Central do Brasil (1998)

E hoje o filme selecionado foi uma das mais belas obras brasileiras, que rendeu à nossa querida Fernanda Montenegro uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz: Central do Brasil, lançado em 1998.

Ana Luisa Ramos
6 min readJul 15, 2020
Central do Brasil (1998)

A trama gira em torno de Dora, uma ex-professora que trabalha escrevendo cartas para pessoas analfabetas na Central do Brasil — decidindo sozinha, ao ler as cartas dos clientes se ela vai enviar, rasgar ou guardá-las na gaveta. No entanto, um dia ela conhece Josué, uma criança de nove anos de idade que veio até ela com sua mãe buscando enviar uma carta à seu pai. Após a morte da mãe em um acidente, Dora resolve ajudá-lo à encontrar seu pai.

É interessante perceber como logo no começo do filme, a sequência de créditos tem uma fonte que se assemelha à letra escrita nas carta, cursiva e com uma aparência realmente manual, já nos conectando um pouco com o ambiente.

A montagem e edição das cenas também é feita de maneira que consegue nos transportar para o ambiente da história, principalmente nas cenas que se passam na Central, que com o conjunto de sons e das imagens de pessoas indo e vindo de todos os lados, faz com que nos sintamos mais próximos e presentes nessa realidade, tendo uma fotografia bem realista.

O uso das cores no início da história também é interessante, já que a princípio vemos muito o uso de cores mais quente, e a partir do momento da morte de Ana, mãe de Josué, passamos a ver em seguida o uso maior de cores frias — principalmente em momentos em que ele não está com a Dora, já quando ele está com ela as cores começar a fazer uma transição novamente para cores quentes.

Essa variação de cores consegue nos impactar transmitindo o sentimento de tristeza e solidão do menino, principalmente na primeira noite que ele está sem a mãe — na qual além das cores temos uma trilha mais melancólica e sentimos um certo medo por ele, que está sozinho em um lugar claramente perigoso.

O peão que aparece logo no início também têm grande representatividade, que podemos perceber ao comparar o começo e o final da história.

No começo, o peão é o único laço que o menino tem com seu pai que ele nunca conheceu, sua ligação com sua família distante — por isso provavelmente ele o carrega para todo lado. No entanto, no final quando ele conhece seus irmãos, eles os ajudam a fazer um novo peão, e ali se constrói um novo laço.

Dora

Nos momentos de tensão, a movimentação das câmeras se difere do restante do filme. Por exemplo na cena em que Dora resgata Josué de um casal que ia utilizá-lo para tráfico, o modo de filmagem se assemelha à um estilo mais “câmera na mão”, o que nos transmite a ansiedade emoção da personagem por nos aproximar da experiência — já que nos é passada uma visão de como se estivéssemos realmente vivendo o momento, observando pelos olhos de alguém que está ali, e não apenas através de uma câmera.

A mixagem do som também se encaixa perfeitamente para criar o clima das cenas. No momento em que está havendo um tipo de festival religioso em Bom Jesus do Norte, após uma briga entre Dora e Josué ele acaba saindo correndo e se misturando na enorme multidão.

Desesperada tentando encontrá-lo em meio há tanta gente, Dora acaba ficando desorientada, e neste momento a mixagem dos sons consegue nos transmitir esse sentimento de desorientação e um leve desespero, sem saber o que fazer, com ela gritando por Josué ao mesmo tempo que várias outras vozes falaram junto com ela sobre diferentes coisas, até mesmo sobressaindo à sua voz.

Dora e Josué

A evolução dos personagens no decorrer da trama, principalmente a relação desenvolvida entre eles, é muito bem construída.

Quando paramos para analisar as personalidades dos protagonistas, podemos ver que são personagens que buscam ser muito independentes emocionalmente, e isso provavelmente está relacionado à sua solidão. Principalmente quando falamos de Dora.

No começo da obra, quando ainda não conhecemos bem a personagem, criamos uma leve “raiva” por ela por suas atitudes, por ser uma mulher rude e sem paciência, mas o que mais nos deixa indignados é o fato de ela interferir na vida de seus clientes tomando decisões por eles, ao invés de mandar as cartas como deveria, não entendemos porque ela faz aquilo e a princípio parece que ela faz isso apenas por ser sozinha, como se fosse egoísta.

Porém, com o passar da história e vamos descobrindo mais sobre seu passado conseguimos entender melhor o porque de ela ser uma pessoa que vive tanto na defensiva e de certa forma se intromete na vida alheia. Aos poucos ela conta à Josué detalhes de sua vida, a morte de sua mãe e a relação conturbada com seu pai.

Quando descobrimos estes detalhes, conseguimos imaginar que de certa forma,— embora não estivesse no direito dela — ela sempre interveio nas cartas buscando ajudar seus clientes e evitar que eles fossem atrás de algo que lhes faria mal, pegando por exemplo a própria mãe de Josué. Podemos imaginar que ela estava tentando proteger as pessoas de passar por coisas ruins tais quais ela passou.

Sendo assim, conseguimos entender um pouco de sua personalidade e o por que de ela ser tão agressiva e fechada, devido ao seu passado. Mas apesar de todo esse comportamento superficial, ela se demostra uma pessoa totalmente generosa e bondosa, resgatando o menino e o ajudando a encontrar sua família.

Ao mesmo tempo temos Josué, um menino de nove anos que se mostra com um comportamento semelhante ao de Dora, que tenta se mostrar autossuficiente, rude e bem defensivo. Dessa forma há desde o começo um certo embate entre os dois, por serem duas pessoas com um gênio forte, um passado difícil e sozinhos no mundo.

A cena após o festival em Bom Jesus, quando Dora acorda no colo do menino que acaricia seus cabelos representa o momento em que eles se aceitam e o fortalecem esse laço existente entre eles. No qual apesar de suas personalidades, eles resolvem aceitar suas dependências um com o outro.

Dessa forma a obra nos mostra uma evolução tanto na relação deles, como na evolução deles como pessoa. A atuação da belíssima Fernanda Montenegro é de encantar e emocionar a nós telespectadores, com uma interpretação realista e convincente, no entanto a atuação do menino também têm seu destaque — ainda mais quando levamos em conta sua idade.

É um filme que mostra a força e independência feminina, mostrada tanto na nossa personagem principal Dora, quanto sua amiga, e até mesmo na mãe de Josué que criou seu filho sozinho, lutando na cidade grande.

Ele também faz uma breve referência à um assunto muito sério que é o tráfico infantil e de órgãos. Não sabemos direito o que aconteceria ao menino se Dora não o houvesse resgatado, mas o longa faz um gatilho para este assunto que merece seu devido destaque, chamando nossa atenção.

E uma observação final a ser feita é com relação à música tocada nos créditos finais “Preciso me encontrar”, que também aparece na obra “Cidade de Deus”. É uma música bem representativa e que se encaixa perfeitamente com o desfecho da história, principalmente pelo trecho:

“rir pra não chorar”

Isso porque o último plano é quando vemos Dora escrevendo uma carta à Josué se despedindo, e a cena termina com ela enxugando suas lágrimas e rindo com uma certa felicidade e alegria.

A música se encaixa com o fim que a personagem toma, tendo de sair para procurar um novo lugar para viver, e se reencontrar para ser uma pessoa melhor — além de ter que deixar ir seu querido amigo, pensando no seu melhor.

É uma obra emocionante que merece seu devido reconhecimento. Ela está disponível no Telecine.

Nota: 9,6/10

--

--

Ana Luisa Ramos

Movie Lover. Future director and screenwriter. Writing analysis and reviews about movies.