A Inteligência Artificial aplicada à construção de uma sociedade individuacionante

André Coimbra Felix Cardoso
17 min readSep 14, 2023

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Maslow é bem popular pela sua Teoria da Hierarquia das Necessidades e Motivação e suas ideias são frequentemente representadas em forma de pirâmide, ainda que ele mesmo nunca o tenha feito desse modo.

Apesar dos benefícios didáticos, sempre que escolhemos um modelo representativo da realidade incorremos nas suas limitações. Todo modelo tem seus pontos cegos, não existem representações perfeitas. E ainda que a simplicidade seja o mais alto grau de sofisticação, muitas delas acabam sendo excessivamente simplificadoras. Por isso é sempre um exercício relevantemente criativo usar novas representações e metáforas que não invalidam as anteriores ao passo que são úteis para gerar novas ideias. Maslow falou, em seus últimos trabalhos, de 7 ou 8 grupos de necessidades e não 5 como é mais frequentemente representado.

Nesse artigo, todavia, vamos usar uma nova representação para as ideias de Maslow: a forma circular (abaixo). Com ela, provocaremos primeiro o próprio escritor enquanto ele reflete e escreve e, segundo, você leitor a refletir sobre si mesmo e sobre a sociedade à luz dessa metáfora de desenvolvimento. Essa representação também não é livre de limitações, mas pode ajudar a trazer novos insights.

A figura acima traz uma estruturação da personalidade ou da psique humana em forma de esfera e com 7 camadas (ou 8 com o núcleo) concêntricas aninhadas. Cada camada representa um nível de necessidades. A primeira de fora para dentro, de cor vermelha, representa as necessidades fisiológicas (comer, dormir, ir ao banheiro, etc.). A segunda laranja; de segurança ou estabilidade (obter um ganho econômico). A terceira amarela; de afeto e pertencimento (pertencer a uma família, tribo, afeto, etc.) A quarta esverdeada; de reconhecimento e status que propicie auto-estima (construir uma identidade no mundo, obter respeito e reconhecimento social, etc.).

Nesse modelo, até aqui, as primeiras 4 camadas supracitadas de fora para dentro são as mais superficiais da personalidade. As legendas das necessidades dessas camadas superficiais estão ao lado direito da figura abaixo, são as motivações por carência ou deficiência, e especializam-se no desafio de obter coisas de fora e lidar com o meio externo: adequação, ajustamento, adaptação, competência, controle, domínio, tudo isso são palavras para o meio e que, por conseguinte, são inadequadas para descrever a psique como um todo. Descrevem tão somente a sua parte superficial denominada ego. As outras 3 camadas mais internas, profundas e mais próximas do núcleo (o Ser), não têm o foco no meio externo, e se ocupam primordialmente do Ser e de suas potencialidades.

As 3 camadas mais internas de cores azul, violeta e rosa são as mais fundamentais da personalidade. As legendas das necessidades e valores dessas 3 ou 4 camadas internas estão do lado esquerdo da figura acima: sabedoria, estética, autorrealização e transcendência. Essas são motivações de crescimento interno, e podem se especializar no reconhecimento e ativação das potencialidades do Ser (o núcleo da esfera concêntrica). Qualidades como: sabedoria, criatividade, coragem, beleza, generosidade, serenidade, enfim, virtudes de um modo geral. Tudo isso são palavras para expressões do Ser e, por conseguinte, são fundamentais para descrever a psique total. Descrevem aspectos da parte fundamental, arquetípica, denominada Self. As outras camadas mais externas, como dito antes, as quais têm o foco no meio externo, se ocupam primordialmente da adaptação e sobrevivência do ego.

Metaforicamente, como na imagem abaixo, sugerimos para esse sistema um fluxo respiratório completo, profundo, de fora para dentro e de dentro para fora. Nessa lógica o artigo foi escrito com a intenção de fazer uma reflexão inicial sobre se a IA pode nos ajudar a fazer a transição enquanto indivíduos e sociedade de um modelo de “ofegação do ego” (respiração ansiosa, curta, supercifial e rápida) para um modelo de “respiração profunda do Self” (relaxada, profunda, lenta e prolongada). Se sim, então, como? Os dois tipos de respiração são necessários, todavia, a ênfase (ou unilateralidade) da nossa sociedade tem sido em um só deles (a ofegaçâo do ego), o que a torna geradora de inúmeras desarmonias psicológicas, sociais, ambientais, etc.

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De um modo geral, no estilo de vida ocidental (presente em boa parte do planeta e não só no ocidente), passamos a maior parte do tempo trabalhando e dormindo; e o trabalho remunerado, o trabalho doméstico, o lazer, a alimentação e o sono ocupam juntos 80 – 90% dos 1.440 minutos que todos temos disponíveis todos os dias.

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Há estudos que analisam como o mundo gasta o seu tempo, apontando algumas diferenças entre países. Países ricos trabalham menos e têm mais tempo livre. Países pobres têm menos tempo livre. A mesma lógica pode ser aplicada às diferentes classes socio-econômicas e grupos sociais diferentes que coexistem e convivem dentro de uma mesma sociedade, pais, cidade, etc. onde há muitas desigualdades.

O estudo abaixo (ESTEBAN, 2020) não se refere à distribuição do tempo nas 7 camadas supracitadas, mas é válido enquanto estímulo de reflexões sobre as desigualdades entre países assim como sobre a liberdade que se tem (e que se constrói conscientemente) para romper com alguns padrões aprisionantes.

O termo “orçamento de tempo” geralmente se refere à prática de mapear (como na imagem acima), avaliar e gerenciar o tempo de forma a transformar a relação com o tempo rumo a uma mais alta possibilidade futura. Então se planeja quanto tempo se dedicará a atividades específicas ao longo do dia, semana ou mês, a fim de realizar uma a mais alta possibilidade futura intencionada. Isso envolve, após o mapeamento e a avaliação, redefinir prioridades, estabelecer metas de tempo para tarefas e evitar desperdiçar tempo em atividades não convenientes ao próprio desenvolvimento.

Assim, o orçamento de tempo pode ser uma ferramenta útil para nos ajudar a mensurar como investimos e/ou gastamos a energia psíquica (outro nome para “atenção”) na consubstanciação ou não das 7 camadas da nossa personalidade total. Por exemplo, se estamos muito unilateralmente dedicados às camadas externas (que formam as preocupações do ego) em detrimento da internas (afluência do Ser).

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Convém reconhecer que, do ponto de vista das 7 camadas, há um desequilíbrio no orçamento de tempo ao longo das diferentes fases da vida. Podemos entrever que, o modelo de sociedade atual, gera um desequilíbrio no orçamento de tempo ao longo das diferentes fases da vida. É importante trabalhar na correção desse fluxo de energia que se gasta ao longo do tempo com vistas a uma melhor possibilidade que promova o desenvolvimento da personalidade total.

Supomos que ter tempo livre é uma das metas mais desejáveis a que podemos aspirar, enquanto o trabalho é visto como um mal necessário. Mas o indivíduo médio é mal preparado para ficar ocioso. Gasta 4 vezes mais tempo em lazer passivo (vendo TV e nas redes sociais), que tem menos da metade da probabilidade de proporcionar bem-estar e desenvolvimento, do que em lazer ativo, que são oportunidades para experimentar e desenvolver novas atitudes, conhecimentos e habilidades (ou aperfeiçoar as capacidades já existentes) durante o tempo livre.

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Ou seja, a liberdade para escolhermos dedicar tempo às coisas que mais valorizamos na vida também pode ser construída por meio de um processo de meta-atenção (consciência, olhar para si mesmo, para a forma de se pensar e viver, enfim, para toda a nossa vida), autoconhecimento e autogestão visando a mudança gradual para a autorrealização plena. Estudar como gastamos o nosso tempo, sobretudo o tempo livre, e como podemos melhor gastá-lo (com mais consciência) proporciona uma perspectiva importante para a compreensão das próprias condições de vida e oportunidades de desenvolvimento.

Existem abordagens e ferramentas (que inclusive usam IA) que podem ajudar as pessoas a mapear, planejar e manter um orçamento de tempo como aplicativos de gerenciamento de tarefas associados a técnicas de gestão do tempo. Nesse caso a IA pode analisar grandes conjuntos de dados relacionados ao nosso uso do tempo, identificando padrões para facilitar insights sobre como gastamos o tempo, ajudando a identificar oportunidades de melhoria. Com base em nossas pré-definições conscientes ou nos critérios específicos pré-definidos, a IA pode sugerir prioridades, criar listas de tarefas personalizadas e até mesmo propor otimizações na sua programação.

Tempo e energia psíquica distribuídos ao longo de uma existência são grandezas limitadas e por isso envolvem escolhas. Não é possível ter tudo ao mesmo tempo, mas podemos distribuir o nosso tempo e energia de modo mais sábio (equilibrado).

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Todos dormimos, trabalhamos, comemos e temos os momentos de lazer, sendo natural e desejável que na primeira metade da vida as camadas externas sejam preponderantes no orçamento de tempo, requerendo mais tempo e atenção, ao passo que as camadas internas que são mais sutis e essenciais recebam menos tempo e atenção.

Já na segunda metade da vida, é desejável que as camadas externas já estejam relativamente consolidadas, propiciando à personalidade se dedicar aos valores e necessidades do Ser, sem contudo deixar de zelar pelas camadas mais externas. A ideia é que a proporção vá se invertendo com o tempo, dedicando-se cada vez mais energia às camadas internas da psique enquanto se mantém o equilíbrio saudável nas camadas externas.

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Se por um lado devemos reconhecer que, na primeira metade da vida, as camadas internas se assentam sobre as camadas externas, precisando destas como alicerce, sem o que desmoronam, por outro lado, é urgente compreender que, na segunda metade da vida, as camadas externas não se sustentam sozinhas. Elas se nutrem do solo das camadas internas não prescindindo destas como referência de desenvolvimento… sem o que também se desorientam completamente. O crescimento alarmante da depressão em nossa sociedade, motivada pelo vazio existencial — a “ausência” do solo interno — é uma das evidências do nosso fracasso, isto é, do modelo de sociedade doente e insustentável que instauramos.

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Porque em nossa sociedade as camadas externas — necessidades e valores para lidar com o meio — são tão preponderantes em relação às camadas internas — valores e afluência do Self — , a maior parte do tempo e para a maioria da população, é que nos tornamos uma sociedade patológica e insustentável. Nos preocupamos em ter uma boa vida (cuidando das 4 camadas externas) sem necessariamente nos tornarmos pessoas melhores e plenamente realizadas (cuidando das 3 camadas internas). Se como espécie compreendessemos que avançar no preenchimento ilimitado das camadas externas — em detrimento das camadas internas — não gera evolução, desenvolvimento e felicidade real (e sim ilusória) talvez não houvesse mais corrupção.

É importante entender que boa parte das desarmonias que existem no mundo (se não todas) decorrem do modelo de sociedade insustentável e patológico que estabelecemos, em que preponderam as camadas externas, isto é, os valores e necessidades do ego, a maior parte do tempo e para a maioria da população.

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Não deveria ser assim. Existem indivíduos em que as camadas internas — os valores e necessidades do Ser — são sistematicamente escolhidos e preferidos com maior frequência, e isso não significa desprezar as camadas externas. Maslow denominou essas pessoas de personalidades individuacionantes ou autorrealizantes.

A individuação

A individuação é um conceito desenvolvido pelo psicólogo suíço Carl Jung. Refere-se ao processo de desenvolvimento da personalidade total (camadas internas e externas) pelo qual uma pessoa se torna um indivíduo total e único. Isso envolve a busca pela integração de todas as partes da psique, incluindo os aspectos conscientes e inconscientes da personalidade. A individuação visa alcançar um estado de equilíbrio e autenticidade, permitindo que alguém se torne verdadeiramente e essencialmente o que é, em vez de ser influenciado apenas por expectativas sociais ou padrões culturais. É um processo contínuo de autodescoberta e crescimento ao longo da vida. Mas isso não significa individualismo. Uma pessoa individuacionante se identifica mais profundamente com a vida e a humanidade, assim, trabalha pelo seu desenvolvimento dando a ela a sua contribuição singular.

Mas por que em nossa sociedade essas pessoas são uma excessão muito pequena — em função das inúmeras desigualdades, tornando-se uma condição ambiental, social e cultural desfrutada por uma minoria (e também devido às próprias escolhas individuais) — ao invés da regra, tornamo-nos uma “sociedade de ratos” correndo atrás do dinheiro (na “roda de ratos”).

Uma sociedade individuacionante — capaz de tornar a individuação uma regra ao invés de mantê-la como uma excessão — é uma realidade a ser construída tando individualmente (pelo esforço próprio e inalienável) quanto coletivamente, estabelecendo-se as condições ambientais que permitam às pessoas pararem de correr na “esteira”.

Se por um lado é papel do Estado estabelecer as condições mínimas para romper com essa estrutura sistêmica, por outro, cabe à sociedade estimular — por meio de valores culturais essenciais e permanentes — uma predisposição interna dos seus indivíduos para isso. À luz dessa perspectiva, sempre cumprirá afinal ao indivíduo fazer a escolha, não obstante possa ser incentivada pelo ambiente, pela família, pelas instituições de um modo geral, cabendo a ele, ao indivíduo, o papel de assimilar e também assumir para si o próprio processo de autodesenvolvimento total e genuíno.

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Portanto, a grande questão que todos devemos nos fazer é: como podemos fazer a transição para um modelo de sociedade e de vida, simultaneamente individual e coletiva, baseado essencialmente nos camadas internas da personalidade, nos valores e necessidades do Ser e sem prejuízo das camadas externas?

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A primeira coisa a ser feita é acabar com a dicotomia do “ou” em benefício da genialidade do “e”. Precisamos deixar de acreditar que só é possível desenvolver as camadas interiores após satisfazermos e preencheremos as camadas exteriores. Não, não precisa ser uma coisa ou outra.

Genialidade do “e” ao invés do “ou”.

Entre se dedicar às "barulhentas" camadas externas da personalidade ou ao sutil chamado interno fique com os dois! Devemos aceitar que somos ambíguos enquanto seres que somos. Podemos exercitar a dialética e realizar integração dessa ambiguidade. Maslow também reconheceu que esse é o dilema existencial humano. Mesmo os nossos seres mais plenamente individuacionados não estão isentos da condição humana básica, a de serem, simultaneamente, meras criaturas e participarem da essência criadora, fortes e frágeis, limitados e ilimitados, meramente animais e transcendendo a animalidade, adultos e crianças, timoratos e corajosos, progressivos e regressivos, ávidos de perfeição e, no entanto, receosos dela, vermes e heróis.

É a dialética entre ego e Self o fundamental. Por muito difícil que possa ser, devemos aprender a pensar holisticamente e não atomisticamente. Olhamos só para a flor da rosa e queremos ignorar os seus espinhos. Todos esses “opostos” estão, de fato, intrinsecamente relacionados, especialmente nas pessoas mais sadias, e um dos objetivos mais adequados do processo de individuação consiste em transitar da dicotomização e da divisão (unilateralidade do ego) para a integração do Self.

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Por que o atual modelo é patológico e insustentável? Numa sociedade patológica e insustentável… as necessidades periféricas dominam a vida inteira, tanto na primeira metade da vida quanto na segunda. As crianças e os jovens são ensinados a acreditar que a vida é só isso — o preenchimento das 4 camadas externas.

Numa sociedade individuacionante, saudável e sustentável (ou seja, em harmonia como parte de um todo) as camadas internas influenciam e até direcionam o desenvolvimento das quatro camadas externas durante a primeira metade da vida e determinam a qualidade da experiência na segunda metade da existência.

Enquanto houver um trade-off será percebido como “ou” e teremos perdido a oportunidade de trazer o “e” para a vida diária.

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Como a IA pode ajudar na criação de uma sociedade individuacionante (saudável e sustentável)?

Por se basear no autoconhecimento, a individuação é um processo altamente pessoal, de autodescoberta, autogestão e autorealização. Embora a inteligência artificial (IA) tenha avançado consideravelmente em várias áreas, ela não pode diretamente facilitar a individuação, pois esse é um processo de desenvolvimento das camadas internas. Algumas etapas desse processo envolvem o exame dos próprios pensamentos, sentimentos e comportamentos. A terapia, a meditação e o diário são ferramentas úteis para isso. Além da auto observação busca-se reconhecer e aceitar todas as partes de si mesmo, incluindo aquelas que você pode considerar negativas ou indesejáveis. Reconheça que todos têm aspectos sombrios.

O processo de exploração dos arquétipos mais profundo utiliza a análise de sonhos, mitos e histórias pessoais visando a integração consciente das diferentes partes de si mesmo, equilibrando os aspectos masculinos e femininos, racionais e emocionais, etc.

À medida que alguém se torna mais consciente e integrado, busca viver de acordo com os seus valores e objetivos pessoais, em vez de se conformar às expectativas dos outros. E esse processo continua ao longo da vida, mantendo-se aberto para continuar a crescer, aprender e se transformar.

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Então, ainda que indiretamente, como a IA pode ajudar a criar uma sociedade individuacionante? A reflexão a seguir sugere que: sendo prorrogamada para ajudar a criar uma sociedade que promova a individuação, ou seja, o desenvolvimento das camadas internas par-e-passo às camadas externas, para o surgimento de indivíduos autênticos e completos. Esse é um desafio complexo e multifacetado. A IA pode desempenhar um papel nesse processo, mas não como a panaceia.

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Primeiro de tudo, entendendo os riscos e efeitos colaterais do uso dela. Isto é, para não ser uma fonte inconsciente de autosabotagem do processo de desenvolvimento da nossa inteligência natural. O uso indiscriminado da IA pode ter esse efeito colateral, ou iatrogenias, que são efeitos colaterais indesejados ou consequências negativas não intencionais. Existem algumas iatrogenias associadas ao uso da IA… Aqui nos circunscreveremos apenas à criação da dependência excessiva, em áreas como assistentes virtuais e tomada de decisões que podem reduzir a habilidade das pessoas de pensar por si mesmas, criticamente, e tomar decisões independentes e orientadas pela sua bússola interna. Já existem em nosso modelo de sociedade, uma alta dependência tecnológica e à medida que a IA desempenha um papel cada vez maior em nossas vidas, pode criar uma dependência tecnológica que pode ser problemática em caso de falhas de sistemas ou interrupções.

Depois, a IA pode ajudar a eliminar as desigualdades sociais e melhorar as condições ambientais. Os desafios de adaptação do ego ao meio são desiguais para todos. São maiores para uma maioria, e menores para uma minoria. A IA pode contribuir para a criação de uma sociedade com “custo marginal zero” (um conceito do economista Jeremy Rifikin) que se refere a uma economia na qual a produção e distribuição de bens e serviços essenciais podem ser realizadas com um custo marginal próximo a zero. Isso significa que, uma vez que os custos iniciais de criação da infraestrutura estejam cobertos, a produção adicional não requer custos significativos extras. A inteligência artificial (IA) pode desempenhar um papel significativo na construção de uma sociedade com custo marginal zero, facilitando a eficiência, a automação e a otimização dos recursos. Sobretudo, possibilitando a modificação no orçamento de tempo.

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A IA tem o potencial de liberar mais ócio (tempo livre) devido ao ganho de eficiência proporcionadas pela IA, tais como: automatização de tarefas repetitivas e menos estimulantes, liberando tempo para as pessoas se dedicarem a atividades mais significativas e criativas. Isso leva, consequentemente, à redução de horas de trabalho sem comprometer a produtividade. Com menos tempo gasto em tarefas rotineiras, as pessoas podem se dedicar mais à inovação e à criatividade, o que pode levar a novos empreendimentos e oportunidades de lazer.

Entretanto, é importante observar que a criação de tempo livre não necessariamente levará as pessoas a optarem por atividades individuacionontes. Como vimos, existe o lazer passivo, o ócio desprovido de significado. Portanto, deve-se perguntar “como a IA pode ser aplicada com o incremento da capacidade de ajudar as pessoas a encontrarem significado e satisfação nas atividades que preenchem esse tempo?” De mais a menos, o ócio acrescido pela IA também levanta questões sobre como as sociedades podem lidar com o desemprego tecnológico e como garantir que a distribuição dos benefícios seja justa e equitativa.

Além disso, a IA pode atuar reduzindo o grau de intensidade dos desafios de adaptação ao meio, que ocorrem durante a primeira metade da vida, liberando espaço para o cultivo do solo das camadas internas. Algum grau de desafio é sempre necessário para o desenvolvimento das capacidades e da antifragilidade. Todavia, um desafio além do “ponto ideal” pode ser prejudicial implicando em pior distribuição do tempo e da atenção, em detrimento de outros campos da vida que precisam ser cultivados. Um desafio abaixo do “ponto ideal” pode não ser estimulante e, com isso, eximir-se de desenvolver capacidades e antifragilidade.

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Discute-se também sobre o potencial de a IA contribuir para uma educação personalizada, supondo-se que a IA pode ajudar a personalizar o ensino e a aprendizagem, adaptando os currículos e materiais educacionais às necessidades individuais dos alunos. Aqui devem ser feitas ressalvas.

Algoritmos, aplicativos e ferramentas de IA podem até oferecer sugestões educacionais, culturais e de reflexões personalizadas… Mas frequentemente tais sugestões são feitas com base em nossas preferências, estados emocionais e histórico. Qual o risco disso? Pelo fato de serem baseadas em nossas preferências e histórico podem estimular mais a reprodução e a continuidade daquilo que já estamos ao invés da transformação na nossa mais alta possibilidade futura (o que essencial e totalmente somos).

Sem falar que a IA não possui os critérios pelos quais devemos balizar a nossa vida, ainda que ela possa trazer ideias nesse sentido. Daí cabe a nós avaliarmos de acordo com os nossos critérios próprios. Entendendo que o modelo de desenvolvimento está dentro de nós e não nela podemos considerar e avaliar os inputs dela.

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Feita essa ressalva, a IA pode ajudar que cada pessoa desenvolva seus interesses e talentos únicos, mas orientados pela sua bússola interior e pelos aprendizados a partir do feedback com os relacionamentos no exterior. Usar a IA com critério e discernimento.

O mesmo serve no caso de aconselhamento e orientação. Existem já Chatbots e assistentes virtuais baseados em IA que podem fornecer orientação e apoio personalizados em questões de carreira, educação e desenvolvimento pessoal, ajudando as pessoas a tomar decisões alinhadas com seus objetivos individuais. Existem Chatbots de recomendações de conteúdo cultural: algoritmos de recomendação baseados em IA podem ser ajustados para promover a diversidade e a descoberta cultural, incentivando as pessoas a explorar diferentes formas de arte, música, literatura e outras experiências que contribuam para a sua individuação.

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Por fim, a IA pode contribuir com a saúde mental individual e coletiva, sendo usada para fornecer análises de dados sociais e identificando padrões e tendências prejudiciais, como preconceitos e discriminação, e ajudando na criação de políticas que promovam a igualdade e a inclusão. Enfim, recursos de saúde mental acessíveis, identificando sinais precoces de problemas de saúde mental e oferecer intervenções personalizadas para apoiar o bem-estar emocional.

No entanto, é importante lembrar que a individuação é um processo intrinsecamente humano que envolve a liberdade de escolha, a autoconsciência e a autenticidade. A IA pode ser uma ferramenta útil para apoiar esse processo, mas não deve substituir a importância da consciência, autonomia e responsabilidade individual na busca da individuação. Além disso, questões éticas, como privacidade, controle e uso dos dados, devem ser cuidadosamente consideradas ao implementar soluções baseadas em IA para promover uma sociedade individuacionante.

Referencial

CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Flow: the psychology of optimal experience. New York: Harper Perennial, 2008.

ESTEBAN Ortiz-Ospina, Charlie Giattino and Max Roser (2020) — ”Time Use”. Published online at OurWorldInData.org. Retrieved from: ‘https://ourworldindata.org/time-use’ [Online Resource].

GOLEMAN, Daniel. Foco: a atenção e seu papel para o sucesso. Trad. Cássia Zanon. 1a Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014

MASLOW, Abraham. Motivation and personality. New York: Harpe. 1954.

__________. Toward a Psychology of Being. Nova Jersey, Van Nostrand, 1962.

__________. Introdução à Psicologia do Ser. Tradução de Álvaro Cabral. 2.ed. Rio de Janeiro: Eldorado, s/d, 1968.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo 9/1. In: Obra Completa de C. G. Jung, vol. IX/1. 24a ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

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André Coimbra Felix Cardoso

Professor da UFSCar, Coordenador do MBI UFSCar e Self Innovation Designer