Ceia Online. Montagem da “Última Ceia” (DaVinci) de autor desconhecido, aplicada em foto de Alex Knight por Dalmer Ordontis.

Com o desejo ardente de estarmos juntos! — Como celebraremos a Eucaristia em tempos de pandemia? [Pt. 1]

André Pereira
10 min readApr 4, 2020

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Este é o segundo de um conjunto de textos na questão “Como celebraremos a Eucaristia em tempos de pandemia?. No primeiro, esclareço o tom em que escrevo, presto os devidos agradecimentos e apresento a estrutura do conjunto. Se você quiser, ele está aqui.

Esta primeira parte argumentativa trata do aspecto presencial da reunião solene da Ekklesia. Lida com a objeção de que somente através da reunião física (presencial) podemos constituir e participar da Assembléiatermo usado aqui como o povo de Deus reunido para momentos solenes, e não outras reuniões administrativas e/ou de ensino, lazer, etc. Contra estas objeções, defende que é possível participarmos do culto e da ceia online, embora tenhamos prejuízos em relação ao presencial. Nesta direção, destaco abaixo o sentimento envolvido e alguns argumentos. Desde já deixo agradecimento especial ao amigo Lucas Cancella pela discussão dos termos e construções em grego.

Pensando em como e porquê celebraremos a Ceia, é essencial destacar que a celebraremos no desejo ardente de estarmos presencialmente reunidos. Quando os apóstolos escreviam suas cartas, expressavam o desejo de estar corporalmente com os irmãos: “Tenho saudade de todos vocês, com a profunda afeição de Cristo!” (Fp 1:8). É assim que me sinto em relação ao encontro presencial com meus irmãos e irmãs! Não vejo a hora de abraçar todo mundo!

É nesta intenção que temos celebrado o culto com a transmissão pela internet. Não o fazemos como um substituto. Não seria possível. Não fazemos acreditando que é tão bom quanto estarmos todos no mesmo local. Obviamente não é! Somos seres com corpo, qualquer atividade presencial terá sua particularidade. Uma boa ligação, ainda que seja uma vídeo-chamada, não substitui um bom café. Posso estudar online com um professor, mas com certeza teríamos outro aproveitamento se pudéssemos estar todos no mesmo lugar!

Como cristão, quero comunhão real e plena (incluindo a física) com o maior número de irmãos e irmãs que puder! Era assim com Paulo e os apóstolos. É o que vislumbramos na consumação, no Novo Céu e Nova Terra: “todas as nações, tribos, povos e línguas, de pé, diante do trono e do Cordeiro” (Ap. 7:9). Este dia chegará — um ao fim da pandemia e outro na Consumação — mas, até lá, cultuamos, ansiando por este tempo!

Assim, é claro que, ao participar de um culto online, perdemos muito. Somos seres corporais. Mas destaco o verbo participar. É possível participarmos. Entendo a crise com os termos transmitir e assistir, que denotam uma passividade. A crise está correta! A ideia é participarmos do culto! Cultuarmos com irmãos e irmãs. Isto pode ser feito online? Creio que sim. Com prejuízos, mas sim! Esboço três razões abaixo.

Em primeiro lugar, porque [1.1] a presença física não garante a participação adequada. O próprio Paulo coloca em 1Co. 11, texto clássico da Ceia: “Quando vocês se reúnem, não é para comer a ceia do Senhor” (v. 20). A reunião presencial não é suficiente. Provavelmente todos já estivemos só “de corpo presente”, distraídos ou entendiados em uma aula ou palestra chata. Talvez, ansioso ou preocupado com algo, você já tenha estado presencialmente no prédio de uma igreja no momento de adoração. Eventuais não cristãos que estejam em nossos cultos nem por isto estão adorando! A reunião presencial não é suficiente para adoração ou a Ceia. É necessária, de maneira completamente inflexível?

Esta é uma questão mais difícil. A resposta imediata é que sim, obviamente é. O texto de 1Co. 11 fala várias no termo reunir. O que quero apresentar agora é a possibilidade de participar da reunião sem a presença física, ainda que desejando tê-la. Em segundo lugar, [1.2] o mesmo apóstolo Paulo, que desejava estar presencialmente com a comunidade, afirmou por duas vezes que “embora esteja fisicamente ausente, estou presente com vocês em espírito” (Cl. 2:5 e 1Co. 5:3).

Evidentemente, esta não é uma afirmação simples. Como isso ocorre? Há quem defenda que se trate de uma presença tão real que Paulo fala em vê-los e se alegrar em perceber seu crescimento [nota 1]. Outros, como James Dunn, discordam quanto a pessoa real de Paulo estar presente, contrários a uma ideia próxima a de “projeção do espírito” que “escapou do corpo”:

Em nenhum dos casos há qualquer sugestão de que o πνεῦμα seja a pessoa real (que “escapou” do corpo); antes, que o único meio de comunhão com os Colossenses estava no reino do Espírito (daí um grau de ambiguidade entre o espírito humano e o Espírito divino). [nota 2]

Ainda que fiquemos com uma definição mais próxima a de Dunn (como é minha inclinação), o texto coloca base bíblica para falarmos de comunhão real não presencial, mediada pelo Espírito Santo. O que é natural, porque é o Espírito a base de toda comunhão. Olhe Efésios 4:3–6:

3. Façam todo o esforço para conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. 4. Há um só corpo e um só Espírito, assim como a esperança para a qual vocês foram chamados é uma só; 5. há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, 6. um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos.

Em última instância, a unidade e união do Corpo acontece pelo Espírito. Por meio do Espírito, nos juntamos a uma “grande nuvem de testemunhas” (Hb 12:1), que transcende não somente o espaço (como no caso de Paulo em relação aos Colossenses), mas também o tempo, na galeria dos heróis da fé. É neste sentido que Lucas pode escrever que “A igreja (Ekklesia, termo para a assembléia reunida) passava por um período de paz em toda a Judéia, Galiléia e Samaria. (…)” (Atos 9:31), i.e., em vários lugares ao mesmo tempo; e o autor de Hebreus fala que nos juntamos a comunhão celestial, a “igreja dos primogênitos” (Hb. 12:21–23). Em que sentido compreendemos nossa comunhão com a igreja invisível e a igreja vitoriosa, transcendendo geografia e história?

O que, afinal, constitui a Ekklesia? O que permite a participação na assembléia reunida solenemente?

Convido a olharmos agora para 1Coríntos 5. Neste texto, Paulo diz : “estando eu com vocês em espírito, estando presente também o poder de nosso Senhor Jesus Cristo, entreguem esse homem a Satanás, para que o corpo seja destruído, e seu espírito seja salvo no dia do Senhor” (v.4–5). De maneira similar a James Dunn faz no texto de Colossenses, Gordon Fee comenta sobre este texto:

[Paulo] está enfatizando o fato de que ele está realmente presente no Espírito, e é por isso que ele pode agir como ele. (…) ao dizer “quando vocês e meu espírito (Espírito?) estão reunidos, juntamente com o poder do Senhor Jesus”, Paulo não quer dizer que, de alguma maneira vaga, eles devam pensar nele como se ele estivesse realmente entre eles, embora não esteja. Antes, quando os coríntios estão reunidos, entende-se que o Espírito está presente entre eles (ver 3:16); e para Paulo isso significa que ele também está presente entre eles pelo mesmo Espírito. [nota 3]

Eu sei, o contexto é de disciplina, não de adoração ou de sacramento. Mas observe que, da mesma forma que a Ceia, a disciplina também pressupõe a reunião. Mateus 18 também considera a reunião da Ekklesia (v.17) como condição para a disciplina: “onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles” (v.19). Aqui o verbo é synagomai (συνάγομαι), do mesmo campo semântico do verbo synerchomai (συνέρχομαι) [nota 4], avaliado pelo professor João Paulo Thomaz de Aquino em 1Coríntios 11. Gramática e literariamente, os usos em Mt. 18 e 1Co 11 também são muito próximos. Se o ponto é a reunião e constituição da Ekklesia enquanto assembleia solene sob a autoridade de Cristo, o sentido é o mesmo (“ali estou eu no meio deles”, para “ligar ou desligar” terra e céus).

Historicamente, a disciplina eclesiástica não é considerada um sacramento. Mas é digno de se observar que, ao lado da ministração das Escrituras e dos Sacramentos, a disciplina Eclesiástica é uma das marcas de uma igreja verdadeira (Confissão Belga, Art. 29). Michael Horton coloca as três atividades dentro do ministério das Chaves do Reino [nota 5], o que faz muito sentido. A Palavra rege toda a vida da Igreja enquanto corpo de Cristo. O batismo insere a pessoa neste corpo, a ceia celebra a unidade do corpo e a disciplina zela pela saúde do corpo, podendo chegar a necessidade de excomungar, tirar do corpo. Nesta medida extrema (como é o caso em 1Co. 5), a disciplina é o oposto do batismo (um é o sinal visível para incluir no corpo, outro o sinal visível para excluir).

A reunião é necessária para para a Disciplina (Mt. 18) e para Ceia (1Co. 11). E, neste caso (1Co. 5), Paulo está reunido com eles em espírito, ausente fisicamente, junto do poder do Senhor Jesus, excluindo do corpo (disciplina) um irmão em prática imoral. Ele poderia estar espiritualmente presente para incluí-lo no corpo (batismo)? Não sei! Mas se o termo “reunir” é tão forte a ponto de ser inflexível em 1Co 11, por que não o é para Mt. 18?

Se Paulo pode estar espiritualmente reunido para disciplina de exclusão, participando da Ekklesia “remotamente”, temos precedente para considerarmos nos reunirmos espiritualmente em tempos de reclusão, para culto e ceia. Por que não poderíamos considerar válida a assembleia reunida online, quando estamos reunidos em torno da Palavra, participando de um mesmo momento, ?

Em última instância, a unidade e união do Corpo acontece pelo Espírito. Como meu amigo Lucas Gonçalves apontou, nós não estamos juntos por estarmos presencialmente reunidos. Estamos juntos por fazermos parte do mesmo corpo. Meu dedão do pé e meu ombro, mesmo distantes, não tentam estar juntos: eles estão juntos. O mesmo sangue que passa em um passa por outro. O mesmo Espírito.

[Acréscimo posterior: depois, J.K. Simith falou escreveu no twitter sobre “os tendões deste corpo estarem esticados por conta do isolamento”]

A própria Bíblia abre precedente para que a reunião e participação em momentos exclusivos da ekklesia não seja limitada a presença física — embora, como o próprio Paulo afirma, esta seria sua preferência! Assim, por que uma reunião não presencial — como, por exemplo, uma vídeo-chamada por Zoom restrita aos membros da igreja — deixaria de ser considerada uma reunião da Ekklesia?

Eu sei que é um exercício de suposição: mas você realmente acha que Paulo não usaria este recurso?

A ideia da presença espiritual me leva a uma última consideração sobre a natureza do aspecto presencial da ceia — retornarei a ideia do aspecto material dos alimentos, em outro texto (link aqui em breve). A ideia é: [1.3] A ceia não é sempre realizada já pressupondo uma ausência?

Conforme a explicação de Paulo em 1Co. 11: “sempre que comerem deste pão e beberem deste cálice, vocês anunciam a morte do Senhor até que ele venha” (v.26). Cremos que a presença espiritual de Cristo é real na Ceia, mas toda vez que participamos deste rito demonstramos também nossa confiança e desejo do momento em que estaremos fisicamente e presencialmente com Ele e com todo o povo de Deus.

Deste lado da eternidade, sempre celebramos a ceia com uma ausência física, a de Cristo. A Eucaristia será qualitativamente muito superior quando estivermos reunidos com ele, junto com toda a igreja global, na Consumação.

Será o grande banquete das bodas do Cordeiro! Na maravilhosa visão de Isaías, “um banquete de vinho envelhecido, com carnes suculentas e o melhor vinho” (Is. 25:7). O banquete do Pai que recebe seus filhos de volta (Lc. 15)! Um baquete com Jesus fisicamente presente, onde estaremos com irmãos e irmãs “de todas as nações, tribos, povos e línguas, de pé, diante do trono e do Cordeiro” (Ap. 7:9). É este o banquete que desejamos. É pra este banquete que a Eucaristia (também) aponta!

Se não podemos nos reunir presencialmente, mas há base bíblica para comunhão e até mesmo presença espiritual na assembléia (cf. visto acima), é interessante considerar a possibilidade de estarmos todos espiritualmente reunidos (conservando a unidade em “um só corpo e um só Espírito”, cf. Ef. 4) e celebrarmos a Eucaristia neste momento.

Talvez possamos falar de [1.3] uma gradação de presença/ausência: [a] Banquete do cordeiro (Jesus e a igreja reunidos fisicamente)! [b] Ceia (Jesus presente espiritualmente, igreja reunida fisicamente)! [c] Ceia-Online (Cristo e igreja reunidos espiritualmente).

A qualidade deles é comparável? Não. Todos expressam e/ou cultivam a comunhão final, na Consumação. Como estar namorando não é o mesmo que ser casado, e estar namorando à distância não é o mesmo de estar no mesmo local. Mas é ótimo poder contar com o recurso de uma video-chamada com a pessoa amada! Isso nos satisfaz? Não, como o namoro também não satisfaz. Fazemos isto no ardente desejo de estarmos juntos! Se possível, em breve casados! Se você já namorou a distância, me entendeu!

Esta primeira parte abordou o aspecto presencial da reunião solene da Ekklesia. Apoiado principalmente na possibilidade de uma participação não presencial na Ekklesia [1.2], defendi que é possível participarmos do culto e da ceia online, embora tenhamos prejuízos em relação ao presencial. É importante destacar que não existe uma “substituição plena” ou “desejável” aqui. Outros aspectos, como o contexto emocional da Eucarista e a materialidade dos elementos serão abordados em próximos textos.

Interações e contribuições, a favor ou contra, são bem vindas!

Obrigado por ler até aqui. Que Jesus te abençoe!

Notas:

[1] Arthur Patzia afirma que estou presente com vocês em Espírito “provavelmente quer dizer mais do que suas partes não-físicas, como pensamentos, coração ou mente. Ele está com eles por causa de sua fé comum em Cristo; estar em Cristo é estar no Espírito — o Espírito de Deus (Rom. 8:9ss). A presença espiritual de Paulo nessa congregação é tão real que ele realmente fala em vê-los. PATZIA, Arthur G. Ephesians, Colossians, Philemon, Understanding the Bible Commentary Series (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2011), p. 47.

[2] DUNN, James D.G. The Epistles to the Colossians and Philemon: A Comment on the Greek Text, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids, MI; Carlisle: William B. Eerdmans Publishing; Paternoster Press, 1996), p. 134, destaque acrescentado.

[3] FEE, Gordon. The First Epistle to the Corinthians, The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1987), 204–205, destaques acrescentados.

[4] LOUW, Johannes P. & NIDA, Eugene Albert. Léxico Grego-Português do Novo Testamento: Baseado em Domínios Semânticos. Tradução de Vilson Scholz. Barueri, SP : SBB, 2013, p. 179

[5] HORTON, Michael. Doutrinas da Fé Cristã. / Traduzido por João Paulo Thomaz de Aquino. São Paulo : Editora Cultura Cristã, 2016, p. 935–940.

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André Pereira

tentando aprender e aproveitar o que significa ser amigo, discípulo e servo de Jesus.