Leitura: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou

Dedo de prosa e poesia
11 min readJan 7, 2019

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Nunca estaremos preparados para ler um livro como “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”, de Maya Angelou, sem sair ‘atravessado’. Nunca, repito, porque a História não se apagará — mesmo que muita gente não consiga acreditar em fatos que não lhes agrade. Há muita coisa desagradável mesmo: o racismo, o machismo, a pobreza… Elementos histórico-sociais-culturais contra os quais existem lutas pelos direitos civis e por igualdade, guerra marcada na pele de nossas sociedades — assim como estiveram cravadas na vida da “senhora Angelou” (como ela gostava que fosse chamada).

Esse livro é uma das autobiografias da escritora, a primeira de sete, escrita pela autora de maneira muito literária. A história é linda, triste, impressionante, fluida e cheia de dor — , retratando a vida de uma menina Negra (ela usa essa maiúscula no livro), entre os anos 1930 e 1940.

Maya Angelou foi criada (até os 13 anos) no sul dos Estados Unidos pela avó paterna, Annie Henderson (Momma), em um pequeno povoado chamado Stamps, no Arkansas.

A obra (com alguns ‘spoilers’)

A primeira coisa que me chamou a atenção na leitura foi perceber como a escritora (que também foi condutora de bondes, dançarina, atriz, poeta, roteirista, cantora e prostituta) tem facilidade em rememorar as vivências mais antigas de sua infância, aqui iniciadas quando ela tinha entre três e quatro anos, período em que ela e o irmão, Bailey (então com cinco anos de idade), são enviados pelos pais, sem acompanhantes, de Long Beach, na Califórnia, para Stamps, no Arkansas, a fim de serem criados pela avó paterna, já que o casamento deles terminara.

“Anos depois, descobri que os Estados Unidos foram atravessados milhares de vezes por crianças Negras assustadas, viajando sozinhas até seus novos e prósperos pais em cidades do norte, ou de volta até avós em cidades do sul quando o norte urbano faltou com suas promessas urbanas”. (p. 19 e 20, editora Astral Cultural)

E é neste período que começa o relato sensível — e ao mesmo tempo duro, sem “floreios” — de Angelou em “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”.

“O que diferencia uma cidade sulista de outra, ou de uma cidade do povoado do norte, ou de uma cidade com prédios? A resposta deve ser a experiência compartilhada entre a maioria desconhecida (ela) e a minoria conhecida (você). Todas as perguntas não respondidas da infância precisam finalmente ser passadas para a cidade e respondidas lá. Heróis e bichos-papões, valores e desgostos são primeiro encontrados e rotulados nesse ambiente inicial. Em anos posteriores, eles mudam de face, lugar e talvez raça, tática, intensidade e objetivo, mas por baixo dessas máscaras penetráveis eles usam para sempre os rostos com capuz da infância” (p. 35)

Dos três aos sete anos, mais ou menos, os dois irmãos vivem ali em Stamps com a avó, cuja família foi dona de grande parte de terras da região e que possui o único mercado para Negros, o que revela a condição social dos Henderson dentro daquele contexto. Sobre isso, que é algo de que a escritora se recorda é de que Momma era a única mulher Negra para quem as pessoas de Stamps se dirigiam usando “senhora”. Ela era “a senhora Henderson”, o que na época causava orgulho na neta.

Dia após dia, a menina observa os caminhões que partem nas primeiras horas das manhãs carregados de Negros catadores de algodão, que se levantam antes mesmo que o sol, fazem suas orações e vão para o campo, retornando apenas no fim da tarde. Essa imagem é uma das mais marcantes durante os primeiros anos naquele pequeno povoado.

E é interessante frisar o “dom” de observação de Maya Angelou, que mostra ter tido, desde muito pequena, a capacidade de olhar, de perceber e atentar para sua realidade, para pessoas e para a conjuntura, questionando, por exemplo, sobre a existência marcada por “feridas abertas” de seu povo, escoriações como as encontradas nas mãos dos camponeses explorados, que não só conseguiam juntar dinheiro com a labuta nas fazendas de algodão como tampouco podiam pagar as compras no mercado de Momma.

Sobre Stamps, ela descreve ainda os cheiros ricos e diversos, a paisagem de terra, o mercado que tinha doces, cebolas, batatas, a passagem do tempo através do verde do campo. Aliás, o mercado funciona quase que como uma personagem da autobiografia, ele possui uma ‘vida’ na rotina do povoado, ponto de encontro dos trabalhadores, local onde moedinhas fazem barulho e conversas entre adultos muitas vezes são feitas com cochichos. É no mercado que a narradora entende muitas das sombras e das luzes da vida.

Até eu ter treze anos e ir embora do Arkansas de vez, o Mercado era meu lugar favorito. Sozinho e vazio durante a manhã, parecia um presente fechado dado por um estranho. Abrir as portas da frente era soltar a fita de um presente inesperado. A luz entrava suavemente (nós estávamos virados para o norte), se espalhando pelas prateleiras de cavalinhas, salmões, tabaco, linha (p.31).

Além disso, durante a primeira infância, a escritora coloca de maneira incisiva a presença firme e religiosa de Momma, que exige que os dois netos estejam sempre limpos, obedientes e com as lições de casa feitas. O tio Willie, um homem com deficiência (o lado esquerdo do corpo dele é totalmente paralisado), também aparece como figura importante na infância da escritora, inclusive sendo quem cobrava diariamente a tabuada de multiplicação dos sobrinhos.

Marguerite (o nome real de Maya, que foi um apelido dado pelo irmão, vindo de ‘My’, meu/minha, em inglês) e Bailey crescem em uma atmosfera da segregação dos Negros nos EUA, condição ainda pior no sul e especialmente cruel para as mulheres — e o que mudou em relação a isso, hein?

Logo nas primeiras páginas, talvez na primeira mesmo, fui totalmente transportada para Stamps. Ainda que minha realidade seja oposta da menina, a autora conseguiu — por meio de uma linguagem simples, porém formal — nos trazer para perto de si, revelar as memórias de sua infância.

É ali que ela e o irmão têm acesso à leitura diária, incentivada pela avó, e à rigidez na educação, também na figura do tio. Durante aqueles anos, os dois netos da senhora Henderson se mostram bons alunos na escola Negra, compartilham aventuras (de roubar picles no Mercado, sem que a avó visse).

Entre os três e os sete anos, Maya Angelou ainda viveu a negação da existência dos pais. Ela conta como foi que se convenceu naqueles anos de que a mãe estava morta, única explicação pelo abandono. Em entrevistas posteriores, a escritora conta mais sobre a relação complexa com a imagem paterna e materna, que voltaria a aparecer anos depois.

E foi quando ela tinha cerca de sete anos que o pai aparece “do nada”, quebrando toda essa narrativa interior construída por ela, gerando reações diversas. O pai chega — alto, bonito, em um carro — para buscá-los sem aviso prévio e levá-los para viver com a mãe, em St. Louis. Nessas semanas ao lado dele, que era porteiro de um grande e luxuoso hotel, a menina demonstra não ter criado nenhum laço afetivo com ele, diferentemente do que ocorre com a mãe, a empresária Vivian ‘Lady’ Baxter, por quem o irmão se encanta desde o primeiro minuto.

Maya, contudo, possui sentimentos contraditórios, que vão sendo trazidos à tona ao longo dos meses. Ela é a “Mamãe Querida” de Bailey.

“Minha mãe era linda”, repetiu por muitas vezes a escritora ao longo da vida. Inclusive, existe uma biografia escrita por Angelou que foca somente nesse relacionamento das duas, chamado “Mamãe & eu & Mamãe” (Editora Rosa dos Tempos).

Vivian era uma mulher que vivia de maneira muito diferente que a avó Momma: ela ria alto, não frequentava a igreja, não era muito rigorosa com os filhos, tinha uma vida mais “modernizada”, contraste que, claro, gera sentimentos diversos em crianças. Na época em que os dois foram morar com ela, Vivian Baxter vivia com um homem, o sr. Freeman, que acaba estuprando Maya na casa da família quando ela tinha apenas oito anos.

A passagem do estupro é perturbadora, como se pode imaginar. É um choque enorme (especialmente porque não conhecia nada sobre a história da escritora). E é dolorido demais em acompanhar o que acontece na cabeça de uma menina de oito anos ao ser violentada sexualmente pelo padrasto; é devastador. Ela passa horas da mais pura dor, o corpo tentando reagir, mas acaba precisando ser hospitalizada, e é quando consegue contar ao irmão (que tinha apenas nove anos) quem havia feito aquilo contra ela. O agressor foi julgado e preso — por apenas um dia e uma noite. Semanas depois, apareceu morto em um terreno baldio.

Quando ouve um policial contar à avó materna (sra. Baxter) o que ocorrera com o Sr. Freeman, a menina “descobre” que suas palavras tinham o poder de matar alguém. E é aí que ela decide que “nunca mais poderia falar”. E emudece por cinco anos de sua vida.

“Só meu hálito, carregando minhas palavras, podia envenenar as pessoas, e elas murchariam e morreriam como as lesmas pretas e gordas que só fingiam. Eu tinha que parar de falar. (…) Nas primeiras semanas, minha família aceitou meu comportamento como mal pós-estupro e pós-hospital. (Nem o termo e nem a experiência foram mencionados na casa da vovó [materna], onde Bailey e eu estávamos novamente.) Eles entendiam que eu podia falar com Bailey, mas mais ninguém”.

Depois do ocorrido e das semanas de silêncio, as duas crianças foram enviadas novamente aos cuidados de Momma, em Stamps, novamente sem muitas explicações. Na cabeça da menina, eles não “aguentavam mais” uma criança “mal humorada” como ela, alguém que “não falasse”.

O trauma da infância levou Maya Angelou ao total silêncio (exceto em relação ao irmão), o que a levou a buscar a literatura como refúgio. Ao longo dos cinco anos, ela leu todos os livros disponíveis na biblioteca para Negros de Stamps, decorando peças inteiras de Shakespeare, sonetos clássicos. Nessa época, ela conheceu a sra. Flowers, que a levou para sua casa durante três ou quatro anos, servindo cookies enquanto lia poemas para a menina.

No livro, ela lembra que, certo dia, a sra. Flowers disse que “ela não amava a poesia”, porque só poderia amar se recitasse os poemas. E foi assim que Maya voltou a falar, pois chegou em casa e começou a tentar recitar poemas no quintal da avó.

Muitas outras questões são abordadas no livro, inclusive o início da Segunda Guerra Mundial, o aparecimento de homens da Ku Klux Klan no povoado — e do terror que isso causava em todas as pessoas, óbvio. Com uma vida rica e uma memória impecável, Maya Angelou torna impossível a descrição completa do livro. Não poderia nunca colocar todas as histórias em uma só resenha, até porque espero que você se sinta impelido a ler o livro e, portanto, conhecer a história dessa mulher incrível por si.

Mas posso adiantar que ela nos conta sua história até os 16 anos nessa autobiografia incrível, quando ela vive um dos momentos mais desafiadores de sua vida.

Um dos momentos que mais me emocionou foi na passagem da formatura de Maya Angelou na oitava série. De verdade, fez-me arrepiar. Fiquei com o coração na mão. É vergonhoso pensar nos privilégios históricos que nós, brancos, possuímos. Triste e vergonhoso.

“Os alunos brancos teriam a chance de se tornar Galileus e Madames Curie e Edisons e Gauguins, e nossos garotos (as meninas nem estava na conta) tentariam ser Jesses Owens e Joes Louis. (…) Era horrível ser Negra e não ter controle sobre a minha vida. Era brutal ser jovem e já estar treinada para ficar sentada em silêncio ouvindo as acusações feitas contra a minha cor sem chance de defesa” (p. 210 e 211).

Outra passagem interessante e que maravilhosamente nos dá um soco no estômago e um tapa na cara é esse aqui:

“Ah, poetas Negros conhecidos e desconhecidos, com que frequência suas dores loteadas nos seguraram? Quem vai computar as noites solitárias amenizadas por suas canções, ou as panelas vazias ressignificadas pelas suas histórias?

Se fôssemos um povo dado a revelar segredos, nós poderíamos erguer monumentos e fazer sacrifícios às memórias dos nossos poetas, mas a escravidão nos curou dessa fraqueza. Pode ser que seja suficiente, no entanto, dizer que nós sobrevivemos na proporção exata da dedicação de nossos poetas (incluindo pregadores, músicos e cantores de blues)” (p. 216).

Houve diversos momentos durante a leitura em que eu exclamava em voz alta minha indignação pela completa vulnerabilidade dessa narradora, sentia-me ferida mesmo, exatamente porque ela “escreve na primeira pessoa do singular, mas retrata a primeira do plural”, conforme a própria escritora chegou a descrever seu trabalho. E com ‘nós’, ela queria dizer a raça Negra, claro.

Maya Angelou foi uma artista completa: cantava, dançava, escrevia

Por fim, trago aqui a referência de sra. Angelou para o título do livro. Ela se baseou no poema “Sympathy”, de Paul Laurence Dunbar. Em cima da metáfora do pássaro engaiolado, ela constrói essa narrativa linda e tocante, dessa nação de pássaros que “cantam na gaiola porque estão com medo”, de pássaros que “cantam sobre a liberdade” por detrás de “grades de raiva”.

Sympathy

By Paul Laurence Dunbar

I know what the caged bird feels, alas!

When the sun is bright on the upland slopes;

When the wind stirs soft through the springing grass,

And the river flows like a stream of glass;

When the first bird sings and the first bud opes,

And the faint perfume from its chalice steals —

I know what the caged bird feels!

I know why the caged bird beats his wing

Till its blood is red on the cruel bars;

For he must fly back to his perch and cling

When he fain would be on the bough a-swing;

And a pain still throbs in the old, old scars

And they pulse again with a keener sting —

I know why he beats his wing!

I know why the caged bird sings, ah me,

When his wing is bruised and his bosom sore, —

When he beats his bars and he would be free;

It is not a carol of joy or glee,

But a prayer that he sends from his heart’s deep core,

But a plea, that upward to Heaven he flings —

I know why the caged bird sings!

Paul Laurence. Dunbar, ““Sympathy.”” from The Complete Poems of Paul Laurence Dunbar. (New York: Dodd, Mead and Company, )

Source: Twentieth-Century American Poetry (2004)

Conheça a escritora

(FOTO: YORK COLLEGE/WIKIMEDIA COMMONS)

Maya Angelou é a voz de “seu povo”, como ela dizia. Ela tem raízes muito profundas com a cultura norte-americana, viveu a segregação, o racismo, o abuso psicológico e sexual como mulher Negra. Passou por tudo isso “e ainda se levantou” (Still I rise é seu poema mais famoso, compartilho abaixo). Essa mulher gigante se tornou um dos maiores nomes da literatura, teatro e ativismo negro dos Estados Unidos, trabalhando inclusive com Malcom X e Martin Luther King.

Aliás, quando terminei de ler o livro, que foi a minha primeira leitura de 2019, descobri o documentário sobre Maya Angelou na Netflix e fui correndo vê-lo. Assistam! Vocês também irão se apaixonar por ela, tenho certeza. Fica aqui o trailer só para dar um gostinho.

Escrever sobre essa artista complexa e completa exigiria muitas outras palavras. Como já escrevi bastante por hoje, sugiro a leitura desse artigo no El País e também este aqui, na Revista Galileu. A biografia dela também pode ser encontrada aqui, em inglês.

Maya Angelou morreu em 28 de maio de 2014, aos 86 anos. Antes, em 2011, ela recebeu a maior honraria civil do país, a Medalha Presidencial da Liberdade, entregue pelas mãos de Barack Obama, primeiro presidente negro dos EUA.

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