Não há desenvolvimentismo sustentável

Amanda Matta
8 min readFeb 8, 2019

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Sustentabilidade parece ter sido um assunto que caiu na boca do povo em uma época muito crucial para a minha formação: quando eu estava no Ensino Fundamental I e aconteceu a crise dos apagões no Brasil. Lembro de voltar para casa da escola com adesivinhos para colar pelas paredes da casa indicando métodos de consumir menos recursos (água, energia) e com slogans sustentáveis. Talvez por isso, o tema sempre me moveu e intrigou.

À medida em que fui crescendo, no entanto, algumas coisas começaram a chamar a minha atenção e gerar questionamentos. Como podemos falar em sustentabilidade se precisamos de indústria para absolutamente tudo na vida de uma cidade? Se cada micro item do nosso dia a dia, de borracha escolar a comida, vem triplamente embalada em plástico? Se as lâmpadas dentro de uma casa podem até estar desligadas, mas há uma multiplicidade de telas acesas que geram um valor evidentemente não compensatório nas contas do final do mês?

Única opção de gengibre no supermercado: em bandeja de plástico, embrulhado por plástico

O padrão de vida que vivemos é reconhecidamente insustentável. No famoso teste pegada ecológica, é possível perceber que apenas um planeta não consegue sustentar nossos hábitos. E estou me restringindo neste texto apenas à sustentabilidade em sua acepção mais tradicional, de sustentabilidade ambiental: se discutíssemos o custo diretamente humano deste padrão de vida, a conversa ficaria ainda mais (in)tensa.

Apesar de toda esta discussão ser amplamente divulgada e de sofrermos consequências drásticas e visíveis, os mais populares planos de governo tanto de esquerda quanto de direita insistem em um fomentar a economia através do tal do desenvolvimentismo. Na prática, vende-se a ideia de que é necessário repetir o padrão de industrialização do “Velho Mundo” para com eles competir em um cenário de economia transnacional e globalização.

Propõem-se políticas econômicas com o objetivo de industrializar o país, sem uma diferenciação das regiões e necessidades do país. A meta é superávit da balança e aumento do PIB — quantidade acima de qualidade. Não é de se surpreender que o país que passou pelos últimos 20 anos em um processo de inserção pelo consumo tenha alguma dificuldade de enxergar saídas fora dele.

Cada fruta deve ser marcada: propriedade e competitividade industrial até no que é diretamente da natureza

Direita e esquerda, capitalismo, reformismo e comunismo

Os três partidos com maior votação para presidência em 2018 ilustram bem a perspectiva majoritariamente desenvolvimentista do país: PSL, PT e PDT. Mais à esquerda ou mais à direita, defendendo projetos mais “revolucionários” (pelo menos no discurso) ou mais reformistas, não fugimos da lógica do capital.

Nessa lógica, importam os números de produção e o fluxo de recursos (sejam eles propriedade de alguns poucos ou de todos). Vale mais uma floresta embaixo d’água produzindo energia do que duas sem que delas o homem tire proveito direto.

Precisamos alcançar o Velho Mundo: nosso minério deve ser aproveitado em casa na produção de nossos próprios celulares, nosso açai deve ser processado em casa para que nós mesmos vendamos seu pó no Japão. Importemos leite da União Europeia e vendamos carne para os países árabes, a meta é fique mais dinheiro no país do que fora dele.

Mas todo país é igual e existe um caminho único para o viver bem?

O Brasil ainda tem, de acordo com a ONU, quase 60% de suas terras cobertas por florestas (Aos Fatos). No entanto, nos últimos 30 anos, perdemos 20% da Floresta Amazônica e 50% do Cerrado, em uma velocidade impressionante de desmatamento (dados da WWF, em reportagem da BBC), motivada principalmente por interesses pecuaristas.

A taxa de extinção de espécies hoje é de 100 a 1.000 vezes maior do que era antes do antropoceno, e nas Américas Central e do Sul, a deterioração do ecossistema é ainda mais grave — com redução de 89% dessas populações. Dos 17% de terras em áreas de conservação de biodiversidade recomendados pela ONU, temos no Brasil apenas 8%, ainda de acordo com a WWF.

Se somos tão ricos em biodiversidade, ainda temos chance de conservar parte dela e os “países ricos” demandam tanto do meio ambiente, será que devemos neles nos inspirar?

Será que o único modelo possível para o Brasil é mimetizar a história alheia?

Desenvolvimentismo e capitalismo estão ligados em sua raiz. Se a origem do capitalismo é reconhecida no processo de acumulação primitiva de terras no final do século XV na Inglaterra, a origem do desenvolvimentismo está na industrialização que essa cruel expropriação de terras possibilitou.

Antes desse movimento, a maior parte da civilização ocidental vivia como camponeses livres, que ainda que sem títulos de propriedade de sua terra a possuíam como donos. A população destinava parte de sua produção para seus senhores feudais, mas subsistia com a maior parte dela, que também era usada em trocas e pequeno comércio.

A produção agrícola, e principalmente aquela da época, tem uma característica específica: não pode ser acumulada. Não é possível se tornar “rico em maçãs” porque você as pode ter todas guardadas em um grande armazém por anos.

Os tecidos que começam a ser produzidos com a lã das ovelhas que agora ocupavam as terras expropriadas das famílias camponesas, no entanto, podem ser estocados em um grande armazém por anos. Assim como a maior parte dos bens industrialmente produzidos.

O homem que trabalha para essas indústrias não gestiona mais seu tempo conforme a natureza, e sim conforme as máquinas. Sem sua terra e seus meios de garantir subsistência, vende sua força de trabalho como lhe for possibilitado — ele não tem escolha. E os recursos para sua subsistência agora precisam ser comprados. Sem onde viver, a população se aglomera perto de seu lugar de trabalho, no processo de criação do que hoje conhecemos como cidade.

Até a água é engarrafada e comprada, estocada nas casas

O capitalista, dono das produções, nem sempre a escoa na velocidade de sua produção, acumulando-a. O trabalhador não consegue produzir os meios de sua vida ou mesmo adquiri-los na velocidade de seu consumo, e tenta acumulá-los.

A palavra do capitalismo é acúmulo. E se para manter a economia girando é necessário manter a produção, é necessária que as pessoas estejam sempre comprando. E assim nasce a obsolescência programada.

Estamos revivendo o acúmulo das nossas terras.

O Brasil é povoado, ainda hoje, por quase 300 diferentes etnias, sendo que a maioria delas (que corresponde a uma minúscula minoria em quantidade de pessoas no país) se recusa a ceder aos métodos capitalistas. Estes povos vivem de suas terras e negam a necessidade do acúmulo, dada a abundância da natureza. Suas terras estão hoje ameaçadas.

Os outros de nós, considerados uma maioria única de não-indígenas (o que há de tão comum entre um paulistano dos Jardins e um ribeirinho da Amazônia?), também temos nossas terras, outras, ameaçadas. Sejam os nossos apartamentos e casas, cada ano menores, ou nossas florestas, que estão deixando de ser habitat de milhares de diferentes plantas, animais, insetos, e tornam-se campo para monoculturas de sementes inventadas pelo homem mas cultivadas por máquinas. Em 15m² de São Paulo há famílias de 4 membros, mas milhares de alqueires de terra são completamente desabitados por qualquer forma de vida.

No Velho Mundo, a “agricultura” compra soja transgênica do Brasil para alimentar vacas geneticamente modificadas que produzem esterco, que precisa ser vendido internacionalmente, e leite, que vira pó e substitui alimentação natural na África (The Milk System). Seu modelo de desenvolvimento depende da exploração de todo o resto do globo. Quem vamos explorar para nos tornarmos igualmente desenvolvidos?

Nossa demanda hoje de uso de hectares globais para sustentar nosso modo de vida é quase metade daquele dos EUA e bastante inferior ao da União Europeia (WWF). O que acontece se nós, “subdesenvolvidos”, alcançarmos a demanda ambiental dos “desenvolvidos”?

Mas e o desenvolvimento sustentável?

A ideia do desenvolvimento sustentável é que ele compatibilize meio ambiente e economia/industrialização. Seria possível um desenvolvimentismo não destruidor.

É verdade, existem tecnologias que melhoram a vida das pessoas, e mesmo aquelas que geram melhoras em termos de preservação ambiental. Um secador de mãos elétrico, à base de ar quente, é certamente menos danoso do que o uso de papel ou até de toalhas que devem ser constantemente lavadas.

Mas quem produz essa tecnologia? Como ela é transportada?

De onde vem esse vento? De onde vem esse metal? Na melhor das hipóteses, vem de hidrelétricas, como Belo Monte, que deixam uma estrada de corpos em seu caminho. De campos de energia eólica, que geram devastação do meio ambiente e impossibilitam a vida das pessoas. Vem de Brumadinho e Mariana e todos os enormes buracos arrancados de nossas terras.

Salada picada, pré-lavada, ensacada. Nem parece que nasceu em um pé, igualmente possível de transportar.

Mesmo os produtos industrializados sustentáveis, como os canudos reutilizáveis, o gengibre orgânico ou a pasta de dente natural geram uma quantidade impressionante de lixo. Vêm marcados com uma marca e uma embalagem (produzidas de plástico ou papel), são distribuídos por carros e caminhões ao longo do país. Se a indústria não distribui seus produtos, gera demanda do consumidor e não os marca como seus, não sobrevive - e deixa de ser indústria.

E o mais importante, como a empresa vai se sustentar, se vender um único aparelho por estabelecimento?

Só é sustentável o reenvolvimento, nunca o desenvolvimento.

A gestão sustentável dos recursos precisa ser distribuída sem embalagem que é lixo, precisa poder ser feita autonomamente pelas pessoas, precisa, em síntese, ser local e feita de relações orgânicas entre a humanidade e a natureza. Isso significa, sim, que não é possível ter maçã na mesa todos os dias, que não é possível comer açai no Japão, que nem todo mundo vai poder ter uma blusa de lã no armário.

A inexistência do “acesso igualitário ao consumo” não tem nada de injusto ou de volta ao passado. Não é uma negação ao sabonete ou ao celular: apenas a ideia de que o sabonete pode ser natural e produzido localmente, e o celular não precisa ser trocado a cada ano. O anti-desenvolvimentismo não nega a tecnologia, e sim a industrialização sem limites.

Enquanto insistirmos em uma lógica industrializadora, não é possível construirmos soluções sustentáveis. O planeta — e as pessoas- não aguenta o ritmo de produção e consumo que é necessário para a manutenção da economia em grande escala.

O canudo de metal reutilizado que é produzido com minério de Minas Gerais, em uma fábrica na China, comandado por uma empresa no Canadá, e usado em uma mesa na Argentina nunca será mais sustentável do que não usar canudo nenhum. Ou do que apenas o uso do canudo de mamão da horta daqueles que dele precisam.

Enquanto a “economia verde” for mote de venda em escala, ela nunca será sustentável. Sustentável é aquilo que mimetiza a natureza, confiança em sua abundância local e aprende que não é necessário estocar, apenas saber usar.

El desarrollo desarrolla la desigualdad
(Veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano, p. 17)

Mais sobre críticas ao desenvolvimentismo com a musa Sabrina Fernandes.

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