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Sentidos da pandemia

Fábio Ramos Barbosa Filho
8 min readApr 22, 2020

A pandemia tem feito um monte de gente pensar. Essa é, inclusive, uma forma de (tentar) dar conta de toda essa angústia.

Eu tenho pensado no seguinte: de que forma a linguística (mas também a história e as ciências sociais) tem (ou não) se ocupado dos sentidos da pandemia?

Ou seja: o que se diz a respeito da pandemia? Como circulam palavras e expressões em meio a tudo isso que tem acontecido?

A primeira coisa que me inquieta é de ordem teórica e isso me obriga a fazer um rodeio relativamente longo.

Em certas análises históricas (e sociológicas) que li (sobretudo no Twitter), me incomodou um pouco um certo “empirismo” ou “espontaneísmo” da leitura que impede que, em linhas gerais, se leve a sério o fato de que tudo o que se diz, se diz em uma língua.

Esse empirismo se deve, em grande parte, ao que a historiadora Régine Robin chamou de “descompasso conceitual” entre a linguística e história. Mas também, acrescento, entre a linguística e as ciências sociais.

Os analistas de discurso compartilham uma premissa fundamental: a língua é a base material do dizer. E todo indivíduo está, ainda que não saiba ou não queira, afetado pela materialidade e historicidade da língua que lhe constitui como falante.

Importante: dizer “base material” não é o mesmo que dizer “veículo” ou “suporte”, mas isso é assunto pra outra ocasião.

Isto é: pronunciamentos, debates, depoimentos, tweets, artigos em periódicos, enfim, textos orais ou escritos, não são “repositórios de informações” ou “suportes de um conteúdo”.

A hegemonia quase absoluta da análise de conteúdo como método qualitativo na história e nas ciências sociais tem impedido uma compreensão distinta dos processos de produção de sentido.

Para a análise de conteúdo, a língua é uma espécie de sujeira que devemos limpar para encontrar o sentido (ou a “mensagem”) do outro lado. Daí vem a famigerada metáfora do “sentido por trás do texto”.

Ideias como “o conteúdo do texto”, “a mensagem do texto” ou “a mensagem que o autor quis passar” ainda povoam a tomada de posição teórica — ainda que espontânea — de boa parte dos pesquisadores.

Isso é o que poderíamos chamar de “teoria espontânea da leitura”.

Essa teoria espontânea se baseia numa concepção da linguagem como um código funcional, i.e, um código que possui funções. A principal delas seria a de “comunicar”: x transmite uma “informação” a um y por meio de um “código” comum a ambos.

Resta a y “decodificar” a “mensagem” que x “quis” passar.

Além de pré-linguística, essa compreensão das relações de sentido é também pré-psicanalítica. Além de tomar a língua como código quase artificial (sem espaço para a polissemia e a metáfora), toma o falante como consciência pura, causa e origem de si.

Mas o próprio das línguas naturais é a metáfora e não a literalidade. A literalidade é o resultado de um processo histórico de saturação do sentido e não uma invariante originária (um ponto de partida absoluto).

E “metáfora”, para nós, não é “sentido figurado”. É a condição de instabilidade semântica da palavra. O conceito serve, basicamente, para decretar a impossibilidade de um sentido literal, originário e a posterior derivação “metafórica” da palavra.

Brincando com a fórmula lacaniana do “não há relação sexual”, poderíamos dizer, em análise de discurso, “não há comunicação”.

Desde a década de 60, muita gente tem alertado os pesquisadores das ciências humanas e sociais a respeito da necessidade um rompimento com essa compreensão empirista do processo de produção de sentido. Michel Pêcheux (1938–1983) talvez seja o nome mais importante dessa turma.

No texto “Ler o arquivo hoje” (1982), Pêcheux provoca os historiadores (mas também os filólogos e os demais interessados na lida com o arquivo), afirmando que “o fato da língua foi, e permanece, consideravelmente subestimado em todos os projetos de leituras de arquivo”.

Mas bem antes, desde Ferdinand de Saussure (1857–1913), sabemos que a língua não possui funções, mas que ela é uma estrutura que funciona. Ela possui uma ordem própria e é por isso que não podemos encadear as palavras de qualquer maneira no eixo sintático.

Saussure deseja compreender exatamente as regras desse funcionamento.

Mas o que isso tem a ver com tudo o que venho falando desde o início? Um exemplo que não tem nada a ver com a pandemia pode ajudar. Tomemos a seguinte frase:

“Homens e mulheres que gostam só de homens são felizes”

Essa frase produz o que alguns chamariam de “ambiguidade estrutural”. Uma certa confusão se produz por causa da posição do conectivo “e” entre “homens” e “mulheres”: isto é, por causa da sintaxe.

Para tentar compreender o porquê dessa “ambiguidade”, temos que desmontar a frase. Vejamos:

1) “Homens e [mulheres que gostam só de homens] são felizes”. (Parafraseando: “Homens (de qualquer orientação) e mulheres heterossexuais são felizes”.)
2) “[Homens e mulheres que gostam só de homens] são felizes”. (Parafraseando: “Homens homossexuais e mulheres heterossexuais são felizes”.)

Mas não poderíamos jamais depreender a seguinte paráfrase:

3) *Homens que gostam só de homens e mulheres são felizes.

Observem que esses efeitos possíveis (e impossíveis, como em 3) não advém de uma “ideia” ou de um “pensamento”, mas de um arranjo sintático tal que impede que certos efeitos de sentido sejam produzidos a partir desse enunciado.

Retomando, portanto, a premissa fundamental evocada anteriormente: a língua é a base material dos processos de produção de sentido.

É exatamente por isso que precisamos mudar de terreno, levar a materialidade da língua a sério e fazer outras perguntas aos fatos de linguagem que não sejam aquelas elencadas anteriormente: “o que o autor quis dizer?”, “Qual a mensagem do texto?”, etc.

Precisamos perguntar (dentre outras coisas), como funciona esse fato de linguagem, seja ele um texto oral ou escrito. Em “Discourse analysis” (1952), um texto clássico (e pouquíssimo lido), o linguista americano Zellig Harris nos dá um excelente ponto de partida.

Após esse longo preâmbulo, passo ao segundo incômodo (que está intimamente ligado ao primeiro).

Nas análises que li, o empirismo da leitura produz reflexões conclusivas do tipo: “o empresariado brasileiro é perverso porque quer acabar com a quarentena” ou “as manifestações contra o isolamento são antidemocráticas”.

Essas afirmações não são incorretas, mas “chapam” tanto o acontecimento quanto os textos que esse acontecimento produz (reportagens, comentários, cartazes em manifestações).

Essas leituras homogeneízam o texto. É como se eles fossem uma unidade monolítica. E não são. Num mesmo texto, vários sentidos estão não apenas presentes, mas em disputa. Trocando em miúdos, o texto é uma “unidade dividida”, ele é contraditório em sua unidade.

A sua configuração significante permite inúmeras questões não postas pelas leituras amparadas na ideia de “conteúdo”. Ou seja, essas leituras saturam como “a conclusão” uma das conclusões possíveis, considerando-a como a “mensagem do texto”.

Exemplifico: eu e Raíssa Gabriela Morés estamos observando de que maneira as palavras “Brasil” e “brasileiro” tem funcionado no discurso patronal e nas manifestações (online e nas ruas) pelo fim da quarentena.

Partimos de um vídeo (um texto oral) postado pelo proprietário de uma rede de fast food, mas o nosso corpus (material a ser analisado) é bem mais vasto.

Notamos a presença massiva de construções do tipo “O Brasil precisa [de] [x]”, “O Brasil quer [x]”, “O Brasil não pode parar” e “os brasileiros precisam voltar ao trabalho”.

Não adiantaria fazer uma contagem de palavras do tipo: “ele falou 200 vezes a palavra ‘Brasil’, logo, trata-se de um discurso patriótico” (existem trabalhos dessa natureza) porque cada vez que se diz “Brasil”, pode-se estar significando uma coisa distinta.

Mas também não adianta ignorar essa regularidade (e a profusão de ocorrências das palavras Brasil/brasileiro) porque elas são “sintomas” de uma relação de paráfrase (substituição, reescrita) que nos interessa.

É por isso que Régine Robin critica — com razão — a lexicometria pelas contagens de palavras e pela relação causal entre “x palavras, logo…”. Ela recusa a compreensão da palavra como “índice” de uma posição ou comportamento político. Em outros termos, é preciso submeter a palavra ao conjunto do texto, ou seja, à “sintaxe do texto”.

Voltemos ao exemplo: em certas posições, “os brasileiros” pode ser parafraseado por “nós”, por “empresários”, “empreendedores”. Em certas posições, essa substituição é impossível (como em “os brasileiros estão passando fome”). Ou seja, não podemos ignorar o funcionamento diferencial das paráfrases em um texto.

Isso quer dizer que a palavra “brasileiro”, a “mesma” palavra, no “mesmo” texto, aponta para sentidos diferentes: “empresários”, “patrões”, “trabalhadores”, “funcionários”. Ela tensiona o “nós” e o “eles”, jogando ao mesmo tempo com a homogeneidade e a heterogeneidade.

Já é meio besta afirmar que as palavras e expressões mudam de sentido quando são enunciadas por posições distintas. Pensem em “Ocupar vários espaços é o nosso plano de paz” sendo dito por Donald Trump ou por um integrante do MST.

Mas a “mesma” palavra muda de sentido em diferentes relações no texto (escrito ou oral) ainda que ele seja produzido pela mesma “pessoa”. E mais: à revelia da vontade dessa pessoa.
Num mesmo texto, a palavra “paz” pode significar “guerra”, “comunhão”, “harmonia” e mais um monte de coisa. Esse é um exemplo abstrato — e eu não gosto de exemplos abstratos — mas que pode ser fartamente encontrado em textos.

Freda Indursky, em “A construção metafórica do povo brasileiro” (https://bityli.com/na7mZ) nos dá um ótimo exemplo do funcionamento polissêmico da palavra “povo” no discurso militar.

Finalizo dizendo o seguinte: essa tomada de posição teórica nos ajuda a fraturar e compreender a língua como a base material dos processos de significação.

É por isso que um enunciado como “A mestiçagem é um problema”, pode ser enunciada pelo racismo e pelo antirracismo produzindo efeitos radicalmente distintos. Temos a mesma sequência de palavras, mas não o mesmo discurso.

Essas práticas e exercícios de leitura podem nos ajudar a dar visibilidade à historicidade desses dizeres pensando, por exemplo, na genealogia do “nós”/“eles” no discurso político, nas tensões em torno das nomeações do vírus (“vírus chinês”).

Ou nos sentidos de “Brasil” e “brasileiro” em diferentes conjunturas discursivas (nos periódicos que trabalharam o acontecimento da Gripe Espanhola, em contraponto à cobertura do Coronavírus na imprensa)

Essa tomada de posição convoca historiadores e linguistas a pensarem juntos. Régine Robin, ainda ela, chamou atenção para essa necessidade em 1976 (!) num texto bacana que se chama “Langage et idéologies” (https://bityli.com/Mae6S).

Mas também convoca a certo exercício público e político de dar visibilidade aos processos de produção de sentido em determinadas posições. Como falam os empresários? Como falam os políticos?

Spoiler: estou traduzindo (bem devagar, no tempo certo) com Phellipe Marcel textos inéditos de/sobre Zellig Harris, inclusive o “Discourse analysis”. O livro deve sair ano que vem.

Spoiler 2: estou organizando um livro a respeito dos sentidos da pandemia (“As palavras da pandemia”) que deverá — oxalá — sair no primeiro semestre de 2021. Ele vai ser publicado em e-book e estará disponível gratuitamente.

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