons anos, minha rotina era esta: acordar cedo e sair de Lagoa Santa, cidade a cerca de 30 km da capital mineira, para, com sorte, chegar no primeiro horário da aula. Nada de inusitado para moradores da região metropolitana de Belo Horizonte.

Para cumprir esse trajeto, tomava três ônibus: dois nas vias principais e um no bairro. O primeiro deles, o intermunicipal, era o mais demorado e a viagem durava cerca de uma hora.

A estrada, intitulada Linha Verde, era repleta de contrastes. Meu percurso começava na região próxima ao aeroporto de Confins, cercada por hotéis de luxo à beira da estrada, e terminava na bifurcação entre duas das principais avenidas de BH, que dão boas vindas à metrópole e ao seu trânsito matinal.

Entre Lagoa Santa e Belo Horizonte existem duas cidades. Na paisagem, passamos por fábricas, fazendas, pelo CT do Galo e, claro, pela Cidade Administrativa. Na transição entre cada uma dessas atrações, algo menos apreciado pelos viajantes: as comunidades periféricas instaladas entre as regiões.

O contraste, repito, é grande. A linha que separa cada contexto, no entanto, é tênue. Em alguns quilômetros de viagem, é possível perceber.

Cena do filme “Ostentação”, de Marcelo Lin e Fernando Rossi

Marcelo Lin é um dos principais nomes do cinema produzido por negros na capital mineira. Marcelo Lin também percebeu o contraste, mas em um movimento perpendicular: o de travessia.

Enquanto ônibus como o meu passam pela Linha Verde, algumas crianças soltam pipa às margens da rodovia. Essas crianças se concentram especialmente em um bairro, o São Benedito, localizado bem à frente da imensa e imponente Cidade Administrativa.

Enquanto os olhares encantados se voltavam para a sede do governo de Minas Gerais, Lin virava as costas e analisava o contraste: de onde vêm aqueles jovens?

A resposta é dada em um dos melhores curtas a que assisti recentemente (assista aqui). No filme que dirige ao lado de Fernando Rossi, Lin coloca em evidência a tal linha tênue que separa a simplicidade da “Ostentação” — nome da obra.

Contraditoriamente, a linha que aparta é também a linha que aproxima: é com rabiolas e papagaios em mãos que as crianças da periferia se achegam àquela edificação tão deslumbrante quanto inatingível.

Como em toda travessia simbólica e literal, entretanto, a ação dos garotos não é irrestrita. Logo, seus planos são cortados e eles são devolvidos à realidade de onde vêm.

Um dos maiores riscos dos motociclistas que se utilizam da Linha Verde é especialmente essa região: sempre há o perigo de que as linhas das pipas venham de encontro às motos e causem um acidente.

Um dos maiores riscos das pessoas que atravessam a Linha Verde é também essa região: não há passarela que interligue as duas realidades, tão próximas e tão destoantes.

Apenas para se ter uma ideia, a Cidade Administrativa, inaugurada em 2010, demandou R$ 1,7 bilhão de investimentos. No mesmo ano, do outro lado da via, no município de Santa Luzia, a renda per capta média era de R$ 557,62, R$ 200 abaixo da média nacional (vide Atlas Brasil) — e certamente muito menor que o salário dos servidores públicos que trabalham no prédio do governo.

A união, nesse ponto, é resistência. (O filme é todo maravilhoso, mas uma cena merece uma menção honrosa. Começa em 7:05). Afinal, de que outra forma desafiar os traços e riscos que se impõem?

Há vida do outro lado da Linha.

O filme de Lin comprova: a realidade nos atravessa de diversas formas. Às vezes, precisamos trafegar por alguns quilômetros. Às vezes, basta atravessarmos uma via. Em qualquer dos casos, é importante estarmos atentos às linhas, tênues, quase invisíveis, que demarcam travessias intransponíveis.

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