A fumaça da xícara de café

Dedo de prosa e poesia
5 min readJul 29, 2016

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A sensação é a de quando você abre seus olhos durante a manhã querendo dormir novamente e voltar ao seu sonho bom. Correr ao longo do tempo e do espaço. Apenas por desejo infantil de voltar ao que é íntimo.

Você olha, o café na xícara, a fumaça se transformando em nada. A pia cheia de louças, a sensação de dever a cumprir — mas, para quê, mesmo? A embriaguez da manhã te toma, e você toma o café. Os pensamentos mais rápidos que seu corpo. Seu corpo mais rápido que sua alma. Sua alma desaparecendo. Ela e a fumaça do café.

Café frio.

Mas, pra quê, mesmo?

A embriaguez da manhã te faz olhar para seu quarto. Seu pequeno espaço de poucos metros quadrados, uma pequena prisão. Sua conquista. “Parabéns, você conseguiu”. Sucesso. Um apartamento, xícaras de café, coisas esparramadas, louças para a pia. Sucesso.

Pensamentos mais rápidos que o corpo. O corpo cansado. Você mal começou.

Mais café.

As coisas em seu quarto estão no mesmo lugar usual e costumeiro — a bagunça da sua vida já recebe pó. “Tudo certo”, você responde a todos que entram no elevador, para o vizinho que nem sabe o nome. Ele pintou o cabelo? Ela colocou botox? Que horas são?

A lembrança do café agora só é o amargo na boca. Elevador descendo e seus pensamentos já cansaram seu corpo.

A sensação é de querer fugir, fugir para um espaço enedimensional — sem começo nem fim — onde tudo é possível. Não ser é possível. Não ser, mas não deixar de existir. A sua existência estaria ali, quieta, tranquila, o café sempre quente. Os pensamentos mais vagarosos que seu corpo. E seu corpo tão cheio de alma.

A sensação de querer calar o mundo, saber a língua dos anjos, estar e ser diferentes lugares e pessoas. Não, apenas estar lugares e pessoas. Ser, ser cansa, ser pensa, ser toma café frio. Ser se perde nos pensamentos rápidos. Ser é ser facilmente e rapidamente. Pra quê, mesmo?

A sensação é querer estar no mundo das possibilidades jamais pensadas dos sonhos… Quer estar onde jamais pensou. Tantos pensamentos, pra quê, mesmo? O mundo dos sonhos que são apenas sonhos, que não são metas. Metas e objetivos, o elevador abre, te empurrando para o mundo de metas e objetivos. Corpo cansado. Mil pensamentos.

A alma, fumaça.

A sensação é a de quando você só quer voltar e ver aquele rosto desconhecido que se tornou tão conhecido, tão íntimo, tão seu. Seu sonho infantil. Você quer sentir. Olhar. Você só quer brincar, amar, falar e viver nos sonhos porque o mundo lá fora explode e você só quer implodir. Você implode, você é café quente por dentro. Estômago e alma quentes. Implosão. E o mundo explode, metas e sonhos, sucesso. “Tudo certo”, você responde ao porteiro.

Caminha. A buzina alta, uma pessoa limpa a calçada. O cachorro recebe um mimo. O homem te olha criminoso. Seus pensamentos na velocidade da luz. Seu corpo conversa pelo suor. Pra quê, mesmo?

A sensação é a mesma de quando você se obriga a ficar na cama de olhos fechados tentando voltar. Mas não volta. Um sonho nunca é retornável. Não é reciclável porque há muitos sonhos que devem ser sonhados. A repetição é rotina, rotina em sonhos, uma fumaça que já virou nada. Estar não tem espaço para arrependimentos. Voltar? Para onde?

Obedecendo os pensamentos que borbulham, o corpo querendo permanecer na cama, você, sem sucesso, se reintegra e permanece deitado olhando para tudo aquilo que é seu, que lhe pertence. Suas coisas. Coisas que não imaginam como foi sua noite de sonhos. Suas coisas, suas conquistas espalhadas, prontas ao pó. Prontas para o destino que o ter recebe. Ter é pó.

As coisas, as coisas nem entenderiam. Não sentem aquele perfume que apareceu misteriosamente em qualquer lugar da noite, naquele mundo de olhos cerrados. Aquela sombra, aqueles diálogos… Tudo o que, da mesma forma intensa e repentina que surgiu, desapareceu. Se foi junto com a Lua e as estrelas, sumiu num abrir de olhos. Desmanchou-se com a luz do sol. Fumaça, alma, transgressão, perfume.

Então, aos poucos, o corpo se faz entender, perceber… Se movimenta. Você tenta relembrar qualquer coisa que lhe diga quem realmente é fora dos seus sonhos. Tenta recordar sensações reais, porém mágicas. Pensa em outras mil coisas. Metas e objetivos. Sucesso.

E o sol permanece brilhando lá fora.

A sensação é esta, a de ter que acordar. Levantar é a única solução. Enfrentar o sol e o calor dos brilhos reais pode não ser ruim. Quem sabe? A alma sente o cheiro do café, os cheiros brincam, dançam. Seu corpo cansado. Os pensamentos já fervem. A água quente bate em seus ombros pelados, o começar de novo, diário. E, então, você começa o abandono daquele rosto íntimo, o perfume repentino, os lugares tão acessíveis do sonho. É necessário. É preciso ser. Pra quê, mesmo?

As fotos continuam ali. Sorrisos. Copos de cerveja. Nascimentos. Casamentos. Encontros e desencontros. Paisagens bonitas. Partes de seu todo. Sua vida. Sua vida à mostra em um painel. Sua vida, você precisa correr para ganhar o mérito de ser vida. Todos precisam ver. “Tudo bem”, responde. “Sou campeã, estou viva. Eu sou”, confirma. O mundo te olha, seu corpo em meio à multidão. Corre.

O café na xícara, os cabelos molhados. Uma manhã de sol. E é nesse momento que a sensação de vida após a morte é transposta em seus olhos. Você se lembra de que um dia pisou naquele chão pulsante e quente onde pisa agora. Chão frio. Porcelanato. Mas, o mesmo coração. Você recorda de muitas coisas que estavam no chão e, agora, estão expostas em alguma prateleira qualquer.

Exposta. Você se lembra de que um dia teve medo das sombras do lado de dentro. Não mais.

A xícara de café, você paralisada. O corpo quente, a bebida fria. O medo agora é de sombras lá fora. Sombras de sucesso, metas, ter para ser, estar para existir. As sombras lá fora são cotidiano. Aqui dentro, a alma quente, a fumaça do café.

Pra quê, mesmo? Você balança a cabeça. Tem muita coisa para alcançar. A primeira delas, a maçaneta. “Tudo certo”, diz você para sua alma e a fumaça. “Volto mais tarde”. Assim, coloca a mão na maçaneta e decide entrar logo para o lado de fora. E balbucia com voz de sonhos tão vividos que ‘viver pode ser sonhado” e que o resto… Bem, o resto é um “pra quê, mesmo” em ciclos. Amanhã você descobre, quem sabe?

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