Era um cemitério muito antigo, aquele. Disse um senhor que acompanhava o viúvo do velório em que estávamos. Meu marido fez um dos seus primeiros trabalhos fotográficos em um cemitério histórico. No último ano, vem reproduzindo virtualmente antigas esculturas. Assim que achou uma brecha em meio às condolências foi circular entre aqueles corredores de tantas memórias.
Jazigos compartilhados entre finados donos de sobrenomes pomposos. Outros, túmulos individuais. Nomes corriqueiros também. Datas do início e do fim, acompanhadas de estrelas e cruzes. Fotos ovaladas. Apagadas, esbranquiçadas. Preservam vagos rastros de olhares que já viram esta terra. Que pararam de enxergar, que fecharam pela última vez. Olhos que a terra há de ter comido. Há sim alguns túmulos muito bem cuidados, preservados com flores que pareciam ter sido colocadas ali há poucos dias, ainda que fossem de plástico. Mas eram a minoria. Quase todos, abandonados à mercê do tempo.
Ouvi dizer que já há pouco lugar para novos mortos ali. Acho que vem acontecendo bastante também em outros cemitérios. Parece que esses mais novos, em formato de gaveta, vêm otimizando o pouco espaço que as cidades reservam para abrigar a população morta.
Será esta a eternidade? Morrer pra ficar empilhado? Passar a ser uma plaquinha na frente de uma gaveta? Como em um armário mórbido bem organizado?
Acho uma vingança inconsciente contra quem fica a escolha por ser enterrado, manter o que resta de matéria sob a terra, ou engavetado. Ficar aqui quando não se está mais. Ocupando um espaço que vai seguir lá, esperando visitas tristes. Elas começam intensas, mas se distanciam conforme a dor e a saudade se acomodam, até que param de acontecer.
Depois que o corpo se esvai sob a terra, ficam os ossos, otimistas de serem encontrados em alguma escavação futura, após milênios e milênios. Será este o propósito de se enterrar seres humanos? Deixar rastros inegáveis de nossa vivência pro futuro? Este sim poderia ser um bom argumento.
Sempre preferi a ideia da cremação. Tem gente que não pode nem pensar. Pavor daquela chama consumindo cada pedacinho. É apavorante mesmo. Pensar no corpo — nosso único bem inalienável — terminar assim.
Mas digo aos meus: que me cremem, que me joguem em formato de cinzas em um belo cenário com o pôr do sol mais lindo que encontrarem. Seja alaranjado ou tão discreto quanto um céu acinzentado pode ser, o anoitecer chega sempre. Ele vem todo dia. Pode ser admirado de onde estivermos. Quem se lembrar de mim com carinho, que nesta hora aprecie o céu. Pense em um momento que viveu comigo.
Quando todos estes partirem também, e não houver mais na Terra olhos admirando o céu enquanto seus donos anoitecem junto a ele lembrando de mim, minha eternidade terá chegado ao fim.
Texto de Ana Rocha, para o Clube da Escrita, de Ana Holanda. Desafio 1 de setembro de 2022.