30 minutos de doses diárias de um segredo

Ana Rocha
3 min readJul 9, 2022

--

Por Ana Rocha

A família se revoltou. Como assim, em plena pandemia, quando tantas empresas abriram mão de ver suas equipes em carne e osso, justo agora, a da mãe exigia que ela chegasse todos os dias 30 minutos antes?

Margareth ria sozinha sem demonstrar. Estampou no rosto a mais batida expressão de senhora de meia idade a quem só resta aceitar. Afinal, aos 50 e pouquinhos, uma recolocação no mercado de trabalho não é tarefa fácil.

As filhas — já moças — esbravejaram por duas ou três semanas; o marido fingiu solidariedade. E Margareth seguia rindo sozinha. Nada mudara no seu trabalho. As mudanças ocupavam outros departamentos de seu ser.

As saídas mais cedo que o habitual tinham um motivo muito nobre. O mais nobre dos últimos anos. O mais secreto também. Não importava o frio, a chuva, o que fosse. No caminho pro trabalho, quando recém ameaçava amanhecer, estacionava seu popular 1.0 em uma calma rua de um bairro distante de onde morava. O cenário lá fora ia mudando com o passar dos minutos apenas conforme caminhantes, corredores e cachorros surgiam para despertar seus músculos ou sistemas urinários e digestivos, respectivamente.

Na verdade, isso pouco importava, pois ela mal reparava. Tinha o foco total na tela do celular, que instalava cuidadosamente em uma superfície do carro, de forma que enquadrasse o melhor ângulo de seu rosto cuidadosa e delicadamente maquiado. Tivesse o marido a disposição de acordar também mais cedo para arrumar o café de Margareth, provavelmente viria a pensar que mudavam os costumes ligados à apresentação dos funcionários. Só que este risco ela não corria. Mas não demos assim tanto crédito à maquiagem.

Naqueles 30 minutos em que conversava com Alberto pelo celular, Margareth rejuvenescia. A cada encontro, despia uma camada de si, e conhecia outra dele. Mesmo que nunca tivessem tirado as roupas um do outro. Na verdade, só se conheciam daquela forma; naquele pequeno retângulo.

Se conheceram por engano, veja só. Ela foi escrever a um vendedor de móveis que deixou com ela um cartão após atendimento em loja. Mesmo com os olhos espremidos, não conseguiu ler todos os números corretamente. Escreveu para o contato errado.

Encontrou Alberto do outro lado, em um dia em que estava particularmente bem-humorado. Quando recebeu a mensagem e de pronto identificou o engano, se relembrou da juventude, quando paquerava por SMS uma adolescente que também escreveu pra ele por engano. Ao menos era o que ela dizia. Entrou na onda do erro e foi até onde pôde explicando de que tipo de madeira era o tal armário sobre o qual ela perguntava. Levou a brincadeira por pouco tempo, e quando não tinha mais criatividade para seguir mentindo, deu a real pra ela, cheio de educação e afeto nas palavras escolhidas.

Margareth foi arrebatada por aquele humor, leveza, bom trato. Há quanto anos não sentia aquilo?

Ampliou a imagem do homem, que tentava caber naquele pequeno círculo do aplicativo verde. Foi fotografado com um riso solto, o mesmo que ela imaginava nele quando começou a entrar na brincadeira da mensagem errada. Uma cabeleira grisalha bem bagunçada, olhos negros e pele cansada.

Foi incontrolável. Seguiu o papo. Ele veio junto. Passaram a se falar diariamente. Ela contou toda a verdade. Sobre seu casamento, que era feliz, sobre as filhas, trabalho, responsabilidades. Ele, também. Era mais livre do que ela neste sentido amoroso. Mas meio calejado. Não tinha dificuldade em começar histórias, mas o andamento delas não costumava ser fácil. Os finais, sempre trágicos. Decidiram seguir com a mesma leveza que fez os dois se conhecerem. Uma pitada de distração, uma poção de brincadeira, dois risos frouxos dos dois lados. Fizeram um pacto de encontro virtual de segunda a sexta, antes do trabalho, sem que mais ninguém soubesse.

Não se encontrariam pessoalmente por pelo menos um ano. As regras eram poucas, mas não podiam ser descumpridas: pontualidade, frequência, sigilo e local público. Nada de sacanagem por vídeo naquela idade. Regra imposta mais por ela do que por ele.

A três cidades dali, na ruazinha perto da igreja, quem saísse cedo, com os olhos atentos, veria em um sedã antigo um senhor de cabeleira branca hipnotizado em uma tela de celular, com uma senhora muito bem maquiada rindo solto pra ele do outro lado.

#desafio3julho2022 — Texto escrito para o Clube da Escrita de Ana Holanda

--

--