O Bonaparte a que se convém

Amauri Gonzo
3 min readJun 18, 2016

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A maior sacanagem que o olavismo e seus recém renegados asseclas libers fazem com os seus novos acólitos é lhes negar o acesso às obras de Karl Marx. Além de perderem a chance de se depararem com insights econômicos que, se não explicam o funcionamento do Capital como um todo, contêm insights valiosos usados sorrateiramente por economistas de várias matizes, para não se falar do seu uso pelos capitalistas em si, também escamoteia-se deles quanto que seu bispado aprendeu com a análise política de Marx.

De todos os tratados políticos de Marx, o que mais se volta às vicissitudes da democracia liberal e suas fragilidades é o brilhante — e não há nenhum exagero no adjetivo — “18 de Brumário de Luís Bonaparte”. É ali que estão as bases do pensamento que vai descambar no “Marx tardio” pós-comuna, que resplandece com facilidade em “A Guerra Civil na França”, de 1871. É claroq eu o pensamento de esquerda que se alinha, em qualquer medida, com o marxismo, tem uma forte correlação com a 11ª Tese Sobre Fuerbach (“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”), mas é possível convidar o leitor a derramar os olhos no ensaio de 1852 sem exigir dele qualquer ímpeto revolucionário prévio (ou posterior).

Em “18 de Brumário”, Marx analisa, quase em tempo real, o golpe de Estado realizado pelo sobrinho de Napoleão Bonaparte, Luis Napoleão, na confusão que se deu após a Revolução Republicana de 1848 na França. O panorama traçado pelo filósofo alemão é de um déspota de terceira categoria ascendendo ao poder ao jogar habilmente as diferentes instâncias de uma recém-instaurada democracia entre si — esquerdistas, blanquistas, pequeno-burgueses, camponeses, monarquistas, financistas e industriais, entre inúmeros outros, numa disputa intestina pelo poder num jogo de morde-assopra que vai do litígio às escaramuças de rua, passando pelas diversas maneiras de se estabelecer parâmetros legais para o embate político.

O livro é conhecido por conter uma das mais famosas máximas de Marx, normalmente resumida como “a história sempre se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa”, mas apesar dessa versão resumida perder o contexto do originai, a sequência é ainda mais importante: “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Essa sentença é praticamente um corolário de análise e ação política, e ninguém que queira se aventurar por tais caudalosas águas com clareza tem o direito de ignorá-lo, sob o risco de submergir na vaga das eras. O materialismo histórico delineado ali por Marx, que pode ser lido nas suas entrelinhas com clareza, vai ser debitário da realpolitik da segunda metade do século XX que ainda acompanha com a crueza necessária a ação política do capitalismo tardio.

O Brasil de 2016 não tem nenhuma correlação direta com a França pós-1848, mas a análise sóbria e muitas vezes divertida (uma palavra: “sicofantas”) de Marx oferece uma mapa para outro território semelhante, um conjunto de não-fórmulas, mas de saídas linguísticas, para se reconhecer a míriade de processos operando sob o tecido político. Para os abastados, recomenda-se a edição primorosa da Boitempo, com suas notas e posfácios. Para o precariado, a tradução portuguesa disponibilizada gratuitamente pelo marxists.org não deixa tanto a desejar — na verdade por vezes parece mais clara. Vai na fé, o bom velhinho agradece.

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Amauri Gonzo

Amauri Gonzo é jornalista radicado em São Paulo. Foi editor do Noisey (portal de música da Vice), da +Soma, foi repórter do G1 e redator na Conrad Editora.