Ocupar pra mudar e se perder por não pertencer.

Nada Clara
4 min readFeb 23, 2021

Hoje quero desenhar algumas linhas que unem presente e passado, em ambos vamos encontrar o fato: o trauma do não-pertencimento e a possibilidade dessa realidade se transformar em força de mudança.

Já sabemos que muitos dos espaços que frequentamos hoje não foram construídos pra gente. Me refiro a espaços simbólicos e afetivos mas também de produção científica, de arte, de conhecimento e tomadas de decisões. São relações e instituições que priorizam pessoas brancas (apesar da maioria delas não conseguirem admitir que também são racializadas, afinal pra elas só preto tem cor).

Esses espaços são adoecedores por si só, pois são neles que somos lembrados dia após dia que ali não é e nunca será nosso lugar. E depois de muito relutar, hoje eu concordo. E é por isso que mudar a ordem das coisas sempre foi o objetivo de quem quer aquilombar.

Nós sabemos, ou pelo menos imaginamos, o quão importante é ocupar esses lugares, ainda majoritariamente brancos. Assim como também sentimos na pele que para pessoas negras a possibilidade de constituir e manter uma FAMÍLIA, por exemplo, mesmo que seja a mais tradicional delas, é um sonho a muito tempo desafiador. Na verdade estou vindo aqui para apenas relembrar que ocupar espaços como estes não é sinônimo de pertencer. Leia novamente. Há desafio e potência na frase que acabei de delinear.

Segue o quadro:
O banzo nos lembra que essa terra não é nossa, por origem. Fomos sequestrados do nosso lar e do pertencimento por essência.

Absolutamente tudo mudou quando roubaram a terra, e tudo que compunha ela, da primeira pessoa negra. Nada mais foi como antes, nem a forma de se alimentar, de cultuar, de se relacionar, de ensinar ou aprender. Até a linguagem foi modificada e tudo que restou para as/os africanas/os agora em outra terra foi a convicção de que não poderiam deixar o branco saquear nossa memória ancestral. E aqui estamos nós, séculos depois, ainda resgatando o verdadeiro sentido das coisas apesar de sabermos que aqui não é nosso lugar. Que inclusive a forma como hoje as pessoas se relacionam não é a mesma ensinada por nossos ancestrais. Alguns de nós ainda fazemos esforço desmedido para não perder isso de vista. Mas sinto que a maioria se perdeu. São muitas as distrações...

Isso porque o não-pertencimento nos deixa baratinados, perdidos em meio às muitas ficções de si e do outro. Estamos sob às normas da branquitude, seus valores e domínio. Alforriados mas não livres! Pois ainda temos medo. Medo de não pertencer. Penso nisso como um buraco enorme em nossa existência. Algo que foi produzido e ainda estimulado em nós por quem nos sequestrou. Ao mesmo tempo criamos uma versão nossa completamente obcecada pelos sequestradores. Alguma Lélia ou algum Fanon falaram sobre isso, essa devoção à branquitude, essa vontade de ser deles ou parecer com eles, que mais se assemelha à uma paixão tóxica. É Síndrome de Estocolmo que chama? Vocês querem ligação traumática maior que milhares e milhares de pessoas sendo sequestradas, escravizadas e mortas por um algoz que cria mitos para te manter apaixonado por ele?

Pense um pouco nisso.

O quilombo é a resposta frente a distopia. É resgata daquilo que nunca deixou de ser nosso.
E as próximas frases que virão eu apenas fiz leves esboços, rascunhei linhas que me direcionam a um caminho que ainda não estou pronta para entender completamente. Eu apenas sinto. Pois já sei que não pertencer nos gera uma ânsia absurda por tudo aquilo que nos faz sentir vivos e relevantes. Só que é no quilombo onde somos humanizados. Não pertencer pode ser a única coisa que nos salvará, talvez. É questionando as bases que sustentam o conjunto de regras que nos impedem de ser e sentir. Criando um novo mundo de nós para nós, pois esse jamais terá o nome de lar.

Um discurso um tanto quanto anarquista.
Mas talvez seja essa a intenção mesmo (?)

E quando deixar de ser rascunho, eu volto.

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Nada Clara

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