Quem tem ouvidos para ouvir, ouça

Ana Castro
2 min readJun 3, 2020

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Somos movidos por afetos. Um abraço apertado. A música que alegra a alma. O beijo da pessoa amada. São esses momentos que nos dão potência de vida para agir no mundo. O filósofo Espinosa chamava isso de bom-encontro. Quando nos tornarmos mais próximos de nós mesmos e dos outros.

Há os afetos tristes. Ter que se encontrar com alguém desagradável. Ficar doente. Quando somos afetados por esses momentos nossa potência de agir diminui. Parece que nos afastamos de nós mesmos e dos outros. São, o que podemos chamar, de encontros ruins.

O fascismo e o racismo são sistemas que se baseiam no afeto do ódio. Na padronização do que é ser humano, do que é ser cidadão, do que é "normal". Há hierarquia. Há pessoas descartáveis e pessoas que se adequam. Há corpos matáveis e corpos que o Estado protege.

Que encontro é possível nesses afetos de ódio? Que encontro é possível em uma pandemia em que vemos irmãos sem conseguir respirar? Ou mortos com tiros nas costas?

Há um tempo eu escrevi um texto sobre a impossibilidade da empatia. Por mais que desejamos nos colocar no lugar do outro isso é impossível. Eu não posso sentir como o mundo te afeta. Porque eu não posso ser você.

Se a empatia não é possível, qual é o encontro possível? Eu vejo um caminho. O caminho do ouvir. É necessário uma disposição para alargar a nossa perspectiva e incluir outros pontos de vistas. E isso só é possível com a escuta ativa e com a imaginação.

Nós somos radicalmente diferentes. Não há um humano igual a outro. Mas podemos comunicar nossas diferenças uns aos outros. Não precisa de empatia, nem de simpatia. Precisa apenas ouvir. E respeitar. Não tolerar, porque a tolerância é um laço frágil demais. Especialmente nesse mundo liberal em que vivemos. A tolerância só existe até o momento do incômodo.

Mas ao ouvir podemos imaginar. Podemos usar nossa imaginação como mediadora dos nossos afetos com o mundo. E entender que aquele outro é um sujeito digno em si. Porque eu também sou. Assim a gente consegue imaginar um novo mundo em que cada um é potencializado pela força dos bons encontros, dos afetos que nos levam a agir com amor ao mundo e ao outro. Porque no mundo da minha imaginação, nesse mundo alargado em que cabem todos, o fascismo e o racismo não são possíveis.

"O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída” (Espinosa, Ética III).

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Ana Castro
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Written by Ana Castro

Mãe da Tarsila e do Ernesto. Jornalista. Ativista pelos Direitos Humanos. Documentarista. Escritora. Feminista.

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