Por que o Futebol Moderno quer matar as Organizadas?

André Quintão
10 min readNov 2, 2015

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Hoje o futebol é, ideologicamente, dividido entre dois grandes grupos: os que apoiam o “Futebol Moderno” e os opostos, os com “Ódio Eterno ao Futebol Moderno”. Há quem diga pertencer a uma terceira via, ou seja, que se simpatizam com as festas das torcidas, mas apoiam a limitação da festa. No fim, esses acabam por defender a base ideológica do “Futebol Moderno”.

Ainda me lembro de em 2002 achar incrível os estádios da Copa do Mundo Japão/Coréia. Os tetos retráteis, os telões, as cadeiras… Tudo parecia de outro mundo. Sonhávamos que um dia o nosso time teria um estádio como aqueles. Parecia imponente. Parecia que o time ganhava um status de importância muito mais elevado do que o do outro.

Porém, tudo não passa de um jogo ilusório do que denominamos “Mercado”. Esse deus que deseja tudo e todos demorou para aparecer nos estádios tupiniquins. Mas, após aparecer, não quer mais sair.

Torcida do Liverpool

De onde vem o “Futebol Moderno”?

O “Futebol Moderno” surgiu na Inglaterra do século XX. Mais precisamente, na administração de Margareth Thatcher. Em 1979, quando assumiu o governo, as arquibancadas do futebol inglês eram habitadas pela classe operária do país.

Acontece que o governo da Dama de Ferro ficou marcado por uma série de ataques à classe trabalhadora. Direitos trabalhistas foram perdidos, sindicatos fechados e outras atrocidades. A cada ano que se passava, mais pesada ficava as mãos do Estado sobre os trabalhadores.

Para Thatcher, a mobilidade social causava o aumento da violência, do consumo de drogas e do terrorismo. Assim, ela passaria a tratar os problemas das torcidas da mesma forma como tratava o IRA.

A classe operária jamais se calou nos anos de seu governo. As manifestações e greves ficavam cada vez maiores, igual o apoio popular. Foi assim que as arquibancadas do futebol inglês, por iniciativa dos torcedores, se transformaram em espaços para amplificar a causa operária. Margareth Thatcher percebeu que as bancadas podiam ser o foco de uma rebelião e decidiu agir com pressa.

“Thatcher pregou a criminalização da torcida do futebol, enxergando-a apenas pelo prisma da ordem social, no mesmo momento em que declarou guerra aos sindicatos. Ela via os sindicatos como o inimigo interno. E os torcedores também se sentiam assim” Tim Vickery, jornalista da BBC

Então, para combater os torcedores operários, Thatcher passou a usar o “combate a violência nos estádios” como motivo para fechar o cerco contra a rebelião popular.

A Dama de Ferro elaborou uma “Identidade do Torcedor”. De acordo com a lei, somente a pessoa que estivesse de porte do documento teria acesso às partidas. O projeto não evoluiu, porque a tragédia de Hillsborough modificou seus planos para algo mais extremo.

A tragedia, que matou 96 pessoas, marcou uma nova ofensiva de Thatcher contra os torcedores. A polícia local definiu de imediato que a tragédia se deu por conta do comportamento dos hooligans — equivalentes a nossa torcida organizada. Margareth Thatcher defendia a investigação do caso mas, ao mesmo tempo, se apoiava na versão policial para justificar suas novas leis.

Surgia ali, no mesmo país que inventou o futebol, o Relatório Taylor. Para a galera do “Ódio Eterno ao Futebol Moderno” esse documento é como se fosse a certidão de óbito do futebol inglês. Ele definia que:

  • Todos os lugares seriam numerados;
  • Todos os setores teriam cadeiras — o que acabou com a tradição de assistir o jogo em pé;
  • O veto de estádios com uso de alambrados e fossos;

“Ficar em pé fazia parte do jogo desde que ele era um jogo. Acabar com isso, sem Hillsborough, era impensável. Para se ter uma ideia, a capacidade do estádio do Tottenham é de 35 mil, mas eu me lembro de 50 mil pessoas ali. O estádio está maior com capacidade menor. Em compensação, o preço do ingresso aumentou.” Tim Vickery

As consequências do Relatório Taylor é óbvia. Os ingressos aumentaram de preço, os hooligans foram sumindo dos estádios e a classe operária foi substituída pela burguesia. O futebol inglês foi o primeiro a ser capturado pelo “Mercado”.

Mesmo após a divulgação do relatório sobre o Desastre de Hillsborough, que comprovou que a culpa não foi dos torcedores e sim de falha do esquema de segurança da polícia, Thatcher não se redimiu. Hoje, ninguém se lembra mais desse relatório. Para o povo, a culpa de mortes no futebol continua sendo dos hooligans.

Margareth Thatcher faleceu em 2013. O futebol inglês continua rico e moderno. Porém, não por desejo dos seus torcedores. O Manchester United não realizou o minuto de silêncio em sua homenagem, o medo era de que os torcedores transformassem aquilo em um minuto de vaias.

O “Futebol Moderno” em solo brasileiro

Assim como na Inglaterra, o movimento do “Futebol Moderno” usou um desastre da arquibancada como alavanca inicial para os seus planos. Na Final da Copa João Havelange, cerca de 150 pessoas ficaram feridas após serem derrubadas — uma pela outra — das arquibancadas. Os relatos dos torcedores na época era que tudo começou com uma briga no meio da torcida.

A partir de então a imprensa brasileira passou a condenar organizadas e a enaltecer a forma como o esporte era dirigido pelos europeus — nessa época o “Futebol Moderno” já era praticado em diversos países de lá. A Copa do Mundo de 2002 também contou com um esforço para demonstrar a beleza e grandiosidade dos estádios que só um futebol moderno poderia proporcionar.

Porém, ao contrário da Inglaterra, o “Futebol Moderno” não se instalou de vez no país. Ainda hoje, 15 anos após a Final da João Havelange, ele ainda encontra resistências e dificuldades para se solidificar. O principal avanço veio após o anúncio de que o Brasil sediaria a Copa de 2014.

A Copa foi um salto — para baixo — para o Brasil. Os principais estádios foram transformados em “Arenas”. As Gerais foram destruídas e em seu lugar, foram colocadas cadeiras. Os lugares foram todos numerados , as faixas de torcidas limitadas a certos setores, as bandeiras, sinalizadores e papéis, proibidos. E, lógico, isso veio acompanhado do aumento dos ingressos.

Após a Copa de 2014, as torcidas enfrentam diariamente uma série de dificuldades para realizar a festa nas arquibancadas. Um sinalizador, por exemplo, pode gerar perda de mando para o clube.

Quem se beneficia com a modernidade?

“Ok. Você já falou desse tal de “Futebol Moderno. Mas onde você quer chegar com esse papo?”

Já te explico.

É interessante para os cartolas brasileiros fazer com que o futebol dê lucro. Foram vários anos mamando na teta do governo, gerando dívidas milionárias sem a necessidade de pagar. Mas uma hora a conta chega. E chegou.

Por conta do “Futebol Moderno”, os clubes europeus passaram a montar times galácticos com salários nunca antes imaginados. Ganhou os cartolas europeus, mas quem perde? O futebol brasileiro.

Os clubes brasileiros passaram a não conseguir manter as grandes estrelas. Todo ano os clubes são obrigados a passar por um inferno chamado “Janela de Transferência Europeia”. As dívidas, inclusive, fazem com que jovens jogadores deixem o país a preços bizarramente baixos.

A única saída para os cartolas foi se juntar ao futebol moderno. Do governo, veio a colaboração nas reformas dos estádios. Do Poder Judiciário, as ações contra as Torcidas Organizadas. Do Legislativo, um Estatuto do Torcedor que não garante nada.

Acontece que o “Mercado” ainda não venceu um oponente, as torcidas organizadas. Sempre digo que “torcida organizada é resistência”, e é. Se pegarmos os preços dos ingressos de acordo com os setores, veremos que os setores das organizadas ainda são os mais baratos. Se formos em algum jogo, veremos que encontraremos, provavelmente, mais negros e pobres nos setores das organizadas.

Assim, não é difícil de entender o motivo dos ataques às Torcidas Organizadas. Assim como os Hooligans, as Torcidas Organizadas brasileiras representam a camada popular da sociedade. A implantação do futebol moderno no Brasil passa por sua extinção, uma vez que esses não são “torcedores-consumidores”.

Torcida Organizada: O Bode

As grandes torcidas organizadas como Galoucura, Máfia Azul, Gaviões da Fiel, etc. surgem no futebol com uma grande base nas comunidades periféricas. Essas Organizadas não representam apenas o clube pela qual torcem. Suas ações refletem aquilo que é o seu bairro. Dominar a cidade — ou estado — é impor o seu respeito. Ser grande, significa ditar o ritmo da bancada.

Ao conseguir impor o seu respeito e ditar o ritmo da bancada, a Torcida Organizada consegue uma terceira coisa: ser escuta pela diretoria do clube.

A torcida de um clube é o seu verdadeiro dono. E é a Torcida Organizada quem consegue colocar ordem na casa. Quantas vezes não vimos uma ação de Organizadas contra presidentes, técnicos e jogadores? Algumas dessas ações são de depredação, sim. Mas você prefere uma vidraça da Sede quebrada ou ver o seu time amargar o rebaixamento? Para cada ação das Organizadas devemos ponderar o que é feito pelo amor ao clube e o que é por causa própria.

Quando assumiu a presidência do Cruzeiro, Gilvan de Pinho Tavares impôs uma regra: não daria mais ingressos às Torcidas Organizadas do clube. Ele via ali um bando de cidadãos que provocavam a violência no futebol. A imprensa tratou isso como uma medida para a paz nos estádios. Mas quantos mil Gilvan passaria a ganhar com essa medida? Quantos torcedores da classe popular seriam vetados do estádio e quantos “torcedores-consumidores” poderiam passar a ir?

Já no Sport, em agosto de 2015, o presidente João Humberto Martorelli, decidiu expulsar os sócio-torcedores que possuem ligação com a Torcida Jovem. Novamente, usando a desculpa de que a torcida organizada é a causadora de violência nos estádios.

Muitos tratam o poder das organizadas em relação ao clube como algo que não devesse existir. Mas se esquecem quem o clube pertence ao povo. E que é o povo quem sofre para acompanhar a equipe. Nada mais justo que quem está organizado, possa dar seus pitacos nos rumos do clube.

Expulsar as Torcidas Organizadas é a última etapa para modernizar o futebol. Quando essa etapa for concluída, sabe Deus o limite dos cartolas.

A criminalização das Organizadas

Apesar do desejo, não é tão fácil assim expulsar as Torcidas Organizadas. É necessário que o restante da torcida passe a acreditar que a violência no futebol é culpa delas. E que nem a festa paga os danos.

A tática é semelhante a utilizada por Thatcher no Desastre de Hillsborough. Comover a sociedade envolta de uma tragédia, culpar a Torcida Organizada, impor novas regras e expulsar a classe popular dos estádios.

Aqui eu destaco dois fatos que são do mesmo clube, mas se opõem:

1. Atlético-MG vs Atlético-PR: Jogo tenso. O campeonato passa por uma série de jogos em que os atleticanos dizem haver favorecimento ao Corinthians. O árbitro Sandro Meira Ricci faz uma arbitragem polêmica. Expulsa Marcos Rocha aos 48 minutos de partida.

Três objetos são arremessados ao campo. Todos dos setores Especial Pitangui e Especial Ismênia — para quem não conhece, setores de classe média. Nada de estranho acontece no setor da maior organizada do Atlético-MG.

O clube culpou a venda de cerveja, dizendo que ela foi a responsável pelos ânimos exaltados. O STJD absolveu o clube. E ninguém mais se lembra da arbitragem polêmica, nem dos três torcedores que jogaram os objetos.

2. Atlético-MG vs Corinthians: Uma final num campeonato de pontos corridos. O clima é tenso. A Polícia Militar resolve mudar o esquema de segurança. Vai passar com as Torcidas Organizadas do Corinthians em frente aos bares em que a torcida do Atlético-MG se concentra.

Os atleticanos percebem o ônibus e atiram garrafas. A torcida do Corinthians invade casas residenciais. A Galoucura dá meia volta e parte pra briga.

A Polícia Militar, percebendo a mancada, desvia os outros ônibus. Meia hora depois faz com que a maior Torcida Organizada de São Paulo fique a 20 metros da Galoucura. Novos confrontos.

Em ambos os casos a PM usou bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha para dispersar os torcedores.

No primeiro caso, como não houve, em nenhum momento, envolvimento de organizadas, a história foi esquecida. No segundo, a imprensa ignorou a falha da Polícia Militar e o ataque com garrafas de torcedores não-organizados. As manchetes que os jornais trazem é a de briga entre as Torcidas Organizadas.

Os culpados do primeiro fato e os torcedores que jogaram as garrafas no segundo, são inocentados porque se tratam de uma classe média que se enquadra nos quesitos de torcedor-consumidor.

A Polícia Militar é inocentada por conta do seu poder.

A torcida do Corinthians e a Galoucura são responsabilizadas — sozinhas — pelo tumulto. Uma porque foi obrigada a fazer a rota que a PM mandou. A outra, por voltar e defender os torcedores do seu time.

O palco foi armado e as organizadas caíram na rede. Claro que também não podemos tratá-las como paladinas da moral. Mas devemos criticar o fato de que todo histórico de violência envolvendo futebol deve ter alguma organizada no meio. A história não estaria sendo recontada para criar meios que justifiquem a implantação do Futebol Moderno?

E nesse segundo caso, voltamos a questionar o motivo pelo qual uma organizada interveio. Ela se envolveu por orgulho ou por defesa? Talvez pelos dois. A Galoucura pode ter tido a intenção sincera de defender os outros torcedores. Em consequência a isso, eles também alimentam o seu respeito e orgulho.

Sempre existirá mais do que dois lados. Os adeptos do “Futebol Moderno” justificarão que as organizadas devem ter o seu fim decretado para que o “cidadão de bem” possa ir aos estádios. A galera do “Ódio Eterno…” explicará como a história é reescrita em benefício do “Mercado”.

As batalhas estão sendo vencidas pelo “Futebol Moderno”. As festas estão sendo proibidas. A classe popular expulsa. Mas a guerra ainda está longe do fim. Sigamos com nosso Ódio. Porque seja Hooligans ou Organizada, continuaremos sendo a resistência!

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