As Fases da Vida na Escrita Autobiográfica

André Coimbra Felix Cardoso
30 min readOct 8, 2023

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No último artigo refletimos sobre as possibilidades da escrita autobiográfica enquanto um potente caminho para o processo de autoconhecimento e autorrealização (individuação).

No presente artigo, complementarmente, vamos refletir sobre como catalizar o processo da escrita autobiográfica por meio da “ligação arquetípica” dos pontos de nossa vida. Nesse sentido, vamos trazer quatro referências principais: Pitágoras, Nietzsche, Carl Gustav Jung e Rudolph Steiner (Septênios) como perspectivas e abordagens complementares a serem integradas nesse trabalho.

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A escrita autobiográfico com a finalidade de autoconhecimento nos permite reunir as partes do passado para integrá-las, compreendê-las e significá-las, norteando-nos para um futuro de mais alta possibilidade, para que assim possamos reconhecer o significado da nossa existência, o nosso cerne, a nossa essência, qual a nossa missão humana, e a obra que podemos realizar no mundo, transformando essa possibilidade em ação concreta na realidade, através da elaboração de metas nesse sentido.

Frequentemente a narrativa ou sucessão de fatos cronológicos, que alguém escolhe para representar quem é, filtra somente aqueles elementos que estão disponíveis na memória, no nível pré-consciente da psique, por isso, acaba não acessando camadas mais profundas da psique.

Daí a necessidade de usarmos os arquétipos como modelos estruturantes da escrita autobiográfica.

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Segundo Jung, os arquétipos são a nossa impressão digital psíquica, contendo os instintos e a sabedoria ancestral que todos trazemos. Usando uma analogia bem limitada, o Inconsciente Coletivo é como se fosse o software ou a programação com que nascemos… e os arquétipos são os algorítmos originais que estão dentro desse software. Originais porque não foram programados pela sociedade, mas pela nossa natureza essencial.

Assim, os arquétipos personificam os estágios mais amplos pelos quais passamos durante o processo de amadurecimento. Um novo arquétipo surge a cada estágio biológico da vida — a criança, a relação filial com a mãe e o pai, o aprendiz e sua relação com o sábio, o/a jovem, o/a amante, o/a guerreiro/a, o/a pai/mãe, o/a rei/rainha, etc. — e isso tem a finalidade de nos guiar psicologicamente à medida que avançamos em nossa cronologia. E mais…

As experiências e a sabedoria que desenvolvemos sob um dado arquétipo se tornam a fundação para o desenvolvimento de arquétipos futuros. E o ser humano vai amadurecendo de arquétipo em arquétipo, transferiando as qualidades desenvolvidas em um arquétipo para os estágios seguintes. Desse modo, podemos manter essas qualidades e nos beneficiar delas em cada arquétipo, isto é, por toda a vida.

Com isto em mente, podemos agora integrar os estágios arquetípicos, fazendo sentido organizar a trajetória de vida com base nas diferentes fases da vida humana da nossa existência. Uma reelaboração da nossa jornada, à luz da consciência, que pode ser estruturada em torno de como temos vivido cada fase de nossa vida. Nesse sentido, convém citar 3 inspirações: Jung, Nietzsche e Pitágoras (ou os pitagóricos). Elas podem ser usadas de modo complementar. Outra inspiração que iremos utilizar são os septênios de Rudolph Steiner (Antroposofia).

Pitágoras, o famoso matemático e filósofo da Grécia Antiga, não deixou registros escritos de suas obras. A maior parte do que sabemos sobre seus ensinamentos e filosofia vem de relatos de seus discípulos e de escritores posteriores, como Filolau e outros pitagóricos.

A comparação dos estágios da vida com as quatro estações do ano é um conceito que pode ser atribuído à filosofia pitagórica em geral, mas não está associado a uma obra específica de Pitágoras, já que não temos textos escritos diretamente por ele. Essa analogia é frequentemente usada para descrever a crença na ciclicidade da vida e na importância da harmonia na compreensão do mundo, conceitos que eram centrais na filosofia pitagórica. Ao caracterizar as etapas de desenvolvimento da vida, faz-se a analogia com as 4 estações (infância como primavera, juventude como verão, maturidade como outono e velhice como inverno).

Inspirado talvez por essa ideia, que é atribuída aos pitagóricos, e também por Nietzsche, Jung fez algo semelhante só que em analogia com o curso de ascensão e descensão diária do Sol. Jung explorou os estágios da vida em várias de suas obras, mas dois de seus trabalhos mais conhecidos sobre o assunto é “Natureza da Psique (8/2)” e “Psicologia do Desenvolvimento Humano”, também conhecido como “Estudos do Crescimento da Personalidade”. Nestes livros, Jung descreve os estágios do desenvolvimento psicológico ao longo da vida, incluindo a infância, a adolescência, a idade adulta e a velhice. Aborda como as diferentes fases da vida podem influenciar a psicologia e a personalidade das pessoas. É uma leitura importante para quem deseja entender a perspectiva de Jung sobre o desenvolvimento humano.

Nietzsche, antes de Jung, representou as mesmas 4 etapas por meio da metáfora dos quatro estados do ser que passa pelas 3 grandes transformações (espírito, camelo, leão e criança). Assim, percebemos um significado semelhante (e até complementar) entre estas 3 imagens (de Pitágoras, Nietzsche e Jung), de sorte que faremos algumas associações no sentido de facilitar o entendimento para ajudar na escrita da autobiografia. Vejamos primeiro a jornada do Sol de Jung, descrita em “A Natureza da Psique” (8/2).

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O caminho do sol de Jung

Suponhamos um Sol dotado de sentimentos humanos e de uma consciência humana relativa ao momento presente. De manhã, o Sol se eleva do mar noturno do inconsciente e olha para a vastidão do mundo colorido que se torna tanto mais amplo, quanto mais alto ele ascende no firmamento. O Sol descobrirá sua significação nessa extensão cada vez maior de seu campo de ação produzida pela ascensão e se dará conta de que seu objetivo supremo está em alcançar a maior altura possível e, conseqüentemente, a mais ampla disseminação possível de suas bênçãos sobre a terra. Apoiado nesta convicção, ele se encaminha para o zênite imprevisto — imprevisto, porque sua existência individual e única é incapaz de prever o seu ponto culminante. Precisamente ao meio-dia, o Sol começa a declinar e este declínio significa uma inversão de todos os valores e ideais cultivados durante a manhã. O Sol torna-se, então, contraditório consigo mesmo. É como se recolhesse dentro de si seus próprios raios, em vez de emiti-los. A luz e o calor diminuem e por fim se extinguem (p. 353).

Sabemos que toda comparação é limitada enquanto representação de uma realidade, ainda mais no caso da psíque, por isso, “felizmente não somos sóis que nascem e se põem; do contrário, nossos valores culturais andariam mal. Mas há alguma coisa semelhante ao Sol dentro de nós, e falar em manhã de primavera [meio-dia de verão], tarde de outono da vida [e crepúsculo de inverno] não é mero palavrório sentimental, mas expressão de verdades psicológicas e até, mais ainda, de fatos fisiológicos, porque a virada do Sol ao meio-dia altera até mesmo certas características corporais” (p. 354).

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As 3 metamorfoses de Nietzsche

Em suas três metamorfoses, o espírito-criança se transforma em espírito-camelo; o camelo em espírito-leão; e o leão, finalmente, em criança-espírito, se conseguir derrotar o dragão, diz Nietzsche. O texto se chama “Das três metamorfoses”, e é o primeiro discurso de Zaratustra, no livro Assim falou Zaratustra. O camelo é a fase criança e juventude em que o espírito aceita o peso das tarefas do mundo. É a fase da conquista das coisas externas, da adaptação às provações, do desenvolvimento da coragem. Essa adaptação pode conduzir ao fortalecimento de capacidades internas, da vontade, que será a virtude do leão. Quando, todavia, o camelo se enche de fardos, marcha para o seu próprio deserto. E lá na sua solidão poderá se transformar em um leão. O leão é a fase da conquista da liberdade, para ser não mais o que o mundo quer (como o camelo), mas quem realmente se é. Essa rebeldia em relação mundo pode evoluir para uma rebelião psicológica em relação a si mesmo, pois o espírito quer usar a força do leão para opor “um sagrado não ao dever” de outrora. E isso significa enfrentar os inimigos, quebrar as correntes (regras sociais) e se liber da tirania do ego, e sabe que para isso terá de enfrentar o que antes teve que considerar o seu deus. Esse é o dragão com 3 mil escamas que o leão terá de matar para encontrar a liberdade, realizando a última metamorfose: tornar-se criança novamente, só que com a conquistada maturidade.

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As 4 estações da vida

Há quem diga que Pitágoras (ou os pitagóricos), organizava a vida de acordo com as 4 estações cíclicas: primavera, verão, outono e inverno que seriam correspondentes às 4 fases da vida — respectivamente: infância, juventude, maturidade e velhice. De acordo com essa visão:

  • Do nascimento até os 21 anos crescemos e amadurecemos fisicamente — é a primavera. A primavera como a infância é uma estação agradável, prazerosa; a floração da vida é sua principal característica. A energia vital está nas folhas e flores. O trabalho dos insetos na polinização dá o tom da intensa atividade dessa bela estação.
  • O verão corresponde dos 21 aos 42 anos, quando estamos em constante expansão e o máximo de vitalidade. O verão, com a sua exuberância, força, calor e as suas paixões, é quando as energias estão se direcionando para o futro.
  • Dos 42 anos 63 anos vem para nós o outono, onde os frutos amadurecem e observamos um leve declínio em nossas vidas externas, mas talvez um aumento na vida interna. Então, o fruto está maduro; é a estação da colheita e da preparação para o frio. É necessário estocar alimento. Nesse período o sol fica mais fraco e as folhas das árvores se vestem de um belo colorido como que a se despedir da vida pulsante… A energia regride para o caule e começa a se recolher em direção à terra.
  • Dos 63 em diante chega, então, o inverno, as árvores perdem suas folhas e as sementes caem no chão, esperando uma nova primavera. A energia se recolhe para a terra para então florescer em nova estação. Quando chega o frio, já não há mais folhas, flores e frutos; o vento gelado castiga a paisagem cinzenta. A natureza parece estar morrendo. Mas não…; a energia está na terra se renovando e se preparando para um novo ciclo.

Nesse sentido, faremos a seguir a complementação entre essas 3 visões (Pitágoras, Nietzsche e Jung). Vejamos:

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Infância primaveril: o espírito se torna camelo

A infância é tempo dos arquétipos do início da jornada, da criança e da sua relação com a mãe e o pai, do aprendiz e sua relação com o sábio, das brincadeiras, da alegria, da despreocupação; tempo de intensas atividades, que parecem não acabar nunca, em que pese as muitas coisas pesadas para o espírito que aporta ao mundo na infância.

Não é a toa que, ao inspirar o primeiro alento, expira-o com o primeiro choro… Tem que se adaptar a algo absolutamente novo… Saiu de um lugar interno para um lugar externo, de um estado de não respiração para o estado de respiração, de um estado de escuridão para a claridade, de calor para o frio, de acolhimento para exposição, da unidade com a mãe (porque habitava o mesmo corpo que ela) para a dualidade, e dessa dualidade à carência, o necessitar, o desejar… porque simplesmente, agora, o espírito está fora do seu próprio eixo…

Por isso torna-se um camelo: para ser capaz de carregar o grande peso do mundo que é o preço a ser pago pela conquista da consciência. O espírito-criança, ao transformar-se na besta de carga (o camelo), ajoelha-se como o camelo e, cheio de carga, apressa-se em direção ao deserto.

Logo após o nascimento, há muita inconsciência. A primeira forma de consciência é um estado anárquico ou caótico que consiste em um mero conhecer. E até o término da primeira infância (os 3 anos), a consciência ainda está inteiramente ligada à percepção de algumas conexões e, por isto, é puramente esporádica e seu conteúdo é dificilmente lembrado posteriormente, pois não existe uma memória contínua dos primeiros anos de vida. Quando muito, o que existe são ilhas de consciência, que são como luzes isoladas ou objetos iluminados dentro da noite imensa. Mas estas ilhas de memórias não são aquelas conexões mais antigas que foram apenas percebidas; elas contêm uma nova série muito importante de conteúdos, isto é, aqueles conteúdos que pertencem ao próprio sujeito percipiente, o chamado ego.

O segundo estágio, da identidade do ego desenvolvido, é uma fase monárquica que é apenas percebida, como as séries originais de conteúdos, e é por esta razão que a criança, quando começa a falar de si própria, o faz na terceira pessoa.

Só mais tarde, quando a série de conteúdos do eu ou o chamado complexo do eu, adquire energia própria — provavelmente como resultado da repetição — é que surge o sentimento da subjetividade ou da egoicidade. Esse é o terceiro estágio, que traz consigo de novo um avanço da consciência, ou seja, a consciência de um estado de divisão ou de dualidade. Este é, provavelmente, o momento em que a criança começa a falar de si na primeira pessoa. Provavelmente é nesse estágio que tem início a continuidade da memória. Essencialmente ela seria, portanto, uma continuidade das reminiscências do eu.

Ao chegar à idade escolar, a criança começa a fase de estruturação do seu ego e adaptação ao mundo exterior. O temido primeiro dia na escola, a dor resultante do ataque de outra criança. Essa fase traz, em geral, um bom número de choques e embates dolorosos. A consciência do ego — a superfície da psique — está sujeita a perturbações e reações emocionais que são criadas por colisões entre o indivíduo e o ambiente externo.

Se essas colisões entre a psique e o mundo têm uma função positiva, isto é, se não forem excessivamente severas, tendem a estimular o desenvolvimento do ego porque exigem maior capacidade de concentração e isso leva, em última instância, a uma competência mais pronunciada para resolver problemas e à maior autonomia individual.

O ego cresce através de muitas dessas vigorosas interações com o mundo. Perigos, atrações, contrariedades, ameaças e frustrações causados por outras pessoas e vários fatores ambientais, tudo isso gera um certo nível de energia concentrada na consciência, e o ego é mobilizado para lidar com esses aspectos das incursões do mundo. Todavia, existem, outras perturbações com uma função negativa, isto é, mais severas geradas na própria história específica da vida de uma pessoa.

Quase todas as crianças iniciam a escolaridade entre os três e os seis anos de idade, então, conhecem por experiência própria o mesmo estresse dos exames e o trauma dos fracassos e humilhações. Alguns complexos se formam ali. São, sobretudo, produtos de experiência — traumas, interações sociais e padrões familiares, condicionamento cultural — que se combinam com alguns elementos inatos, a que Jung deu o nome de imagens arquetípicas, para formar o conjunto do complexo em seu todo. Os complexos são o que permanece na psique depois que ela digeriu a experiência e a reconstituiu em objetos internos. Ao mesmo tempo, algumas crianças nessa época começam a se sentir diferente das outras, e esse sentimento acarreta uma certa tristeza, que vai embalar a solidão de muitos jovens.

Assim como o camelo que aceita tudo o que lhe é imposto, no estágio infantil da consciência, ainda não há problemas para a criança; nada depende dela própria, porque a própria criança (e tudo dela) ainda depende inteiramente dos pais, e se acha mergulhada na atmosfera dos pais. Normalmente, a criança ainda não tem nenhum problema pessoal, mas sua complexa psique constitui um problema de primeira grandeza para seus pais, educadores e médicos. Só o ser humano adulto, responsável, é capaz de ter dúvidas a seu próprio respeito e discordar de si mesmo.

Os problemas só começam quando se sabe que as coisas dependem de si mesmo (o sujeito), e não mais dos outros (os pais). Aí há dúvidas a seu próprio respeito e discordância de si mesmo. Os problemas nascem com a responsabilidade. Por isso, o nascimento psíquico e, com ele, a diferenciação consciente em relação aos pais só ocorrem na puberdade, com a irrupção da sexualidade. A mudança fisiológica é acompanhada também de uma revolução espiritual. Isto é, as várias manifestações corporais acentuam de tal maneira o eu, que este freqüentemente se impõe desmedidamente. Daí “os anos difíceis”, nome que se dá à adolescência. É como se o camelo sinalizasse nesse momento que quer virar leão. Só que não… Veremos mais à frente como esse problema será postergado, para que o/a adolescente continue sendo camelo por mais um tempo pelo menos durante a sua juventude…

Até a puberdade, a vida psicológica do indivíduo é governada basicamente pelos instintos e por isto não conhece nenhum problema. Com a consciência vem também a responsabilidade e, como o camelo, o pré-jovem se submete ou as evita, em total harmonia consigo próprio. Ele ainda não pode ser responsável, como o leão, que conhece o estado de divisão interior, induzido pelos problemas.

Lembremos que só o ser humano adulto, responsável, é capaz de ter dúvidas a seu próprio respeito quando se sabe que as coisas dependem só de si mesmo (o sujeito), e não mais dos outros (os pais). Assim, o pré-jovem ainda não possui a consciência dos problemas e, com eles, a capacidade de respondê-los sem a ajuda dos pais. Este estado só se inicia quando entra na juventude.

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A juventude calorosa e intensa do verão: e o camelo vai se transformando em leão

A juventude traz consigo novos arquétipos: o/a jovem, o/a amante, o/a guerreiro/a, o/a andarilho, a vivência da paternidade ou maternidade, etc. E o camelo nem sempre se apressa para o árido deserto, onde o sol da manhã a breve tempo estará a pino. Pois o tempo psicológico nem sempre segue o tempo biológico. O significado da manhã consiste indubitavelmente no desenvolvimento do indivíduo, em sua fixação e na propagação de sua espécie no mundo exterior, e no cuidado com a prole. É esta a finalidade manifesta da natureza, da biologia. Por isso o verão é mais intenso em hormônios e paixões.

Este estágio vai dos anos que se seguem à puberdade até o meio da vida, que se situa entre os trinta e cinco e os quarenta anos. Os problemas que surgem nesta fase da vida, para a imensa maioria das pessoas, são as exigências da vida adulta que interrompem bruscamente o sonho primaveril da infância. Se o indivíduo estiver suficientemente preparado, a passagem para uma atividade profissional pode efetuar-se de maneira suave. Mas se ele se agarra a ilusões que colidem com a realidade, certamente surgirão problemas. Sobre isso, Jung afirma:

Se procurarmos extrair os fatores comuns e essenciais da variedade quase inexaurível dos problemas individuais que encontramos no período da juventude, deparamo-nos com uma característica peculiar a todos os problemas desta fase da vida: um apego mais ou menos claro ao nível de consciência infantil, uma resistência às forças fatais existentes dentro e fora de nós e que procuram envolver-nos no mundo.

Alguma coisa dentro de nós quer permanecer como criança, quer permanecer inconsciente, ou, quando muito, consciente apenas do seu ego; quer rejeitar tudo o que lhe é estranho, ou então sujeitá-lo à sua própria vontade; não quer fazer nada, ou no máximo satisfazer sua ânsia de prazer ou de domínio. Há em tudo isto alguma coisa da inércia da matéria: é a persistência no estado anterior, cuja consciência é menor em seu alcance, mais estreita e mais egoísta do que a consciência da fase dualista, na qual o indivíduo se vê diante da necessidade de reconhecer e aceitar aquilo que é diferente e estranho como parte e como uma espécie de ego.

A resistência se dirige contra a ampliação do horizonte da vida, que é a característica essencial desta fase. Esta ampliação ou “diástole” começa muito antes com o nascimento, quando a criança sai dos estreitos limites do corpo da mãe, e aumenta incessantemente, até atingir o clímax no estado problemático. Esse é, por exemplo, o complexo Puer Aeternus, ou mais conhecido como complexo de Peter Pan, a criança que não quer crescer/amadurecer e para isso passou a viver na Terra do Nunca (uma metáfora para a escolha pelo comportamento eternamente infantil). Mas como solucionar esse conflito com a responsabilidade?

Segundo Jung, seria muito bom se a individuação pudesse ser iniciada já nesta segunda fase da vida. Só que não ocorre assim, a menos que haja um evento ativador (como uma catástrofe, um sofrimento, por exemplo, a morte de um ente querido). Na ausência desse ativador, o fluxo natural parece não ter a menor preocupação em alcançar um nível superior de consciência. Pelo contrário, é o indivíduo que deve se esforçar por si mesmo, em que pese a própria sociedade não dar valor a tais proezas; pois ela confere seus prêmios, em primeiro lugar, sempre ao feito exterior, e não ao feito interior do desenvolvimento da personalidade plena. Por isso é muito raro a individuação começar na juventude, pois são capacidades inerentes somente ao leão maduro (da tarde de outono). E esse fato nos obriga a uma adaptação temporária, que é possível de ser alcançada. Por outro lado isso irá nos ajudar no desenvolvimento das capacidades do leão, e é aqui onde se revela a verdadeira natureza do indivíduo socialmente eficaz.

Ser útil socialmente constitui uma das atitudes fundamentais da cosmovisão (de todas as grandes religiões) que parecem nos apontar o caminho que nos permite sair dessa confusão dos estados problemáticos. Todas as religiões e mitologias falam de renúncia e sacrifício. Assim, elas são como estrelas que nos guiam na aventura de ampliação e consolidação de nossa existência física; ajudam-nos a fixar nossas raízes neste mundo. No período da juventude, todavia, este é o procedimento normal de decisão e, em quaisquer circunstâncias, é preferível a deixar-se simplesmente ficar mergulhado em problemas.

Esta dificuldade se resolve, portanto, adaptando-se tudo o que nos foi dado pelo passado (o peso colocado no camelo) às possibilidades e exigências do futuro (a iniciação nas responsabilidades do leão). Limitamo-nos ao que é possível alcançar, e isto significa, psicologicamente falando, correr o risco de renunciar a todas as outras nossas potencialidades psíquicas: um perde uma parte preciosa de seu passado (o leão que sacrifica a criança e o camelo), e outro um pedaço precioso de seu futuro (o camelo que não desenvolve a vontade do leão).

Considera Jung, a partir de suas observações clínicas, que, se não houver uma clara orientação no sistema de valores do camelo, que o faça sacrificar a criança em benefício do leão que deve se tornar, essa fase poderá não ser superada, trazendo sérios prejuízos à alma. Ou seja, segundo Jung, continuar querendo ser camelo quando já é tempo de tornar-se leão tem um preço para a própria alma. Quem estende assim a lei do manhã (do camelo), isto é, o objetivo da natureza, até à tarde da vida (quando é tempo de ser leão), sem necessidade, acaba pagando este procedimento com danos à sua alma, justamente como um jovem que procura estender o seu egoísmo infantil até à idade adulta, e por isso irá sofrer os reveses de saúde mental.

Mas superada essa fase, o camelo agora se apressa para o deserto onde o sol da manhã já está a pino. Isto é, o significado da manhã consiste indubitavelmente no desenvolvimento do indivíduo, em sua fixação e na propagação de sua espécie no mundo exterior, e no cuidado com a prole. É esta a finalidade manifesta da natureza. Mas quando se alcançou — e se alcançou em abundância — este objetivo, a busca do dinheiro, a ampliação das conquistas e a expansão da existência, para além dos limites do razoável e do sensato, não faz mais sentido. A preocupação em ganhar dinheiro, a existência social, a família, o cuidado com a prole são meras decorrências da natureza, preocupações da manhã e não da tarde. A alma se situa para além da esfera dos objetivos da natureza.

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Outono da Meia-idade: o chamado interno para enfrentar o dragão!

Novos arquétipos entram na cena nessa fase da vida: o rei ou a rainha de cabelos grisalhos, a conquista da sabedoria iluminda pela experiência e a reflexão consciente (a lâmpada) do heremita, capaz de obter justiça e equilíbrio interno, mental-emocinoal, viver no mundo sem ser do mundo, isto é, sem cair na identificação com a roda da fortuna, ser capaz de enfrentar o enigma da morte e desenvolver com isso a temperança. Enfim, preparando-se para encarar na próxima fase (da velhice) os demônios internos, as sombras e as noites escuras da alma, rumo à integração da psíque e realização da grande obra psicológica. Nesse momento a torre do ego é fulminada para facilitar a ativação do Self, de modo a que se dê a integração da. psique consciente com a sua polaridade oposta: a inconsciente.

E esse é o ambiente desértico do nosso leão, que é aquele camelo que atravessou com êxito a segunda transformação. Na extrema solidão do deserto, ocorreu a segunda metamorfose. O espírito [transformado em camelo, agora] se torna leão”, e prepara-se para a terceira transformação. E se o camelo buscava conquistar o mundo, agora, esse leão pretende conquistar a si mesmo, a sua verdadeira liberdade, e ser o rei de seu próprio deserto. Procura então seu último senhor, e para se libertar dele e sair vencedor deverá lutar com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar senhor nem Deus? “Tu deves”, assim se chama o grande dragão. Em cada uma de suas escamas brilha em letras douradas “Tu deves!”. Mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. Estabelece-se então o grande conflito. Diz Nietzche:

“Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não bastará a besta de carga que se resigna e respeita? Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode, mas criar a liberdade para criar novamente, isso pode fazer a força do leão. Para criar a própria liberdade e dizer um sagrado não, mesmo perante o dever, para isso, meus irmãos, é preciso o leão. Conquistar o direito de novos valores é a tarefa mais terrível para um espírito dócil e respeitoso. Para ele, na verdade, isto é uma rapina e coisa própria de um animal de rapina. Como seu bem mais sagrado ele amava outrora o ‘Tu deves’. Mesmo no que há de mais sagrado deverá encontrar apenas ilusão e arbitrariedade, se quiser arrancar à custa de seu amor sua liberdade. É preciso ser um leão para essa violência.”

O dragão é a mesma Esfinge com a qual se confrontou Édipo… A esfinge simboliza o convite do outono ao processo de individuação. A existência destroça a psique em pedaços para que, motivada pelo enigma da esfinge, ajuntemos os cacos e enxerguemos o nexo significatório entre os eventos que ocorreram nas diferntes fases da vida. Ela nos pergunta: “o que é que de manhã tem quatro patas, de tarde tem duas e de noite tem três?” E a resposta: “Nós, seres humanos”, como respondeu Édipo. “Ele engatinha quando criança, caminha quando é adulto e precisa de uma bengala assim que envelhece”. Jung considera que a esfinge, assim como o dragão, pode ser um símbolo do grande enigma da morte. Se somos capazes de resolver o mistério da vida, viveríamos eternamente, mas já que não podemos resolver o enigma da esfinge, ela nos devorará.

O dragão e a esfinge representam assim o ego, em seu aspecto que agora deve ser subjugado, tornando-o passivo/dócil ao Self que deve emergir no cenário interno antes da velhice. Nesse sentido, podemos dizer que o dragão é o ego empoderado por nossas resistências e medos de morrer para o velho, e se abrir para o novo, um espaço para o desenvolvimento na perspectiva do Self, com enriquecimento de significado.

Enfim, tanto na cosmovisão oriental como na ocidental, cultiva-se a ideia de que o grande desafio da vida é morrer em vida (fazendo referência à morte simbólica ou psicológica, como Paulo de Tarso considera em Gálatas (2:20): “Morro todos os dias, e é por isso que eu vivo, mas não sou eu que vivo, é o Cristo que vive em mim”. O Self na mitologia cristã é simbolizado como o Cristo Íntimo que todos potencialmente guardamos dentro nós como semente. O deus interno de cada um. E para morrer simbolicamente é necessário desapego e libertação de tudo. O que não significa se tornar indiferente, infeliz, pesado, mau humorado e sisudo… Pelo contrário: viver o presente e amar sem apego, incondicionalmente, e não só os familiares e amigos mas a expressão da vida como um todo, incluindo os animais e a natureza como um todo.

Desse modo, comumente é consagrada a essa etapa da vida, a meia-idade, o início do processo de individuação. Nesse sentido, Jung notou que a depressão atinge mais frequentemente pessoas na casa dos quarenta anos, em que pese hoje isso esteja ocorrendo cada vez mais cedo. Nas mulheres, as dificuldades começam geralmente um pouco mais cedo. Por isso, Jung observou que nesta fase prepara-se essa mudança muito importante, inicialmente modesta e despercebida que parece começar no inconsciente. Muitas vezes é como que uma espécie de mudança lenta do caráter da pessoa; outras vezes são traços desaparecidos desde a infância que voltam à tona; às vezes também antigas inclinações e interesses habituais que começam a diminuir e são substituídos por novos.

Se for aproveitada progressivamente e positivamente essa fase, a transformação levará ao despertar da consciência sobre o Self, podendo vivenciar a experiência com sofrimento e/ou alegria, dependendo do tipo de vida que se vivencia. A finalidade desse processo é a integração psicológica da psique fragmentada, dos opostos, o que é vital para a conquista do equilíbrio e do auto aperfeiçoamento. O caminho individuacionante a ser percorrido envolve o autoconhecimento, a auto-aceitação e a autorealização.

Por fim, o leão, que vai encarar o dragão; se for bem sucedido na batalha, transformar-se-á em criança novamente. A criança é inocência, esquecimento, um recomeço, um brinquedo, uma roda que gira por si só, movimento primeiro, ação lacônica do Ser. Esse é o mindset flexível e expansivo. Ao passo que também existe a situação inversa e regressiva — o mindset rígido e fixo, e isto se dá com muita freqüência — que ocorrem em casos em que as convicções e os princípios que os nortearam a pessoa até então, principalmente os de ordem moral, começam a endurecer-se e enrijecer-se, o que pode levá-los, crescentemente, a uma posição de fanatismo e intolerância, que culmina por volta dos cinqüenta anos. É como se a existência destes princípios estivesse ameaçada, e, por esta razão, se tornasse mais necessário ainda enfatizá-los. Esse é o mindset rígido e fixo. Nas palavras de Jung:

“O vinho da juventude nem sempre se clarifica com o avançar dos anos; muitas vezes até mesmo se turva. É nos indivíduos de mentalidade unilateral em que melhor se podem observar os fenômenos acima mencionados, muitos dos quais se manifestam ora mais cedo, ora mais tardiamente. Parece-me que o retardamento desta manifestação é ocasionado, freqüentemente, pelo fato de os pais dos indivíduos em questão ainda estarem em vida. É como se a fase da juventude se prolongasse indevidamente. Tenho observado isto especialmente em pessoas cujo pai era de idade avançada. A morte do pai provoca então como que um amadurecimento precipitado e, diríamos, quase catastrófico.”

Jung assinala que o neurótico é, antes, alguém que jamais consegue que as coisas corram para ele como gostaria que fossem no momento presente, e, por isto, não é capaz de se alegrar com o passado. Incapaz desse contentamento, da mesma forma como antigamente ele não se libertou da infância, assim também agora se mostra incapaz de renunciar à juventude. Teme os pensamentos sombrios da velhice que se aproxima, e como a perspectiva do futuro lhe parece insuportável, ele se volta desesperadamente para o passado. Da mesma forma que o indivíduo preso à infância recua apavorado diante da incógnita do mundo e da existência humana, assim também o homem adulto recua assustado diante da segunda metade da vida, como se o aguardassem tarefas desconhecidas e perigosas, ou como se sentisse ameaçado por sacrifícios e perdas que ele não teria condições de assumir, ou ainda como se a existência que ele levara até agora lhe parecesse tão bela e tão preciosa, que ele já não seria capaz de passar sem ela.

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O inverno da velhice: tornar-se a criança novamente

Os arquétipos dessa fase são: o heremita que se volta para seu centro interior, o ancião que simboliza a expressão viva da sabedoria iluminada pela experiência, a esperança no porvir, o sol, que simboliza a plenitude e a força dos opostos integrados, o julgamento e a ressurreição espiritual enquanto perspectiva otimista e superior da realidade, capaz de manter a esperança na posteridade. Por fim, a grande obra realizada.

Se bem viveu e foi bem sucedido em sua batalha contra o dragão; o leão transformou-se em criança novamente. A velhice assim pode ser inocência, esquecimento, um recomeço, um brinquedo, uma roda que gira por si só, movimento primeiro, ação lacônica do Ser.

Jung admite que não sabe até onde esta confusão (retorno ao passado e medo do futuro) é uma reação contra o exagero da perda de dignidade atribuída aos velhos, nem até que ponto é consequência de falsos ideais ou carência de significado. Estes ideais existem, sem dúvida alguma, e o objetivo daqueles que os cultivam tais ideiais situa-se no passado e não no futuro. Por isto eles procuram sempre voltar atrás.

É difícil entender que a segunda metade da vida oferece uma proposta diferente daquela da primeira metade? Fazem parte dessa proposta objetivos como: expansão dos horizontes de vida segundo uma perspectiva superior da realidade, ser útil ao entorno, ter mais eficiência já que se tem menos energia, construção de uma boa reputação e estrutura social, se cuidar, de aconchegar-se mais aos amores que estão próximos, ajudar os filhos em seus desafios profissionais e de casamento (ou os netos); auxilio e participação ativa na vida dos netos, trabalho voluntário, compartilhar sabedoria, espiritualização, doação incondicional e aproveitar o tempo de fazer despedidas… etc. — enfim, não são objetivos suficientes?

Infelizmente não, para um número cada vez maior. Nem têm sentido tais objetivos para muitos que não vêem na aproximação da velhice senão uma diminuição da vida. Jung considera que se tais pessoas tivessem enchido, já antes, no verão e no outono os seus cestos de frutos, ou a taça da vida até transbordar, e a tivessem esvaziado até à última gota, certamente seus sentimentos agora seriam outros e estariam mais preparados para “jejuar”; teriam comido tudo e não teriam reservado nada para esse momento a não ser a aceitação do fluxo da energia em direção à terra, e a quietude da velhice seria bem-vinda como fonte de renovação.

Mas só bem pouquíssimas pessoas são artistas da vida, e a arte de viver é a mais sublime e a mais rara de todas as artes. Quem jamais conseguiu esvaziar o cálice todo com elegância e beleza? Assim, quantas coisas na vida não foram vividas por muitas pessoas — muitas vezes até mesmo potencialidades que elas não puderam satisfazer, apesar de toda a sua boa vontade — e assim se aproximam do limiar da velhice com aspirações e desejos irrealizados que automaticamente desviam o seu olhar para o passado.

Como no mito da esposa de Ló, é particularmente fatal para estas pessoas olharem para trás. Para elas, seriam absolutamente necessários uma perspectiva e um objetivo fixado no futuro. Considera Jung que, é por isto que todas as cosmovisões das grandes religiões podem ser consideradas perspectivas superiories da realidade, pois prometem uma vida pós-morte, um objetivo supra-mundano que permite à pessoa mortal viver a segunda metade da vida com o mesmo ou até maior otimismo, empenho e esperança com que viveu a primeira. Mas, se a expansão da vida e a sua culminação são objetivos plausíveis para o homem de hoje, a ideia de uma continuação da vida depois da morte lhe parece cada vez mais questionável, quando não de todo inacreditável. O que fazer então?

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Espiritualidade

É digno de nota que, para Jung, a cessação da vida só pode ser aceita como uma perspectiva superior da realidade. Outro objetivo razoável seria considerar a vida como uma desgraça, a ponto de só termos de nos alegrar quando ela chega ao fim (o que pode levar ao suicídio). Melhor que isso é estarmos convencidos de que o Sol (o espírito) deve se pôr aqui nessa terra (nessa vida) para iluminar outros povos em terras distantes (numa outra vida que não essa), com a mesma conseqüência psicológica que o embala ao ascender para o zênite (a busca do camelo para conquistar o mundo). Mas, segundo Jung, acreditar tornou-se uma arte tão difícil, hoje em dia, que está praticamente fora da capacidade da maioria das pessoas e, especialmente, da parte culta da humanidade.

Para muito além do intelecto, e isto é claro nas mitologias, há também as imagens primordiais, os símbolos arquetípicos, que são mais antigos do que o homem histórico e nascidos com ele desde os tempos mais antigos e, eternamente vivos, sobrevivem a todas as gerações e constituem os fundamentos da nossa alma. Só é possível viver a vida em plenitude, quando estamos em harmonia com estes símbolos, arquétipos, e voltar a eles é sabedoria. Na realidade, não se trata nem de fé nem de conhecimento, mas da concordância de nosso pensamento com as imagens primordiais do inconsciente que são as matrizes de qualquer pensamento que nossa consciência seja capaz de cogitar. E um destes pensamentos primordiais é a idéia de uma vida depois da morte.

Jung dizia a alguns de seus pacientes mais idosos: “Sua imagem de Deus ou sua ideia de imortalidade atrofiou-se, e, consequentemente, o seu metabolismo psíquico caiu fora dos eixos. O antigo remédio da imortalidade, era mais profundo e mais significativo do que imaginávamos”.

Além das fases da vida descritas acima, como recurso ao trabalho autobiográfico, a trajetória de vida pode ser dividida em septênios (ciclos de 7 anos).

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Septênios de Rudolph Steiner

A ideia dos septênios como fases da vida foi desenvolvida por Rudolf Steiner, um filósofo, educador e esotérico austríaco do século XX. Ele propôs que a vida humana pode ser dividida em sete períodos de aproximadamente sete anos cada, com cada período apresentando desafios e desenvolvimentos específicos. Essa teoria está relacionada à antroposofia, uma filosofia espiritual que Steiner fundou. Os septênios são frequentemente usados como uma abordagem para compreender o desenvolvimento humano ao longo da vida.

A intenção a seguir é fornecer um guia, que não necessariamente precisa ser totalmente aplicável a todos os casos. É um guia geral com as suas limitações de especificidades. Vejamos:

  • 1o septênio (0 a 7 anos): no momento do nascimento, somos produto hereditário de nossos pais. Fisicamente, o primeiro septênio caracteriza-se pela troca de todas as células herdadas por células individualizadas produzidas pela própria pessoa. Psicologicamente e biologicamente, caracteriza-se pela expressão dos arquétipos da criança, da relação de afeto e dependência junto aos arquétipos da mãe e do pai, da relação com o arquétipo do irmão e/ou irmã, da relação com o arquétipo do sábio (professor ou professora maternal), da relação com os as brincadeiras e os objetos preferidos de utilização.
  • 2o septênio (7 a 14 anos): emancipando-se da vida puramente corporal, as energias infantis reaparecem metamorfoseadas em boa memória, curiosidade, imaginação, prazer e fantasia. O pensamento da criança desta fase é nascido mais das energias da emoção do que do intelecto; é um sentir que pensa. Este pensar é, portanto, ainda muito diferente do pensar analítico e especulativo do adulto. Psicologicamente e biologicamente essa fase é guiada pelos arquétipos da juventude e o seu florescimento e do início da transformação ou revolução psicológica e biológica da puberdade.
  • 3o septênio (14 a 21 anos): nesta fase o adolescente pode-se deixar arrastar pela vontade, pelo sentir ou por um querer excessivo que muitas vezes descamba para a agressividade. Aqui está a base da vida emotiva pessoal, em que a vida se torna assunto próprio e interrogação individual sobre tudo que existe. Os arquétipos que guiam esse desenvolvimento são os arquétipos do/a amante e do guerreiro ou guerreira. A rebeldia é marcante nessa fase.
  • 4o septênio (21 a 28 anos): é a fase da aceitação das regras do mundo, na qual disciplinamos até certo ponto a vontade para testarmos nossos limites e começamos a lutar pelos nossos objetivos pessoais de modo a construir uma identidade social e um reconhecimento equivalente. Inicia-se a estruturação da vida. Caso se tenha casado, vive-se o arquétipo do marido e da esposa. Caso se tenha filhos, expressa-se os arquétipos do pai ou da mãe.
  • 5o septênio (28 a 35 anos): na fase anterior iniciamos essa jornada de estabelecimento no mundo. Nessa, agora, buscamos controlar mais as rédeas de nossas emoções e impulsos por meio da razão, e começamos a ponderar antes de tomar decisões. Torna-se o leão ou leonina. Fase de consolidação e estabelecimento da vida — crescimento na carreira, casamento, ter filhos, ganhar dinheiro. Arquetipicamente, consolida-se os arquétipos da fase anterior e guia-se também pela busca do estabelecimento do equilíbrio nas diferentes dimensões da vida.
  • 6o septênio (35 a 42 anos): se não houve regressão às fases anteriores, essa é a fase da consciência. Hora de se voltar um pouco para dentro e fazer um balanço da vida para determinar o que continua e o que deve ser modificado. Estou feliz com o que faço? Estou satisfeito com o que construí? Qual o sentido da vida? Estou no caminho da minha autorealização? Psicologicamente essa fase é guiada pelo arquétipo do eremita, que se volta mais para dentro em busca de respostas para uma interação mais consciente com as pessoas e o mundo.
  • 7o septênio (42 a 49 anos): se não houve regressão às fases anteriores, nessa fase, a prioridade é ser autêntico e fazer escolhas baseadas no que realmente é importante para si mesmo, estar a serviço da própria causa, do que realmente importa. Os arquétipos que guiam essa fase são o do apóstolo e o da ego-transcendência (o leão que precisa ser domado por uma força superior), que significa servir a uma causa superior, isto é, uma que se ame até mais do que se ama a identidade que se construiu ao longo dessa jornada.
  • 8o septênio (49 a 56 anos): se não houve uma regressão às fases e arquétipos anteriores, essa fase pode ser guiada pelo arquétipo do/a sábio/a. permitido pela maturidade de se enxergar problemas de vários pontos de vista. Essa fase aceita que “muitos caminhos levam a Roma”. Aceita a si mesmo e deixa as pessoas serem quem elas querem ser.
  • 9o setênio (56 a 63 anos): a obra de vida está em conclusão ou está pronta, Mais de dois terços das obras da humanidade que resistiram ao tempo foram criadas por pessoas acima dos 60 anos… Preparar-se para a despedida. Entra em cena o arquétipo do sábio ancião coroado pelos seus cabelos brancos. Renova-se também o arquétipo da criança.

Por fim, após esta exposição, chega o momento de praticar… Como sugestão, escreva a sua autobiografia livremente, com base na primeira pergunta feita a si mesmo: qual a jornada que me trouxe até aqui? Como tenho vivido cada fase da minha vida, cada estação, cada arquétipo, cada septênio até o presente momento? E qual o desafio mais importante que vivo atualmente?

Depois, com as 8 questões seguintes você poderá juntar os pontos (da sua tigela psíquica quebrada), passar “laca” e “ouro” para então transformá-la em algo superior.

Sugerimos que faça isso com uma ideia poderosa em mente: a de que não é relevante agora procurar a causa, o “por quê”, de a nossa tigela ter se quebrada em muitos pedaços… O foco deve ser, sobretudo, em responder à pergunta “para quê” ela se quebrou e “o que” posso fazer com isso… Sem dúvida, foi para tornar a sua tigela superior, uma mais alta possibilidade, mais bela, consciente, mais significativa, plena e total.

Boa sorte!

Referências Bibliográficas

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BUÑUEL, Luis. 1998. Mi último suspiro. Barcelona: Plaza & Janés Editores.

JUNG, Carl G. A Natureza da Psique 8/2. In: Obra Completa de C. G. Jung, vol. IX/1. 24a ed. Petrópolis: Vozes, 2014B).

__________. Psicologia do inconsciente, São Paulo, Editora Vozes, 1984.

__________. A energia Psíquica 8/1. In: Obra Completa de C. G. Jung, vol. VII/2. 24a ed. Petrópolis: Vozes, 2014A).

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.

VON FRANZ, M-L. O processo de individuação. In: O Homem e seus Símbolos. 2. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2021.

STEIN, Murray. Jung — O Mapa da alma. SP: Cutrix, 2000.

__________. Jung — E o caminho da individuação. SP: Cutrix, 2020.

STEINBERG, Warren. Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana. SP: Cultrix, 1995.

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André Coimbra Felix Cardoso

Professor da UFSCar, Coordenador do MBI UFSCar e Self Innovation Designer