Teste final
Deborah Gelly não tinha exatamente escolhido Nova Iorque como lar, era um arranjo para salvar sua vida. Isso a deixava menos contrariada em entrar na porta escondida no final da rua fedida. Touro a havia deixado na entrada do tal beco:
- Prefiro esperar aqui e fumar um cigarro, madame.
- Non me chiamata di madame. Eu sou como você, doce Touro, perdida nesse mundo.
A italiana estava acostumada a se esgueirar em lugares proibidos, esse não era o problema. Tantas reuniões na calada da noite, encontros clandestinos. De toda a situação, o que mais a incomodava era ter que buscar seu “marido” ali. Tinha rezado para nunca se casar ou ter que fazer o que já tinha visto tantas mulheres fazerem: buscar seus homens na esbórnia. Agora era sua vez. E ele nem era realmente seu homem.
Era tudo um belíssimo arranjo entre suas famílias. A família dela não queria sua filha morta pelo maldito Mussolini e Mama não queria que o mundo soubesse que seu precioso filho não gostava de se deitar com mulheres.
Aparentemente ser feminista e dona de si, além de distribuir La Riscossa Italiana entre os descontentes com o fascismo era passível de morte e eles estavam lhe fazendo um grande favor. Ela nem sempre se sentia abençoada com a situação.
Ao fazer a batida secreta a porta se abriu, deixando sair um cheiro forte de cravo e tabaco. Passou pelas cortinas pesadas e vermelhas que tentavam esconder o ambiente decadente, uma voz em falsete a atingiu e ao dar mais alguns passos viu uma moça cantando ao som do piano. Ela dançava e fazia seu vestido de franja balançar para deleite dos presentes, quase não se notava a maquiagem pesada para esconder a barba recém feita.
Seus olhos passearam pela sala, mas não via seu marito.
- Cazzo!
Falou consigo mesma ao notar que teria que entrar mais e talvez ir até um dos quartos, quanto sentiu uma mão fina em seus ombros.
- Senhora, que está fazendo aqui?
- Philip! Onde está Vitorino?
O jovem magro apontou para os quartos e suspirou. Deborah não sabia por quê o rapaz ainda seguia Vito para todo o lado se isso o machucava, mas não estava na condição de julgar ninguém. E assim como não queria que as pessoas dessem opinião em sua decisões, não faria isso com os outros. Preferiu esperar com Philip, fazer companhia em sua vigília que mais parecia uma tortura.
Depois de mais 3 músicas o filhinho da Mama saiu do corredor estreito com dois rapazes, um em cada braço. Estava feliz, rindo e sentando em uma das mesas quando viu sua esposa com um olhar ansioso. Ela se dirigiu ao encontro de Vitorino com passos rápidos:
- Mama solicitou nostra presença.
O cheiro de madeira e cera da sala de Mama levava Vitorino à infância. A primeira vez que um móvel de mogno entrava na casa recém adquirida e a promessa de uma vida luxuosa, muito diferente do que a que tinham no antigo kitnet. Essa época sempre foi uma névoa na memória de Vito, primeiro eram pobres, depois não eram mais. Lembrava de roupas pretas e choro forçado, lembrava do cheiro de madeira e cera.
Mama estava sentada em sua poltrona de couro, iluminada por um abajur longo e antigo. A luz amarelada e as memórias faziam o estômago de Vitorino embrulhar. Aquela mulher que encontraria não era mais a sua mãe, mas a que todos chamavam de Mama. A última vez que lembrava de ter uma mãe foi quando sua irmã e pai foram embora, a última vez que a viu chorar. Um resquício de fragilidade há muito esquecida, que não tinha espaço na vida da chefe da famiglia.
- Por que demorou tanto, meu filho?
Vito engoliu seco e respirou fundo antes de falar:
- Estava cuidando de alguns negócios…
O olhar severo de desapontamento parecia congelar o filho, que era revertido a menino diante da presença opressora. Ela não precisava dizer que sabia que ele mentia, ninguém estava iludido naquela sala.
- Quando você vai crescer, Vitorino?
O tom de voz apertava seu peito e trazia a tona todo o fracasso que Vito já tinha passado na vida. Era a sensação que tinha quando estava com Mama, de eterno perdedor.
- Você quer mesmo ser digno de assumir o meu lugar nos negócios da família? Quer me mostrar que não é mais um menino assustado?
Ele podia argumentar que não era mais um menino e que não estava assustado, mas isso seria mentira.
- Eu sou digno, Mama. Me dê a missão que farei sem erros!
A mulher encostou as pontas dos dedos, fechou os olhos e suspirou.
- Eu te chamei aqui para isso, mas agora não sei se posso confiar no seu julgamento.
- Claro que pode confiar em mim. Farei o meu melhor.
Com um leve sorriso, ela começou a falar.
- É uma missão simples: entrar e sair.
Os amigos olhavam para Vito em tom de descrença. Queriam pensar que eram uma gangue, que teriam cacife para bancar qualquer problema, mas nem eles acreditavam nisso.
Na grande sala com sofás de couro e todo luxo que o dinheiro do submundo podia comprar estavam sentados e bebendo. Apenas Touro se mantinha de pé. O capanga sabia muito bem que Vitorino era seu patrão e que não existe equidade em relações desse tipo, por mais que todos insistissem que sim. Ele não se esquecia do fato de estar recebendo para estar ali. Enquanto a sua relação fosse financeira, que amizade real ele podia esperar?
Deborah e Philip estavam bebendo desde mais cedo, esperando para saber sobre o que era o chamado repentino de Mama. Ambos tinham medo da senhora que estava no topo da organização criminosa, por isso preferiam manter a distância.
A figura destoante do grupo era uma belíssima jovem, com seu vestido fino de seda, que fazia um coquetel para si. Shirley tinha a pele macia e mãos delicadas de quem nunca tinha trabalhado na vida, mas gostava de estar entre seus amigos do submundo. As festas da alta sociedade eram maçantes perto das aventuras que vivia com eles. Shi, como gostava de ser chamada, tinha um gosto pelo proibido e inquietação em seu coração.
- Ai, Vito! Só quem não te conhece poderia acreditar que será uma missão simples — disse Shi com um tom de deboche.
- Vamos criar uma distração enquanto Phillip entra sorrateiramente e pega a mala. Nossa função é não deixar ninguém perceber. Mamão com açúcar.
- E onde é esse lugar? — perguntou Deborah.
- No porto.
Todos tremeram, não era um lugar para os fracos de coração. Apenas Touro permaneceu impassível enquanto Philip sorria.
- Já estive lá algumas vezes… — notando os olhares curiosos, mudou de tom, tentando se explicar — para alguns trabalhos.
O jeito doce do jovem enganava a todos e por vezes esqueciam que ele era um assassino de aluguel. Era apenas nesses momentos de deslize que se lembravam de quem era o mais perigoso da gangue.
- E aí, todos comigo? Vamos fazer isso ou não? — questionou Vito antes que ele mesmo perdesse a coragem.
- O que estamos esperando? — disse Touro se arrumando — o trabalho não vai se fazer sozinho.
Ninguém acreditou quando Philip chegou com a grande bolsa de couro na mão, sem problemas. O silêncio no carro de Shi, durante o trajeto que os levava até o local da entrega denunciava a tensão no ar. Até tudo ter terminado queriam agir com o maior profissionalismo.
Ao chegar no destino, uma garagem escura em uma vizinhança perigosa, Vito suava frio. Shi tocou seu ombro e o acalmou, uma amizade de tantos anos possibilitava uma comunicação não verbal muito eficiente. Ela fez sua mágica e encheu o amigo de confiança. Touro e Deborah conferiram suas armas e se colocaram ao lado de Vitorino para entrarem no local suspeito.
A pouca luz fazia a única lâmpada se destacar no meio da escuridão e os três se dirigiram para a mesa que cabia quase perfeitamente no limite do que se permitia ver. Outros três homens estavam esperando do outro lado, um sentado fumando um charuto e os outros dois de pé com os braços cruzados em frente ao corpo.
- Mama mandou vocês?
- Qual é o problema? Estamos aqui. Vamos fazer logo a entrega! — Vito disse com a voz firme.
Os homens se olharam e riram. Quando Vito bateu com a bolsa na mesa, assustando a todos.
- Não vim aqui ser insultado! Mama saberá sobre isso.
- Não. Vamos parar de brincadeiras.
As expressões eram sérias até que o homem com o charuto abriu o fecho e fechou a cara.
- Vocês nos roubaram!
- O quê? Não roubamos nada!
Não tiveram muito espaço para negociações quando puxaram as armas dos coldres, forçando Touro e Deborah a também sacarem seus revolveres.
- Não vamos nos precipitar aqui — disse Vito levantando as mãos.
- Vocês são idiotas! Isso é dinheiro falso! Sabemos exatamente quanto deveria ter aqui!
- Eu posso resolver esse problema, ninguém precisa se machucar.
Os homens de pé permaneciam com as armas em punho, apontando para Vito, quando um deles caiu no chão. Quase não se conseguia ver o vulto de Philip com uma faca ensanguentada nas mãos.
A surpresa foi o suficiente para que Touro e Deborah atirassem nos que sobraram. Estavam todos os homens no chão e muito sangue espalhado. Shi correu para ver o que tinha acontecido e soltou um grito fino ao notar que estavam ferrados mais que o normal.
- O quê caralho aconteceu? — gritou Vitorino olhando diretamente para o jovem magro que permanecia nas sombras.
- Eu, eu… Eu peguei o dinheiro.
Agora todos olhavam para Philip sem acreditar.
- Era muito dinheiro, eu poderia ser alguém! Mais que apenas um … Sabe. Ser alguém digno! — Philip tinha o mesmo olhar de cachorrinho perdido que fitava sua obsessão.
- Gente, quem entre nós poderia julgar Philip? — Deborah foi a voz da razão.
- É, mas agora todos nós estamos ferrados com a Mama! Além dessa brincadeira ter acabado com os sonhos do Vito! — Shi apontava para seu amigo de infância enquanto ele se sentava na única cadeira disponível.
- É fácil para você dizer, princesinha da Quinta Avenida! Nunca precisou se sujeitar as mesmas coisas que o resto dos mortais. Não é por que você sai pra brincar comigo e com uma garçonete nas noites, que você não estará bem segura na cobertura dos seus pais quando a merda bater no ventilador!
- Touro… — Shi não podia acreditar que ele achava que ela estava apenas brincado com ele.
- Não, pessoal… A culpa é minha — disse Vito em voz baixa — eu trouxe todo mundo aqui, vou resolver esse problema. Vamos até um telefone.
O grupo olhou para baixo, sabiam bem o que aquilo significava para Vitorino.
- Eu sabia que vocês iam falhar, meu filho. Agora vem pra casa e tudo vai ficar melhor amanhã. Mandarei uma equipe limpar sua bagunça.
- Sabia que íamos falhar?
- Claro! Esses capangas não servem para você, mas insistem em andar juntos o tempo todo. Eu tinha que arranjar um bom motivo para me livrar deles.
- Se livrar?
- Claro que a Shi é sempre bem-vinda em casa. E sua esposa, bem… Podemos sempre fazer de você viúvo…
- Mãe! Você está se ouvindo?
- Vitorino! Não me interrompa!
Vito se calou.
- Esse é o verdadeiro teste. Para liderar nossa família você precisa aprender a se livrar daquilo que não lhe serve mais. Entendeu? Uma entrega pode dar errado, mas dar a ordem não. Ser líder não é fácil. E você não precisa fazer nada, apenas venha para casa que logo seus “amigos” não serão mais um problema.
- Ok, Mama. Logo irei para casa.
Os companheiros olharam para Vito, quando ele entrava pela porta.
- E aí, o que ela disse? — perguntou Shi tomando a iniciativa.
- Não importa o que ela falou.
- Claro que importa, Vito! Precisamos entender em que pé estamos! — Deborah odiava quando seu marito se fazia de bobo.
- Ela disse que eu deveria ir para casa e a Shi para a dela, que em breve os capangas vão vir aqui “resolver” esse problema.
A expressão séria e gesto com as mãos não deixaram dúvidas sobre que problemas eram esses.
- Maldita!
Deborah não acreditava que aquilo era possível: sua sogra a mandaria matar assim, sem hesitar?
- E o que você vai fazer? — Philip perguntava sem coragem de receber uma resposta honesta.
Vitorino olhou para todos naquela sala e se deu conta de que sua verdadeira família estava ali.
- Eu não vou deixar, precisamos sair daqui agora. Fugir! Vamos pegar tudo que pudermos.
Enquanto Vito olhava o que poderia ser útil para que levassem em sua fuga, sentiu a mão pesada de Touro em seu ombro.
- Um minuto… Você vai mesmo deixar sua vida de conforto para salvar a nossa?
- Sim — disse com uma firmeza que poucas vezes tivera na vida.
- Eu nunca abandono os meus amigos, Vitorino. Não me esquecerei desse momento.
Os dois trocaram um olhar profundo e demorado, no submundo aquele era um pacto que não seria quebrado e sabiam disso.
Shi e Touro foram para o carro levando a bolsa de dinheiro falso, ainda sem certeza se o usariam.
- Tá na hora de ir pra casa, princesa.
- Eu não vou.
- Vai sim! Eu não vou te colocar em perigo. Você ouviu, Mama não quer problema com seus pais. Volta pra casa.
- Touro, você não vai me dizer o que fazer, ninguém vai. Eu não sou esse tipo de mulher. Eu vou com vocês porque quero, nem que seja para servir de moeda de troca ou algum tipo de barganha. Não podemos brigar nessas horas.
- Mulher, você não entende? Eu te amo! Não posso permitir que você se coloque na linha de tiro — o brutamontes parecia indefeso naquele momento, era uma declaração inesperada.
Shi se aproximou e fez um carinho em sua barba farta.
- Eu também te amo… E não precisa se preocupar comigo, não sou uma princesinha da quinta avenida.
As lágrimas e os sorrisos foram coroados com um beijo. Naquele dia Touro teve duas demonstrações de lealdade inesperadas. Agora, ele tinha certeza que não estava mais sozinho.
Dentro do galpão apenas Vito e Philip ficaram para recolher armas, documentos e dinheiro do homens mortos. O silêncio foi quebrado pelo apelo de Philip:
- Me perdoa.
Vitorino olhou para o jovem magro e sorriu.
- Tá tudo bem, estamos todos juntos agora. No mesmo barco.
E quando Vito se virou não conseguiu ver o sorriso tímido ou ouvir o sussurro:
- Estamos juntos…
O grupo de desajustados partiu cortando a aurora ainda sem saber exatamente para onde iriam.
Essa história é uma fanfic da websérie Desaventureiros. Como parte do desafio #DesAUventureiros, onde os fãs foram estimulados a criarem universos alternativos, resolvei colocar os personagens no universo dos gangsters. Mais precisamente usei o roteiro do último episódio da primeira temporada como base, o nome inclusive é o mesmo.
Espero que gostem, tive que correr um pouco para entregar a tempo do desafio, por isso não acho que esteja bem acabado, mas não odiei o resultado final.