Crônicas das Jornadas de Junho — Falcão em Ato Único

Amauri Gonzo
5 min readJun 22, 2016

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Até as Jornadas de Junho de 2013 eu nunca tinha perdido muito tempo pensando no Rui Falcão. Quadro vindo da esquerda radical (foi do VAR-Palmares), teve uma longa vida de militância pelo PT, ocupando diversos mandatos legislativos pelo partido. Acabou sendo alçado à direção nacional do PT quando José Eduardo Dutra teve que se afastar (ele acabou morrendo de câncer em 2015)em 2011. Ou seja, em 2013, entre o mensalão e o petrolão, não havia porque dar-se tanta bola à presidência do PT.

Mas aí vieram as Jornadas de Junho, nosso Maio de 68 bem de rua — e de Terceiro Mundo. Desde o primeiro protesto, xingava-se Haddad e Alckmin sem parcimônia, mas Haddad tinha um lugarzinho especial porque era, oras, “de esquerda”, e a tática autonomista sempre foi votar à esquerda e pressionar ela quando estivesse no poder. E desde o primeiro protesto, isso incomodava muitos dos então governistas.

Uma das coisas mais interessantes da construção do PT (e existem inúmeros méritos no partido) é o conceito de que ele pode e deve ser formado por tendências internas, que ali disputam espaço oficialmente. Não é pouca coisa, e o PT é um dos maiores e primeiros partidos do mundo a criar esse modelo. Dessa forma, o partido não age apenas como um bloco, mas pode divergir abertamente entre si. Isso aconteceu em 2013 — enquanto a cúpula e o Executivo ficavam de fora, tecendo altas críticas (incluindo aí um tanto de mentiras) ao MPL, junto com algumas das correntes majoritárias, a Juventude do PT apoiou os protestos já no 3º Ato.

A existência do MPL estava começando a se transformar numa dor de cabeça a nível federal para o PT quando, com a aberta conivência e incentivo da imprensa paulista e outros setores retrógrados, Geraldo Alckmin resolveu transformar a região de Cerqueira César em um estado de sítio. A partir de uma tática de agressão deliberada, com alto poder de fogo, a todos os manifestantes possíveis, incluindo um sem número de jornalistas (como o caso de Sérgio Silva, que perdeu um olho), a polícia militar de Alckmin conseguiu vencer a batalha simbólica pela Avenida Paulista, obviamente sob o pesado custo de também não deixar ninguém mais transitar pela via, além de cavalos, motos da Rocam e Blazers da Força Tática, circulando numa densa nuvem de gás lacrimogêneo.

A virada veio voraz, puxada pela foto de Giuliana Valone, jovem repórter da Folha, de olho ensanguentado. Num dos movimentos mais cínicos da imprensa brasileira, e olha que a história os acumula de baciada, logo os jornalões estavam todos INDIGNIDÍSSIMOS com uma atuação que, pela manhã do dia 13 de junho, teria sido saudada como exemplar. O Eduardo Roberto resumiu na Vice o sentimento do dia, puxado de um pixo de banheiro: não vai haver amor nessa porra nunca mais.

A reação da imprensa foi rápida e isolou de vez a classe política como um todo, refletindo um discurso antigo de que “político não presta” e saudando o movimento como “apolítico” (demorou uns dias para tentar coloca-lo novamente como “apartidário”, mas lá estava o recado). No gigantesco 5º Ato, subdimensionado pela imprensa e PM, surgiu às ruas uma outra massa, difusa, chamada tanto por uma insuspeita vontade de “mudar o meu país” quanto por uma saudável atitude em rechaçar a violência policial de Alckmin.

Neste e no 6º Ato, já abria-se a tensão do não-partidarismo advinda dessa nova massa paulistana, que chegou tarde mas quis seu quinhão de protagonismo. Ainda assim, os gritos de “sem partido” não ganhavam tanto eco, e o MPL efetivamente reconheceu, através de todos os meios disponíveis, a participação dos partidos menores da esquerda (PSOL, PSTU, PCO), suas correntes e também da legião de dissidências trotskistas, além mesmo da própria Juventude de PT, na construção da sua luta.

E aí que veio a bomba petista de Rui Falcão. Enquanto o partido demorava-se como um todo, especialmente nas instâncias governamentais, para efetivamente ouvir a voz da ruas, o sentimento anti-petista começava a nadar de braçada nessa nova massa. Mas quando a virada tornou-se inevitável, e os R$ 0,20 de aumento no transporte coletivo que de certa forma era um símbolo do processo de luta, caiu de maduro um dia antes do 7º Ato, Falcão puxou o tapete do precariado em luta numa jogada de um destrambelho que resume a falta de capacidade de comunicação dos governos petistas pós-Lula com precisão. Convocou o PT a participar ativamente do último Ato, afinal, a derrubada do aumento tinha sido fruto também da “luta” do partido. O PT tinha então o direito de “comemorar” a revolução.

É claro que as massas do 5º Ato em diante se consideravam também donas dessa vitória, mas, vamos admitir, o PT chegara tarde demais para pedir para sentar na janelinha. E com isso Falcão jogou a massa toda no colo do proto-fascismo, que crescia num discurso, não sem fundamento, de que o partido estava sendo “oportunista” com a luta alheia. A esquerda organizada, por sua vez, foi carregada a reboque e solidariedade para dentro desse turbilhão.

O 7º Ato foi um momento extremamente triste, inclusive para o MPL. Acossada, a esquerda partidária se reuniu em um bloco, mas foi engolida pela massa, sob forte pressão e uma dose de agressão gratuita fomentada por um bando de nazi-fascistas (alguns deles skinheads, mas nem todos) de prontidão. Esse bloco foi obrigado a se desfazer, mas até mesmo o bloco anarquista sofreu os efeitos do oportunismo petista. Nunca vou me esquecer de estar ao lado deles, com as bandeiras rubro-negras, outras pretas e também algumas vermelhas do socialismo libertário, e ouvir em alto e bom som um grupo razoável de verde-e-amarelos gritando “sem partido! Sem partido!” para nós, contra as bandeiras e outros símbolos. Era possível ler a raiva estampada no rosto de muitos dos anarcos: “como assim ‘sem partido’?! Foi a gente que INVENTOU essa porra de não ter partido”. Foi um momento didático para muita gente.

Acabei encontrando os malucos dos meus amigos, e o resto da noite foi de tensão, sempre preocupados com nossa segurança — chegavam relatos de que skinheads perseguiam pessoas de vermelho Augusta abaixo, caçando nos bares e agredindo verbalmente e fisicamente. Lembro de um amigo contar que chegou em casa tenso e semi-bêbado e ao ver na TV a nova adaptação d’“O Uivo” de Allen Ginsberg, desabar no choro. No dia seguinte foi a minha vez — me debulhei convulsivamente ao ver bandeiras sendo queimadas num vídeo de retrospectiva, pensando que logo mais seria a vez dos livros. Sei que talvez a história não fosse tão diferente caso o oportunismo petista não tivesse sido tão escancarado, e sei também que votei e certamente voltarei a votar no PT, e nada me causa mais ânsia que o fascismo. Mas também o que nunca mais me arrefeceu foi a raiva de Rui Falcão.

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Amauri Gonzo

Amauri Gonzo é jornalista radicado em São Paulo. Foi editor do Noisey (portal de música da Vice), da +Soma, foi repórter do G1 e redator na Conrad Editora.