ANDRÓGINO

Ana Mello
5 min readSep 11, 2017

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Para de fazer gênero, Andrógino!

Que fazer gênero, sai pra lá. Tô aqui na fila. Fila que aliás não anda… Olhou para o que era provavelmente suas mãos, comentou com ar desabusado o número do seu ticket :

58 !

Como assim 58 ?

O ser que esperava com ele na fila pareceu surpreso com a informação. Tem certeza que você está indo para o lugar certo ?

Tenho, meu Zeus! Foi pra cá mesmo que me mandaram. Portão noventa e oito.

Andrógino, você é a figura mais sem senso de orientação que eu conheço.

Noventa e oito é sul, cara ! Tu tá no norte…

Andrógino se sentindo confuso conferiu duas vezes seu ticket, noventa e oito, ele tem razão, é portão sul, que merda, xingou pegando a sua mala no chão, olhando de um lado para o outro, e agora onde é que fica a porra desse portão sul ? Imaginou quantos anos perdeu esperando a vez na fila errada. Que seja. Inspirou, um velho hábito terrestre, e misturou-se de novo na correnteza, pedindo licença aqui, empurrando um pouquinho ali, passando exprimido por onde dava, mostrando o mapa para qualquer alma bondosa disposta a ajudá-lo.

Portão sul ? Não conheço…

Noventa e quanto mesmo ?

Almas bondosas mas perdidas, concluiu, se sentindo como elas, sabendo portanto que esse era um péssimo momento para questões existenciais. Tinha um ticket, repetiu mais uma vez para se acalmar, um número, 58, estava registrado como passageiro, uma hora — peço desculpas pela expressão inapropriada — daria de cara com o tal portão. Preferiu ser levado pelo movimento, pela crença de que o destino decidiria por ele (mais um reflexo da sua experiência terrestre). Continuou assim, pensando nas vidas, despreocupado, quase dormindo, quando o ruído de um trovão chamou-lhe a atenção.

Seria o destino ? Que temporal aqui não existe!

Era o Desespero em pessoa, recrutando candidatos para a Itália.

Urgente, 522 vagas ! gritou com sua voz grave.

Estava mais gordo de uns tempos para cá. Andrógino reparou na pança cheia de Desespero.

Terremoto recém-acontecido, candidatos por aqui! continuou a obesa criatura, precisamos mandar almas de volta para evitar lotação etérea.

Andrógino resolveu arriscar. Sabe lá quando iria chegar naquele portão sul ? Já estava cansado de parecer vento, energia, fluído, queria sentir de novo essa sensação cômoda de caber em um corpinho.

Levantou a mão, ou o que parecia ser sua mão, foi aspirado instantaneamente para a saída de emergência.

Itália, confirma ? perguntou Desespero.

Confirmo, respondeu Andrógino, na beirinha ali do embarque.

Quer Homem ou Mulher ?

Taí uma boa pergunta. Pensou durante esse centenário todo que passou lá em cima sobre suas vidas, acúmulo de experiências, planos para encurtar a espera, mas esqueceu essa questão do sexo. Era realmente uma figura sem orientação nenhuma, concluiu.

HOMEM OU MULHER, apressou o Desespero, querendo logo resolver a questão da essência do candidato, dando-lhe um tapinha na alma para que a reflexão se acelerasse.

Andrógino, sem conseguir se decidir, na dúvida pegou as duas, enfiou-as em si, no caminho eu resolvo.

Pulou, deixando o Desespero perplexo lá em cima.

Aterrizou.

Mas na urgência da situação chegou tão rápido que mal teve tempo na viagem de comer um amendoim ou de tomar uma coca cola, de pesar os pros e os contras de cada sexo, de se desfazer de uma das suas essências. Chegou em sua reencarnação tão homem quanto mulher. As duas essências ali, juntinhas, em um corpo só. Que calhou ser de uma mulher.

Madame Mariposa.

A masculina achou que poderiam ter reencarnado em uma pessoa com um nome mais neutro.

Para de ser besta, respondeu a feminina. Mariposa é um nome charmoso, elegante, que incarna a transformação.

Estavam em 2021.

A primeira crise aconteceu já na escola maternal. Chegaram de mãozinhas dadas, mas cada mãozinha quis puxar impacientemente o corpinho para um lado : a essência feminina quiz correr para as bonecas, com as quais havia brincado durante várias vidas, a masculina, pelo mesmo motivo, se dirigiu para os carrinhos. O que fez a criança ficar inerte no meio da classe. A professora, vendo os cachos loiros de Mariposa saltando de uma fivela de borboleta (era moda, pouco importava para os pais da menina se a fivela constituía em si uma redundância), orientou o pequeno ser para a ala menos evidente.

Estávamos realmente em 2021!

Mariposa construiu um estacionamento, alinhando todos os veículos lado a lado. A idéia veio da sua essência masculina, que tinha horror em provocar acidentes, até com brinquedos. Gostava deles intactos, e quando possível, sem outra baba ou chiclete colado que não fosse o dele, por isso lustrava cada carrinho com paciência, enquanto sua essência feminina reclamava :

Eu adoro velocidade! Vamos fazer correr esses carrinhos todos!

Apenas quando estiverem todos limpos.

Mas como a essência masculina parecia maníaca, quando foram brincar de corrida (e talvez jogá-los para o alto, bater um no outro, quebrar alguma peça…) o sinal anunciou o recreio.

A professora, observando a cena na classe, chegou a essa conclusão : podem dizer o que for, disse a um colega que passava por lá, podem insistir nessa questão de gênero, mas vocês viram como a Mariposa brincou com os carrinhos ? Pareciam que eram suas bonecas! Um menino teria estropiado aqueles carrinhos todos.

Sua essência feminina, ao ouvir o comentário (Mariposa havia permanecido por alguns minutos escondida atrás da porta), arrancou a sua fivela de raiva, jogou a borboleta e ainda pisoteou-a no chão.

Já que é assim, vou ser um menino!

Era muito decidida.

Cortou seus cachos na adolescência.

Jogou rugby, a Mariposa. Puxou peso.

Tudo por conta da essência feminina, agredida na sua infância.

Não há dúvidas, concluíram os pais negando qualquer preconceito, afinal estavam em 2021! Mariposa é lésbica, acolheram o fato como uma dádiva, uma ocasião de mostrarem para o universo inteiro o quanto eram « abertos ».

As aspas foram eles mesmo que acrescentaram.

Mas Mariposa no final se apaixonou mesmo por um rapaz.

Um menino da sua classe na faculdade. Quando ele veio beijá-la em uma festa, quem se mostrou foi sua essência masculina. Era sensível. Sensível e romântica. Foi ela que acariciou seus cabelos, olhou-o nos olhos. Pela primeira vez, foi no beijo que deu nesse rapaz e na maneira como o amou durante uma parte da sua vida, que Mariposa se mostrou com sua alma inteira.

Quando voltou lá pra cima, levou um susto.

Desespero estava magro, quase esquelético.

Ele a reconheceu, apesar do tumultuo.

Andrógino! gritou, da sua voz fraca, quase surda.

A alma recém-chegada se aproximou.

Desespero esboçou um sorriso cúmplice, apontando para as almas prontas para embarcar : agora todas levavam consigo as duas essências. Você as tornou mais plenas, Andrógino! felicitou-o.

O ser humano, afinal, é um só.

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