A Organização Social das Formigas e dos Humanos.

Teteus
10 min readNov 18, 2023

--

Este texto tem como objetivo ser um Ensaio teórico e, apesar da temática científica deste artigo, ele não está baseado diretamente em referências científicas nem se propõe a ser um texto científico per-si. Toda argumentação contrária as ideias apresentadas será bem recebida se feita de modo educado e ponderado.

Os Insetos Eussociais

Não é novidade para ninguém que as formigas são seres absolutamente incríveis. Essas pequenas criaturas estão em praticamente todo o lugar, ocupando todos os continentes do planeta com exceção da Antártida. Sua força física é impressionante e podem carregar pesos até dez vezes maiores que o seu próprio, além é claro, de viverem em colônias com centenas, milhares ou até milhões de indivíduos cooperando junto para o sucesso da colônia. As formigas são tão extraordinárias, que elas podem ser consideradas, discutivelmente, o animal de maior sucesso ecológico do planeta.

Estes pequenos insetos maravilhosos, são considerados, juntos com as abelhas e cupins, os chamados insetos “eussociais” que significa, de forma simplista, algo como “verdadeira socialidade”, termo designado para o mais alto grau de sociabilidade entre animais. Este nome se refere a características destes insetos de viverem em colônias muito bem organizadas, que por anos, inspiraram filósofos a comparar a sociedade destes animais com as sociedades humanas.

Um destes filósofos foi Aristóteles, que acreditava que as abelhas eram um ótimo exemplo de uma sociedade organizada e trabalhadora. Para ele, estes insetos eram um exemplo de cooperação e organização social.

A colmeia era um modelo desejado de reinado e de fato ilustrava as bonanças da verdadeira lealdade dos súditos com o rei. (A Política Dos Humanos e A Política Dos Insetos Sociais. Hugo de Carvalho Ferreira. 2018)

Como Ferreira nos diz em seu artigo, aludindo as palavras do historiador Keith Tomas:

na Inglaterra dos séculos XVI, XVII e XVIII, eram frequentes as comparações entre as sociedades de insetos e de humanos. Havia admiração pelas sociedades de insetos e um claro elogio à presença de monarquia, hierarquia e divisão do trabalho. Por isso mesmo, não era difícil imaginar que abelhas e formigas serviam de exemplos e metáforas para justificar o reinado e a sociedade pré-moderna dividida em “castas”. (A Política Dos Humanos e A Política Dos Insetos Sociais. Hugo de Carvalho Ferreira. 2018)

A organização social dos insetos eussociais; formigas, abelhas e cupins, exerceu, e se você procurar bem, ainda exerce, um certo fascínio em algumas pessoas. Isto provavelmente ocorre porque a organização social destes animais parece ser de longe a mais eficiente e a mais funcional. Nós, seres humanos, como uma espécie também social, sempre procuramos a melhor forma de nos organizarmos social e politicamente. Mas em todos nossos anos de história, jamais chegamos a um acordo sobre este assunto. Além é claro, de enfrentarmos todos os tipos de problemas sociais, como desigualdade, fome, violência, corrupção, entre inúmeras outros vícios que acompanham nossa espécie desde sempre. Vícios que parecem não existir nas sociedades das formigas. Entretanto, comparar nós, humanos, com os insetos eussociais, pode ser uma comparação bastante equivocada. E nem estou me referindo a ideia de comparar insetos com mamíferos, ou das problematizações que essa comparação pode trazer, como justificar uma organização social rígida e hierárquica como as monarquias. O equívoco desta comparação é ainda mais profundo e basilar, e está ligado ao modo de reprodução destes animais que é bem diferente do nosso.

As formigas são divididas em “castas” como operários, soldados e rainha. Essa diferença ocorre devido a diferentes alimentos que são dados a cada formiga ainda em estágio larval.

Ainda segundo Ferreira, foi Thomas Hobbes um dos primeiros pensadores a separar completamente a política dos homens e dos insetos sociais. Em suas próprias palavras:

Dentre outros fatores, Hobbes defende que as abelhas são irracionais e sua socialidade é natural, ao passo que a política humana é artificial, fruto da razão e do intelecto. No entanto — e esse é o ponto interessante –, Hobbes entendia as colmeias enquanto coletivos perfeitamente harmônicos. A monarquia é, de fato, o melhor modelo: porém, no caso dos insetos sociais, a monarquia é regida por leis naturais, ao passo que, na política humana, pela razão. (A Política Dos Humanos e A Política Dos Insetos Sociais. Hugo de Carvalho Ferreira. 2018)

Outros pensadores também começaram a questionar a natureza da sociabilidade das formigas. Bernard de Mandeville, em sua obra Fábula das Abelhas, uma espécie de manifesto do liberalismo, defende que não é o altruísmo puro que mantêm a sociedade funcionando, mas o egoísmo: “Vícios privados, benefícios públicos” como diz o autor.

Entretanto, a melhor forma para se entender o funcionamento da sociedade das formigas, assim como a natureza em geral, só seria descoberta quase um século mais tarde. Eu estou falando aqui da teoria da evolução.

Alguns formigueiros podem chegar a tamanhos assustadores. Aliás, a maior supercolônia de formigas do mundo tem mais de quilômetros de extensão e se localiza na Europa. Imagem retirada deste site.

Diferentes Formas de Reprodução — Diferentes Sociedades

Para entendermos a diferença principal entre a sociedade das formigas (e dos insetos eussociais) e a dos humanos, precisamos começar falando do principal objetivo de qualquer ser vivo à luz da evolução. Se você pensou que o principal objetivo dos seres vivos é a “sobrevivência” você se enganou. O principal objetivo é a “reprodução”.

Esta afirmação pode não parecer muito intuitiva num primeiro momento. Afinal é preciso primeiro estar vivo para ser capaz de se reproduzir. É verdade, mas posso demonstrar meu ponto utilizando as aranhas viúvas-negras e os louva-a-deus.

Nestas duas famílias distantes de artrópodes, é comum que após a cópula (o ato sexual) a fêmea, maior e mais forte, mate o macho e o use para se alimentar. Ora, se sobreviver é mais importante do que reproduzir, então porque os machos destas espécies continuam investindo nas fêmeas mesmo que eles morram logo em seguida? Isso acontece, pois os machos que possuíam um comportamento de priorizar a própria sobrevivência, não acasalavam, e consequentemente seus genes não eram transmitidos para a próxima geração. Os machos que se arriscavam, ao contrário, transmitiam seus genes, mesmo que fossem mortos por causa disto logo depois. Com o tempo, os machos que priorizavam suas próprias vidas a copular se tornaram cada vez mais escassos, e os genes para o comportamento de se arriscar e copular, mesmo que isso significasse a morte, permaneceram na população destes animais.

É claro que nem todas as espécies possuem este mesmo comportamento reprodutivo, mas ele serve para ilustrar que é a reprodução o objetivo principal dos seres vivos e não a sobrevivência. Entre sobreviver sem deixar descendentes, ou deixar descentes e morrer, é a segunda opção que geralmente irá prevalecer na natureza. Sobreviver é apenas uma condição para o objetivo maior dos seres vivos, se reproduzir.

A fêmea da viúva-negra é maior e mais forte que o macho, e o mata após o acasalamento.

Esclarecida essa questão, voltemos então às formigas. Toda colônia de formigas é composta de uma formiga rainha mãe (em alguns casos temos mais de uma rainha, mas não vamos considerar isso agora) com várias formigas filhas que podem ser operárias ou soldadas (há mais “castas” do que isso entre as formigas, mas isto também não é relevante. Por isso irei me referir a todas essas “castas” como formigas operárias, termo que vai englobar também as soldadas).

Todas as formigas operárias são fêmeas e geneticamente muito próximas. Para termos uma comparação, irmãos humanos são em média, 50% parecidos geneticamente, enquanto as formigas de uma colônia são 75% , em média, próximas geneticamente. Entretanto, não é essa diferença genética que define a “posição” de uma formiga na colônia, isto é, se ela será uma operária ou uma soldada. Isso depende, na verdade, de quais genes são ativados e quais são desativados em cada uma delas. Muitas vezes isso depende da alimentação que elas recebem na fase larval. Mas, a característica mais importante das formigas operárias é que todas elas são estéreis, isso é, nenhuma delas pode ter filhos.

Ora, mas eu não acabei de dizer que a reprodução é o objetivo principal de todo ser vivo? Então qual o sentido de todas as formigas operárias serem estéreis? Com exceção da rainha é claro. Vamos por partes.

Tal como as operárias e as soldadas, o que define se uma formiga será uma rainha ou não é apenas quais genes são ativados. Quando as formigas nascem, algumas delas se tornarão rainhas no futuro, enquanto outras serão operárias na colônia. Somente as formigas rainha é que são capazes de se reproduzir, entretanto, futuras rainhas e operárias são irmãs também, isto é, elas são geneticamente muito próximas.

De acordo com Richard Dawkins, a seleção natural opera no nível do gene e não do indivíduo. Por isso, para as operárias, se uma de suas irmãs for capaz de se reproduzir e formar uma nova colônia, gerando assim descentes, isto já basta. Não é preciso que toda formiga se reproduza para que os genes delas sejam espalhados. Sem a possibilidade de se reproduzirem elas mesmas, as operárias “confiam” às suas irmãs futuras rainhas essa tarefa de se reproduzir e gerar descendentes, enquanto elas mesmas permanecem na colônia, “cuidando” de sua mãe, a atual formiga rainha, para que ela continue reproduzindo e fornecendo mais e mais formigas, tanto para a colônia, quanto para que novas futuras rainhas possam vir a nascer.

Como você notou, essa forma de organização é completamente diferente da nossa, seres humanos. Teoricamente, todo ser humano é um ser reprodutivo, pelo menos em potencial. Todos nós temos a possibilidade de nos reproduzir e gerar descendentes, diferentemente das formigas. Além disso, as sociedades humanas são compostas por indivíduos geneticamente diferentes entre si.

As formigas rainha, junto com os machos, são as únicas que possuem asas. Não mencionei as formigas machos até agora pois não são relevantes para o argumento. Imagem retirada deste site

Retomando o que foi falado. Sabemos que o principal objetivo dos seres vivos na natureza é se reproduzir. Toda competição na natureza acontece essencialmente como uma competição para deixar descendentes. Mesmo uma disputa por comida ou por território é, no fim das contas, uma disputa para decidir quem terá mais acesso a parceiros reprodutivos e quem estará vivo para se acasalar.

Então, se as formigas operárias são estéreis, e portanto, incapazes de se reproduzirem por elas mesmas, sendo obrigadas a confiar esta tarefa à suas irmãs futuras-rainhas, qual motivo elas teriam para competirem entre si? Exatamente, nenhum. As formigas de uma mesma colônia não possuem razão alguma para competirem entre si, pois essa competição não geraria nenhum benefício para elas de nenhuma maneira possível. Na verdade, o mais vantajoso para as operárias, é que protejam a colônia e a rainha, para que ela continue vivendo o máximo possível e gerando mais formigas que possam vir a se tornar futuras-rainhas. O comportamento sempre em prol da colônia e nunca de si mesmo das formigas tem um motivo evolutivo específico, que é a incapacidade das formigas operárias de se reproduzirem por si mesmas e a proximidade genética entre todos as formigas da colônia.

Isto é completamente diferente de nós seres humanos. Com nossas sociedades formadas por indivíduos geneticamente distintos e com todos estes indivíduos possuindo potencial reprodutivo, a competição em nossa espécie possui razões evolutivas para se manter. E de fato, se mantem.

A competição sexual ainda existe na espécie humana e é muitíssimo bem documentada e estudada pela psicologia evolucionista. Como somos seres sociais, que vivem em grupos, é claro que sabemos cooperar, e o altruísmo faz parte de nossa espécie. Mas diferentemente das formigas, ainda há razões evolutivas para que na espécie humana a competição entre indivíduos se mantenha. Nossas sociedades são organizadas em torno de um equilíbrio entre cooperação e competição entre os indivíduos, que dependendo de fatores culturais, ou materiais, pode tender mais para um lado ou mais para o outro. Mas os dois polos sempre existirão em algum nível.

Fonte da imagem.

Talvez a melhor comparação que possamos fazer a respeito das formigas, não seja com sociedades, mas sim com organismos. Mais especificamente, organismos que se reproduzem de modo sexuado, ou seja, através do sexo, como nós. Explico:

Nosso corpo, é formado de células. Todas as trilhões de células que compõem nosso corpo são formadas pelo mesmo material genético. Nossas células são todas “irmãs gêmeas”. A única exceção são as células reprodutivas (espermatozoides ou óvulos) que possuem apenas metade do material genético das células em geral. Entretanto, de todas as células, as únicas capazes de se reproduzirem (de deixar descendência para ser mais exato) são justamente as células reprodutivas. Nossas células normais podem se dividir, mas essa divisão serve apenas para manter o nosso corpo funcionando e não gera descendência. Portanto as células do corpo “dependem” das células reprodutivas para que seu material genético seja passado adiante. A comparação com as formigas não é exata, e possui lacunas, mas a ideia central é válida. Incapazes de gerar descendência, as formigas operárias, assim como as células normais do nosso corpo, confiam a um número pequeno de indivíduos a tarefa de gerar descendentes, assim como as células do corpo dependem das células reprodutivas para que aquele material genético seja passado adiante. Sendo assim, o comportamento das formigas é, de certa forma, mais similar ao de células em um organismo do que de indivíduos em uma sociedade.

Não preciso dizer novamente que esse tipo de organização jamais será atingido pelos seres humanos pois nossa forma de reprodução é diferente. Todos os indivíduos são geneticamente diferentes e capazes de se reproduzir, portanto, a cooperação absoluta das formigas e das células de um organismo, jamais acontecerá na espécie humana. Entretanto, é preciso dizer, que para o passado violento e competitivo de nossos antepassados, a espécie humana atingiu um nível de cooperação absurdo e muito além da maioria das espécies. Pode até não parecer, mas os seres humanos são criaturas bastante pacíficas em comparação com outras espécies animais. Quem aborda esta tese muito bem é o psicólogo evolucionista Steven Pinker em seu livro “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”. Não vou entrar na tese da obra, mas você pode ler uma resenha dela aqui.

E para finalizar, nosso nível de cooperação e de organização social, apesar de não ser igual ao das formigas, é algo absurdamente magnifico e até mesmo mais impressionante. Pois, mesmo que sejamos indivíduos geneticamente distintos uns dos outros, somos capazes de cooperar em altíssimo grau, inclusive com pessoas que não possuem nenhuma semelhança genética conosco, o que, para mim pelo menos, é algo que impressiona muito mais do que a organização social dos insetos eussociais.

Imagem retirada do site Brasil Escola

--

--

Teteus

Formado em Comunicação, aspirante a escritor e roteirista, e interessado em aleatoriedades