Muito preta para ser branca, muito branca para ser preta

Ana Clara Barbosa
Revista Subjetiva
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4 min readApr 4, 2017
Ilustração: Rawdi

Durante a infância, sempre que saía com minha irmã, eu ouvia o seguinte tipo de comentário: “Nossa, mas elas são bem diferentes, né?” ou “Como uma nasceu tão branquinha, e a outra mais escura?”. E eu, com a minha cabecinha oca, logo tive uma certeza: eu era adotada. Era a única explicação possível. Minha irmã tinha a pele clara, meus pais tinham um tom diferente do meu. Não tinha como eu ser daquela família!

Para facilitar minha vida, meu nome é Ana Clara. Logo eu, a filha “moreninha”, “escurinha,” “que passou do ponto”. Eu não sei quantas vezes nos perguntaram porque eu me chamava assim, se eu não era branca. “Quem deveria chamar Ana Clara era a outra, que é branquela!”, nos diziam. E eu me sentia mal. Por ter esse nome esquisito, por me enxergar diferente da minha família, por ouvir sempre essa mesma piada boba.

Mais um fator importante para esses meus dilemas: eu cresci em uma colônia holandesa. Lá tinha um monte de gente branca. De olhos claros. Cabelos loiros. E eu era eu. “Mulata”, “parda”, sei lá. Usavam um montão de termo para me definir. Preta não. Preta é feio. Eu era só “moreninha”. Ainda assim, naquele contexto, era escura. E eu me sentia muito diferente por isso. Não era como eles. Passei onze anos da minha vida sabendo que eu não era igual a todo mundo ao meu redor. Foi só quando eu voltei para São Paulo e comecei a conviver com um montão de gente de várias origens, que eu percebi: eu nem sou tão preta assim.

Sempre que me perguntam como eu me defino, eu respondo que eu sou preta. Mas o fato é que eu nem sei se isso é verdade. Eu não tenho descendência direta com negros. Meus avós paternos são brancos, minha avô materna é índia. Deu no que deu. Na definição certinha, eu sou parda. Mas já li por aí que pardo é um termo usado só para desqualificar a nossa negritude. Quando eu digo que sou negra, no entanto, sempre vem gente me falando “mas você nem é tão escura assim”. E, de fato, não sou.

Mas se eu não sou negra, por que eu tive que ouvir de um menino, quando eu tinha 15 anos, que eu seria bonita, se fosse branca? Por que eu tive que aguentar olhares tortos de madames toda vez que eu entrava em um salão de beleza e aparecia lá, com meu cabelo cacheado e armado? Por que eu passei todas as férias da minha infância me enchendo de protetor solar, ou evitando ficar no sol, para não ficar ainda mais escura? Por que eu tive que me sentir feia durante boa parte da minha vida, já que só me deparava com meninas tão diferentes de mim na televisão e nas revistas? Ou por que eu sempre ouvi piadinhas sobre meu tom de pele? Por que tinha que escutar, sempre que fazia alguma coisa errada, que eu “tinha que ser preta”? Por que eu escutei tantas sugestões de que deveria alisar meu cabelo? Por que eu tive que me sentir sempre como segunda opção dos garotos, que sempre preferiam minhas amigas dentro do padrão? Por que eu tive que ouvir, durante toda minha infância, que me tornaria um mulherão quando fosse mais velha? Que teria um corpão? Por que eu fiquei esperando, durante anos, que eu tivesse coxa, peito e bunda, afinal, eu sou uma “mulata” e deveria ser padrão “globeleza”? Por que não acreditam quando eu falo que não sei sambar? E por que me chamam de “preta falsa” quando eu afirmo isso?

Eu tenho consciência que minha leitura na sociedade, quando convém, é de uma pessoa parda. Talvez branca. Eu sou poupada de muito preconceito por ter o tom de pele mais claro. Mas, ainda assim, passei a vida toda escutando racismo disfarçado de piada. Comentários que me magoaram profundamente e deixaram marcas em mim. Eu demorei um tempão para me aceitar e ser orgulho de ser assim. Eu pedi, inúmeras vezes, para ter nascido igual a minha irmã. E eu não tinha noção do quanto isso é ruim. Acho engraçado que pessoas me dizem o tempo todo que eu não sou preta assim. Isso não impediu de muita gente me olhar torto ou fazer piada. Novamente: minha leitura na sociedade só é de branca quando convém. Na hora de dizer que eu não posso me vitimizar.

Sou preta de pele clara, ou branca de pele escura. Sei lá. Pouco me importa. O que eu quero dizer é que eu ainda sinto que não pertenço a lugar nenhum, e as pessoas ficam cheias dos eufemismos na hora de tentar me definir. Ao mesmo tempo que eu ouço “você não é tão preta assim”, eu escuto comentário maldoso. E ao mesmo tempo que eu me sinto mal por ser do jeito que eu sou, sei que meu sofrimento não equivale a um terço de um negro da pele mais escura. Aqui no Brasil tem dessas coisas mesmo, nossos problemas raciais são complexos demais, e isso significa que a gente não pode colocar as pessoas em duas caixinhas separadas e defini-las apenas assim, porque existe muita coisa no meio. Mas como explicar isso, num país que segue negando a existência do racismo? Como conversar sobre colorismo, sobre a tentativa de embranquecimento da nossa população? Como legitimar o discurso das pessoas que, assim como eu, não conseguem se encaixar, sendo que existem oportunistas brancos tentando se apropriar do movimento negro, se “fantasiando” de pessoas negras para propagarem um discurso verdadeiro, mas que não pertence a eles? O debate sobre raças é complexo. E ele deveria ser tratado assim mesmo, sob um olhar criterioso, analítico e empático, é claro.

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Ana Clara Barbosa
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