Opinião: Meu problema com a palavra “Corpos”. (Ensaios sobre o individuo e o coletivo Pt. 01)

Teteus
8 min readMar 26, 2022

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Não é de hoje que, constantemente, me deparo com a palavra “Corpos” sendo utilizada por acadêmicos e ativistas, tanto na internet, como em eventuais conversas e aulas. Não posso dizer ao certo quando essa palavra se popularizou, mas posso dizer que comecei a notá-la a partir de 2018, quando entrei na faculdade e ainda estava no curso de psicologia.

Pessoalmente falando, o modo de falar de pessoas mais progressistas ou acadêmicas sempre me incomodou um pouco. Nem estou me referindo ao conteúdo do que eles falam, que também não é o tipo de coisa que eu concorde muito, mas sim à forma, a maneira como eles falam. A escolha de vocabulário, a ordem das frases, e até mesmo a entonação com que dizem as coisas, é algo que me incomoda já há algum tempo, e tenho meus motivos para isso. Mas isso é assunto para um texto futuro. Nesse aqui, quero focar em uma das palavras das quais eu mais tenho aversão de todo o vocabulário mais progressista. A palavra “Corpos”. Corpos negros, corpos femininos, corpos trans, corpos isso, corpos aquilo, corpos de tudo quanto é jeito. Mas afinal, o que exatamente isso quer dizer?

Quando me refiro a alguém, a uma determinada pessoa, costumo dizer que esse alguém é, justamente, uma pessoa, um indivíduo. Essa pessoa pode ser negra, mulher, trans, o que quer que seja, mas ainda assim, é uma pessoa, um indivíduo. Não seria corpo, nesse caso aqui, um sinônimo de pessoa ou indivíduo? Bom, sim e não. Vamos por partes.

A noção de indivíduo, de indivíduo autônomo, não é exclusiva, mas ganhou um forte incentivo com a expansão e fortalecimento das democracias liberais e da popularização dos direitos humanos. Nesse sistema político, há a valorização do indivíduo, como um ser autônomo, capaz de guiar sua própria vida, tomar suas próprias decisões, e ser responsável pelo próprio sucesso e pelo próprio fracasso. O individuo é visto aqui, como um ser capaz de fazer escolhas, e essa noção de indivíduo é, pelo menos parcialmente, associada com a noção de meritocracia.

Como já é conhecido, a maior parte dos progressistas, e da esquerda como um todo, muito por causa de sua filosofia mais coletivista e baseada no social, é plenamente contra a noção de meritocracia, e sendo bem honesto, eu mesmo concordo com vários pontos que eles estabelecem a esse respeito, mas deixemos isso de lado. O ponto aqui, é que o pensamento progressista, vem se desvinculando cada vez mais ao pensamento liberal. Então, se o pensamento liberal tem a noção de indivíduo, como algo particular, único, individual, os progressistas adotaram a noção de “Corpos”, para se diferenciar. E essa palavra “Corpos”, carrega significados diferentes da noção de indivíduo.

Há toda uma história dessa palavra “corpos”, bem como para a palavra indivíduo. Essas palavras já foram objetos de estudos de inúmeros filósofos no passado, mas não é minha intenção contar essa história, até porque eu não a conheço. Apenas uma ou outra informação. E é importante dizer aqui, que esse texto é uma opinião, não um estudo, ou uma revisão de literatura.

Quando me refiro ao corpo de alguém, me refiro ao físico, ao material, ao palpável. Essa noção de corpo como objeto material, tem sua origem mais recente, na filosofia de Descartes (que se baseia em Platão, então é algo bem mais antigo do que se possa imaginar, mas vamos ficar com Descartes). Descartes, estabelece a separação entre o corpo e a alma. O material e o imaterial. Essa separação seria a base para as futuras ciências médicas e psicológicas, como áreas separadas. A alma, em grego psykhé, se tornou o objeto de estudo da psicologia, ou seja, aquilo que não é material, e o corpo, o objeto das ciências médicas. Portanto, nossa ideia de corpo, é a de algo material e palpável, e que muitas vezes se contrapõem a noção do imaterial da mente. No pensamento ocidental, principalmente no cristianismo, há a tendência de valorização do imaterial. Quem vai para o céu é a alma. Fulano é feio, mas tem ótimo caráter (imaterial), e por aí vai.

No pensamento progressista e também nos pensamentos mais de esquerda, existe um forte senso de materialismo. Talvez pela influência do materialismo histórico de Engels e Marx. Aqui, ocorre a valorização do material, do palpável, afinal, a esquerda sempre buscou se afastar do pensamento cristão e religioso (apesar de se parecerem algumas vezes, mas vamos deixar isso para outro momento). Com essa valorização do material, seria natural que em algum momento, passasse a se valorizar o corpo. Esse objeto físico, palpável e visível, e se abandonasse a noção de indivíduo, que mesmo que não tenha ligação direta com a noção de mente ou de alma, possui um caráter mais imaterial do que a noção de corpo. Quando digo que um individuo é alto, apesar do verbo “ser”, a noção de alto, aqui, é mais como algo adjacente àquela pessoa, uma característica. Não que essa característica seja menos importante, ou que ela não tenha significado nenhum, mas a impressão que se tem, é que, primeiro, ele é um individuo, e só depois disso é que ele é alto. Já quando digo que um corpo é alto, essa característica já não é mais adjacente, ela é intrínseca e essencial. O corpo É o material, e portanto todas as características que ele possui são intrínsecas e essenciais a ele. Já o individuo é uma categoria um pouco mais abstrata e menos material, então as características materiais são adjacentes ao indivíduo, que possui uma essência em si, imaterial, ligada ao seu comportamento, suas atitudes, suas escolhas e seu caráter.

Essa separação fica evidente quando vemos frases do tipo “posso ser feio mas sou legal”, “posso ser fraco, mas sou esforçado”. Há uma separação entre o material e o imaterial. Na visão religiosa, a essência imaterial, é mais importante do que a material. Na ideia de individuo, mesmo que ele não tenha alma, a “essência” imaterial dele, isto é, da mente, do caráter e das atitudes, tem um valor maior do que o material, o corpo. O indivíduo é a soma do material e do imaterial, mas sua característica imaterial é mais valorizada.

Claro que isso não é o que de fato ocorre. Nós seres humanos somos seres naturalmente pré-conceituosos (não em um sentido ruim ou crítico). Apenas quero dizer que somos seres que fazem julgamentos baseados na aparência dos outros o tempo todo. Mesmo que por séculos, a filosofia insistisse em dizer que o imaterial deve prevalecer, nós continuamos a julgar o material sobre o imaterial inúmeras vezes, pois isso é parte da nossa natureza.

Mesmo assim, o pensamento democrático, insistiu em se esforçar para valorizar o imaterial sobre o material. Afinal, as democracias são feitas de indivíduos. O pilar destas sociedades são os indivíduos, tal como já foi dito, autônomos, capazes de tomar suas próprias escolhas e decisões. Únicos e singulares. Uma filosofia completamente diferente dos regimes de massa, como o fascismo e o comunismo, que tendem a valorizar as massas e as classes, ou seja, a multidão, sobre o indivíduo, e também diferente das organizações sociais tribais, ou religiosas, que tendem a valorizar a família, o clã, as relações de parentesco, ou até mesmo a função do indivíduo na sociedade, acima do individuo como tal. Nessas organizações sociais, o individuo não é importante, o que é importante é o grupo, seja esse grupo a massa, a classe, a família, a função etc.

Parece haver uma tendência em nossa espécie, de quase sempre valorizar o grupo acima do individuo. Se nas organizações sociais mais “primitivas” é esse tipo que predomina, faz sentido pensar que a nossa tendência é de enxergar os outros nas posições sociais das quais ocupam, e não como indivíduos únicos e singulares. É mais ou menos esse sentido que a palavra “corpos” traz, quando usada por progressistas. Se a personalidade de alguém, ou pelo menos suas atitudes, teoricamente (e isso é um tema complicado), podem ser alteradas, o corpo não. Se você é uma pessoa negra vivendo em uma sociedade racista, o simples fato de nascer negro, já te coloca em um local social mais ou menos pré-determinado. Local esse, que na visão dos progressistas, não pode ser alterado individualmente, apenas coletivamente. Por isso a noção de indivíduo deixa de ser usada, e passa-se a usar a noção de corpo. O individuo, como ser autônomo, como soma do material e do imaterial, tem a capacidade de transformar a sua realidade de maneira a depender só dele. O corpo, não possui essa capacidade. Ele está “fadado”. O corpo, a partir do momento que nasce, está determinado à uma estrutura social prévia, do qual sozinho, ele não é capaz de mudar. Fala-se então do “corpo negro” ou “corpo trans”, porque na visão progressista, estas pessoas, não são capazes de mudar a realidade à sua volta de forma individual. Elas nasceram em uma sociedade cuja estrutura prévia, determina sua vida, ou pelo menos força o seu local social. Se essa pessoa sozinha não é capaz de mudar sua realidade, então ela não é um individuo, e sim um corpo, pois está presa ás características materiais. E as características imateriais, passam a ter menos importância. Observe a capa da matéria abaixo.

“Para acabar com a gordofobia, precisamos destruir a civilização ocidental”.

O título da reportagem acima traduz bem o que estou tentando dizer. “Para acabar com a gordofobia, precisamos acabar com a civilização ocidental”. (Tradução minha). Na visão dos progressistas, ninguém é capaz de mudar nada sozinho. O individuo não existe pois o individuo é um ser independente e autônomo. Para que haja qualquer tipo de mudança, essa mudança precisa ser social e radical. Por isso, o termo “corpos” se encaixa bem aqui. Você não é um individuo gordo, com capacidade de emagrecer. Você é um corpo gordo dentro de uma estrutura social que discrimina gordos. Suas ações como individuo não importam. São suas ações como parte de uma categoria que importam aqui. Daí a individualidade ser gradativamente apagada e diluída. A subjetividade das pessoas, suas escolhas e opiniões próprias e pessoais, são minimizadas para dar lugar a uma espécie de experiência coletiva de subjetividade baseada numa característica material. Não se trata de saber, o que você, enquanto individuo, sofreu, mas como esse sofrimento se tornará parte de um “sofrimento” maior vivido por todas as pessoas que compartilham aquela mesma características.

Não que o compartilhamento de experiências seja algo ruim, pelo contrário, é algo muito bom. Quando compartilhamos nossas experiências e vemos que outros passaram pelo mesmo que nós, nos sentimentos menos sozinhos e mais acolhidos. É assim que funciona, por exemplo, os grupos de apoio como o AA. O problema aqui, é que as características individuais são tão minimizadas, que o individuo deixa de existir. Suas vontades particulares, seus desejos particulares, seus sonhos particulares, tudo que o caracterizaria como individuo, um ser único e singular, é apagado. Só o que sobra dessa pessoa é “O Que” ele é. E “quem” ele é, ou não existe mais, ou se torna um “quem” subordinado a um “o que”. A pessoa passa a se definir não por quem ela é, mas pelo que ela é.

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Teteus

Formado em Comunicação, aspirante a escritor e roteirista, e interessado em aleatoriedades