O ser humano é naturalmente mau (?)

Amanda Matta
5 min readMay 16, 2019

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O título original desse texto era “o ser humano é naturalmente xenófobo”, mas para não correr risco de passar pano para racista, mudei. A ideia explorada, no entanto, é essa: o ser humano é natural/evolucionalmente uma espécie que se agrupa e rejeita/combate os outros grupos.

O argumento não é meu, e sim foi defendido por Nicholas Christakis no episódio 156 do podcast Making Sense with Sam Harris. Christakis é uma personalidade controversa da academia americana e devo adiantar que não me sinto alinhada com muitas de suas polêmicas; no entanto, o ponto da xenofobia do ser humano me parece interessante.

O homem da pré-antiguidade

A ideia é a seguinte: para que pudesse sobreviver, o homem da antiguidade precisava se juntar em grupos. Esses grupos serviam tanto para compartilhar atividades quanto para a luta: é quase impossível combater individualmente um leão, mas um grupo de pessoas pode vencê-lo.

Esses grupos de humanos, por motivos de sobrevivência, precisavam aprender a se defender de qualquer não-membro, e isso envolve também outros humanos, outros grupos. Que há maldades e oportunismos entre humanos não há como negar, e a ideia seria ficar atento para que ninguém te pudesse prejudicar.

A defesa do seu grupo contra tudo e todos portanto estaria na essência do instinto de sobrevivência humano. Hoje, não estamos mais competindo com bizões ou lutando por uma terra (bom, na verdade isso sim, mas não é disso que tratamos hoje). Nosso instinto teria então se convertido em xenofobia e racismo.

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A criação das identidades

A divisão nós-eles é feita através do contraponto de identidades. Na sociedade moderna já não nos conformamos em tribos ou grupos meramente familiares, então novos agrupamentos e identidades são criados.

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, na Europa e suas colônias, formaram-se os Estados Nacionais: agrupamentos um tanto aleatórios de pessoas que eram unidas por estarem sob o poder de um grupo. Literalmente foram feitas guerras por reis que apropriaram grandes territórios hoje naturalizados como países.

Além das guerras, diversas políticas foram criadas para criar a noção geral de unidade/nação, como a criação e determinação de uma língua nacional. Forjaram-se, assim, muitas das identidades que hoje se defendem de maneira xenófoba.

É verdade que do ponto de vista de um tipo de leitura econômica, há que se defender a “economia do país” contra outros países. Também é verdade que as nações possuem uma certa comunidade cultural (linguagem, hábitos). Ambos, no entanto, foram criados de modo arbitrário e através da guerra. Se a guerra pode criá-los, porque não a solidaridade?

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Definição das identidades

Voltamos então a nossa divisão em grupos identitários. De uma identidade grupal/tribal quase natural, passamos para a defesa de identidades forjadas pelo nacionalismo ou por características físicas arbitrárias.

Isso porque além da identidade nacional há quem defenda a identidade biológica. Essa identidade no entanto também não é meramente biológica/natural, e sim muito relacionada com o conceito de nação e poder. Não há um grupo dos que têm olhos marrons contra os que têm olhos claros, por exemplo, e nem o grupo dos cadeirantes contra aqueles que não têm movimentos em um dos braços.

Se podemos forjar identidades pela guerra e pelo poder, que tal forjá-las por outros motivos?

Minha leitura sobre o Bem Viver

O Bem Viver é uma filosofia política embasada principalmente no nhandereko Guarani e no sumak kawsay Quéchua. Principalmente embasada na minha leitura do nhandereko Guarani, entendo o Bem Viver como uma defesa da liberdade responsável, sob um ponto de vista perspectivista e multinaturalista.

Liberdade responsável por conta da autonomia Guarani. Do que conheço do povo Mbyá, há um grande respeito à autonomia individual: uma vez adulta (perto dos 13 anos), cada pessoa basicamente pode fazer o que quiser, mas terá que colher as consequências.

Perspectivista porque nem só de humano se faz a terra. A ideia é basicamente uma coisa meio Matrix: pensamos que somos o topo da cadeia alimentar e que conhecemos mais do mundo do que qualquer outro ser vivo, mas isso é só porque somos nós os humanos. Outros seres seriam nossos pares, e não inferiores — e provavelmente também se acham os melhores, uma vez que olham o mundo de acordo com suas perspectivas (e convenhamos que de fato os gatos, pelo menos, parecem superiores a nós).

E multinaturalista porque a natureza é múltipla, é variada. Assim como a diversidade de uma floresta, o natural é que sejamos muitos, distintos, porém colaboradores entre nós.

O meu Bem Viver então é a utopia de um mundo em que nos agrupamos por valores e desejos em comum, enquanto simultaneamente respeitamos o outro — todos os outros: animais, rios, florestas, humanos. Não rompemos com a tal da característica natural do instinto de sobrevivência, mas a adaptamos para o bem dos nossos interesses.

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Eu não vejo tudo isso que une a mim e ao resto de todos os brasileiros: os que defendem os cortes na educação e esta reforma da previdência (meus vizinhos, da minha cor, classe social, língua, matriz religiosa), por exemplo, parecem ser muito mais distintos de mim do que as mulheres palestinas que lutam pelo seu direito ao território (que moram do outro lado do mundo, têm outras características fenotípicas, outra classe social, falam outra língua e têm uma religião da qual conheço muito pouco). Mas vejo um tanto de semelhanças com os ecossocialistas do mundo todo, independentemente de outras tantas características.

Quando defino a minha identidade de maneira múltipla, por diferentes características que escolho ter (minha religião, meus valores, meu pensamento político), isso me dá uma diferenciação que me faz sentir pertencente a um grupo e que me dá a clareza de defender o que acredito no debate conflituoso e saudável da sociedade. Por outro lado, me dá a percepção da multiplicidade de possibilidades e da imensidão do mundo.

Aliada à liberdade responsável, essa definição de identidade me permite e me obriga a ser quem sou enquanto respeito o outro, e nos limites da liberdade do outro. Preciso criar uma sociedade em que todos podemos ser, e não que força a todos uma única narrativa.

Se o ser humano é naturalmente segregacionista, que segreguemos pelas ideias e de modo respeitoso, e não pelo poder e de modo excluente.

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