ei, fevereiro, volte aqui!

ana quer falar
4 min readFeb 5, 2024

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província de Curitiba, 2+2 de fevereiro de 2024 (uma data cheia de pares, mas escrevo este texto ímpar só)

a primeira semana do mês mais curto do ano (que, desta vez, carrega uma surpresinha: finalmente os nascidos em 29 de fevereiro poderão assoprar as velas) passou voando. ou, melhor, correndo. e eu indo atrás dela, dando tudo de mim, buscando alcançar esses dias que estão acontecendo quase que como uma produção fordista de dias de sol e chuva, granizo e neblina. se faz um dia e, em seguida, já se vai ao próximo. volte aqui, fevereiro, seu safado.

vejo muitas pessoas na internet desejando que os dias se passem rapidamente, que janeiro foi um mês muito longo, que o dinheiro não se estica o tanto que os dias de um mês (isso é, quase sempre, verdade). mas acho que, pela primeira vez, não quero que o ano acabe. quando estava no ensino médio, sentia uma ansiedade imensa de descobrir o que vinha depois, um desejo forte de conhecer a vida universitária e o que ela me traria, quais portas seriam escancaradas, quais seriam abertas lentamente, quais eu teria medo de olhar pela fresta. antes disso, eu sentia a mesma vontade de ir para o ensino médio, especialmente porque isso significava partir do interior para a cidade grande e tudo que ela poderia ser capaz de oferecer em potencial de viver, em vida. hoje, no entanto, eu sinto que os dias estão escorrendo pelos vãos dos meus dedos, que cada dia é um dia a menos dessa vida que escolhi pra mim. vejo isso como um luto precoce do adeus à minha primeira escolha. a escolha que marcou o início da minha vida adulta na juventude: minha faculdade.

ao escolher Letras eu optei por muitas outras coisas, algumas já sabidas que estariam por vir, outras que eu descobri diante do todo complexo universitário. mas, sinceramente, as que foram descobertas são as mais marcantes e interessantes. hoje, um domingo à noite, ouvindo Gilberto Gil abrilhantar o mundo da internet com sua apresentação de Tempo Rei gravado para todo sempre no Youtube, estou me preparando para mais uma semana. dessa vez, tenho feito muitas coisas diferentes, algumas totalmente inéditas e deliciosas, outras que não tenho gostado tanto. amanhã será a primeira segunda-feira que receberei crianças na escola, em seu primeiro de aula. elas não sabem que também meu primeiro dia de aula, de certo modo. estar do outro lado da dinâmica escolar tem sido uma aventura absolutamente incrível pra mim. depois disso, pretendo passar a tarde trabalhando com os livros e os textos que tenho atendido como freelancer e, pasmem, indo à academia treinar musculação.

praticar um esporte nunca foi um objetivo pra mim, até então meus grandes prazeres sempre foram ler e escrever, ouvir músicas, comer, ir ao teatro e a shows, viajar e sonhar. de um tempo pra cá, graças à boa influência de um amigo que conheci no meu primeiro emprego (nem parece que faz tanto tempo, mas me indigna muito que, sim, faz) tenho tido a corrida como um esporte meu também. como um item a mais naquela lista de coisas que cruzou a esquina do texto logo ali acima. e, ainda, no último ano, também devido à influência boa de outro amigo desse mesmo emprego, tenho gostado subir morros, fazer trilhas, entrar na mata fechada em busca dos sons dos passarinhos (e não saber quais são, ainda me falta muito estudo e empirismo). esses dois amigos são D. e E., pessoas-catapultas. isto é, o tipo de pessoa que te impulsiona pra sempre em frente e além. entre o conflito em dizer adeus a essa fase universitária e sem-chance-de-dar-a-volta e encontrar minha eu adolescente novamente, praticar esportes, fazer atividades físicas tem sido um descanso definitivo para a reunião de condomínio caótica que toma conta da minha mente.

tantas reflexões, como essas, foram desveladas enquanto eu assistia a uma apresentação de jazz na última madrugada. fui arrebatada. estava entre amigos e muitos olhares de espanto foram trocados enquanto ouvíamos as manobras mais insanas do movimento do ar saindo dos pulmões da artista, atravessando o pequeno espaço no segundo andar de um complexo de bares na Martim Afonso. naquele lugar haviam janelas largas que ocupavam quase todo o espaço das paredes, dando pra uma vista espetacular da noite na cidade. do outro lado da rua se via a Praça 29 de março (ou de maio? nunca lembro ao certo), muitas pessoas se despojavam na grama, nas escadas, nos bancos daquela praça e aproveitavam a brisa brevemente fresca do cair da madrugada abafado de um verão no Sul em meio à ebulição global. esse conjunto completo diante dos meus olhos, enquanto eu estava imóvel, ao lado de duas amigas J. e E. conversando me raptou da realidade por um instante. atrás de mim eu sabia haver uma parede com uma pintura inspiradora, lembrando muito os aspectos estéticos dos anos 1970; ao meu lado esquerdo eu sabia também haver uma passadeira para o bar. porém, a minha frente havia Tudo. eu via Tudo. eu estava cara a cara com o Depois, que comentei antes.

eu via o escuro da noite se estendendo muito além de mim, além de nós que estávamos ali dividindo um momento mágico de culto ao jazz e eu sabia disso. S. e L., meus amigos, conversavam um pouco mais adiante de nós três, falavam sobre a visão privilegiada que se tinha dali de onde estavam. nos juntamos a eles. observar a anatomia do sopro. sábado à noite e eu observava a anatomia do sopro encantada.

há dias venho repetindo, como um mantra, a frase que vi em uma exposição quando estive em São Paulo: “os encantos vão reger a nossa vida”. não lembro a autoria. também há dias tenho quisto fazer um texto que contasse sobre as aventuras de janeiro, um mês marcado por experiências inesquecíveis, dentro e fora de casa, dentro e fora de mim. um texto que revelasse meu encanto pela vida vivida. porém, sinto que uma noite embalada por flautas inacreditáveis foi capaz de revelar, uma vez mais, o mundo todo a minha espera.

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ana quer falar

apenas um poema em construção ou uma narrativa desconexa