Ana Flor Fernandes Rodrigues
6 min readFeb 19, 2019

Quem perseguiu as travestis durante a ditadura militar?

Texto escrito por Ana Flor Fernandes Rodrigues, graduanda em pedagogia pela UFPE. Instagram: @Tdetravesti

As violências contra as travestis foram tidas como um projeto de Estado que visava possibilitar uma higienização social como meio de garantir um controle e ordem sobre o que era apresentado enquanto “abjeto” e “marginalizado” por parte da sociedade brasileira e diversas instituições de poder. Travestis foram introduzidas a processos de violências e perseguição por parte, principalmente, da polícia e da imprensa. Neste texto, falaremos um pouco sobre quem perseguiu as travestis na ditadura militar com base na dissertaçãode mestrado do pesquisador Rafael Ocanha.

Coletando dados para escrever um artigo, encontrei uma dissertação escrita em 2004, do Rafael Ocanha, onde o pesquisador vai analisar alguns processos de violências nos quais as travestis foram compulsoriamente submetidas durante o período ditatorial. Principalmente durante os anos de 1979 há 1983. Com o título “ Amor, feijão, abaixo camburão : Imprensa, violência e trottoir em São Paulo (1979–1983)” Ocanha percorre um caminho minucioso para descrever o papel da imprensa frente o processo de criminalização da identidade travesti.

(Para iniciar essa conversa, destaco que o fato do texto ter sido escrito pelo pesquisador em 2004, as travestis serão tratadas nele constantemente no masculino, o que é um erro. Toda travesti deve ser tratada no feminino, é o que apontam os debates de identidade de gênero e o movimento transfeminista, hoje. Entretanto, isso não diminui a importância do trabalho realizado pelo o mesmo. Indico a leitura e análise do trabalho.)

Os processos de violências e tecnologias de constrangimentos nos quais as travestis foram inseridas tiveram como um dos principais idealizadores Wilson Richetti, delegado Seccional do centro de São Paulo. O delegado chefiou operações policias com caráter vexatórios e truculentos. Operações como os famosos “Rondões” (que seriam as viaturas de polícia, em qualquer hora do dia, caçando as travestis e ceifando o direito de ir e vir) evidenciavam o projeto transfóbico com o aval do Estado brasileiro para com as travesti. Em um trecho da dissertação, é possível encontrar que:

Foto de Juca Martins / Olhar Imagens

Os estereótipos de prostitutas e travestis construídos na mentalidade coletiva auxiliaram na construção de políticas segregacionistas, seja no âmbito legal ou no simbólico, ao colocar cada qual em um lugar pré-determinado. A Polícia, junto aos seus diversos departamentos e enquanto instituição responsável pela manutenção da ordem pública, assumiu a tarefa de regular, à sua maneira, o direito à rua. (OCANHA, 2004, p. 18).

O Jornal Lampião da Esquina, construído em sua maioria por homens gays como forma de resistência ao Estado opressor, teve um papel fundamental nas denúncias de transfobia. Na edição de n° 32, Rio de Janeiro, 1981, “Brasil campeão mundial de travestis” o jornal de imprensa alternativa vai alertar sobre os perigos constantes em que as travestis se encontravam nos anos de chumbo, ao escrever que era preciso ter “pernas de avestruz e olhos de linces”

[…] travesti deve ter duas qualidades primordiais: olhos de lince e pernas de avestruz. E mais ainda, permanecer em estado de vigília, pois os camburões transformaram a área onde atuam numa selva perigosa e traiçoeira. As barcas se encontram à espreita dessa caça, cujo destino pode ser, principalmente, o 3° distrito policial (Terceira Seccional — Centro), cuja direção se encontra ocupada pelo delegado José Wilson Richetti” (Lampião da Esquina, 1981).

Ou seja: as travestis estavam em constante controle e técnicas sofisticadas de disciplinamento na figura representada pelo o delegado Richetti. Principalmente no que tange o campo do simbólico, visto que a presença de uma travesti era mais que o suficiente para lembrar não só a sociedade, mas também para todas as outras travestis, que o projeto transfóbico estava em um estado emergente de ação: funcionando.

Além do delegado Richetti, outra figura que teve um papel importante e de caráter anti-ético com fomento do Estado, cientificamente falando, foi o Delegado Guido Fonseca. Guido Fonseca teve um papel de criar sobre a identidade travesti o sinônimo de periculosidade como é apontado neste paragrafo:

Em 1976, uma equipe especial chefiada pelo delegado Guido Fonseca é designada para fazer um estudo de criminologia sobre os travestis e a contravenção penal de vadiagem. Por meio de uma portaria do 4º Distrito Policial, Guido estava autorizado a abordar todos os travestis das proximidades do Hotel Hilton, área da Boca do Luxo, para verificar sua comprovação de renda. A revista Arquivos da Polícia Civil publicou o estudo em 1977, com circulação interna para todas as delegacias do Estado. Entre 14 de dezembro de 1976 e 21 de julho de 1977, 460 travestis foram sindicados para o estudo, sendo lavrados 62 flagrantes, contabilizando 13,5% do total. O resultado mostra que 398 travestis foram importunados com interrogatório, sem serem vadios, e obrigados a demonstrar comprovação de trabalho com mais exigências que o restante da população, já que a Portaria 390/1976 da Delegacia Seccional Centro estabelecia que travestis deveriam apresentar RG e Carteira de Trabalho acompanhada de xerocópia, a qual era encaminhada pela autoridade policial à delegacia seccional para arquivo destinado somente aos travestis. (OCANHA, 2004, p. 60/61).

Não obstante, o papel da imprensa foi de extrema importância para construir uma imagem perversa sobre as travestis. Afinal, nenhuma identidade é meramente dada. Todas as identidades passam por processos de construções sociais. No caso da identidade travesti, a desumanização teve um apoio massivo do Jornal Estado de S.Paulo, segundo mostra o pesquisador. Vejam na imagem a seguir:

Anúncio do Especial “Perigo! A Invasão dos Travestis”. (O Estado de S.Paulo, 25 mar. 1980, p. 35) retirado da dissertação de mestrado de Rafael Ocanha.

Texto do anúncio do Jornal de S.Paulo:

Eles se vestem de mulher, tomam conta de vários pontos espalhados pela cidade, são violentos e chegam a matar. No começo seu estranho comportamento não chegou a causar muitos problemas. Hoje as notícias sobre assaltos, brigas, escândalos e assassinatos já deixam a cidade com medo. Há poucos dias um antiquário foi jogado debaixo de um carro na República do Líbano e morreu na frente da mulher e dos filhos. O que a cidade, a Polícia e a Justiça têm a dizer sobre os Travestis? O ESTADO mostra o problema, em matéria especial sexta e sábado. (OESP, 25 mar. 1980, p.35)

O papel da imprensa foi de dialogar com a polícia e construir no imaginário social brasileiro um projeto de mundo transfóbico no qual as travestis estão inseridas desde então. A comunicação surge com um viés de discriminar, disciplinar, regular e garantir que as travestis sejam tidas enquanto “perigosas” demais para viver na sociedade brasileira. Logo, devem ser severamente punidas.

Percebam que o jornal vai construir edições especiais para falar especificamente das travestis na cidade de São Paulo. Ou seja: as instituições vão criar campos associados de poder e garantir, através de seus tentáculos, o funcionamento da engrenagem policial. Enquanto a imprensa alternativa, como o Lampião da Esquina criava estratégias de denuncias para com os crime cometidos contra as travestis, o Estado de S.Paulo, jornal de grande circulação, proporcionava um deleite para a família tradicional brasileira e suas práticas moralistas sobre outro.

Por fim, nota-se como todo esse projeto criou tecnologias de poder muito mais sofisticadas nas quais estão imersas as travestis, hoje. Os resquícios de violências nunca deixaram de existir e por isso permitem ao Brasil um grande título: o de pais record que, infelizmente, segue matando as travestis e garantido que o discurso emergente e ostensivo do período ditatorial siga cumprido o seu curso de crueldade.

A desumanização da identidade travesti perpassa um contexto biopolítico. A população travesti brasileira enfrentou na ditadura militar, e vem enfrentando hoje, com intensificação do governo bolsonarista, danos irreparáveis como bem pontuei no texto “O desafio de ser uma professora travesti frente o governo Bolsonaro”. Denunciar esses fatos é garantir, minimamente, um processo de reparação por parte da sociedade brasileira. Bem como garantir que essas histórias e seus períodos sejam documentados e nunca esquecidos. Nós precisamos, sempre, saber quem joga e quem não joga do nosso lado.

Ana Flor Fernandes Rodrigues

Graduanda no curso de pedagogia pela UFPE. Pesquisadora em temáticas como gênero, sexualidade e travestilidade na educação. Insta: @Tdetravesti