Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim

Angélica Ferrarez
3 min readOct 21, 2018

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E por falar no samba e seu tempo, claro que composições antes cantadas sem muita problematização, hoje são revisitadas e não ganham apenas críticas, “música machista”, “coisa de homem machista”, muito além, as mulheres estão dentro deste universo produzindo novas narrativas, se lançando em composições próprias e fazendo versões inteligentes e empoderadas de sambas consagrados que naturalizaram certas imagens e mensagens que antes passaram, mas não mais passarão.

É o caso da composição Mulheres de Toninho Geraes, imortalizada na voz de Martinho da Vila no álbum “Tá delícia, tá gostoso” de 1995. Esta que ganhou este ano versão feminista na composição e voz da carioca Sílvia Duffrayer e da pernambucana Doralyce.

Na versão deles:

“Já tive mulheres de todas as cores,

De várias idades, de muitos amores,

Com umas até certo tempo fiquei,

Com outras apenas um pouco me dei.

Na versão delas:

“Nós somos mulheres de todas as cores,

De várias idades, de muitos amores.

Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei,

De Elza Soares, mulher fora da lei”

Interessante essa inversão, onde a mulher ganha o papel principal. Na versão antiga ela aparece como objeto de desejo de um homem. Na versão recente ela ganha protagonismo, é cantada na primeira pessoa do plural e faz referência a líder quilombola Dandara e a cantora do “fim do mundo” Elza Soares.

Outra inversão interessante da letra que canta os novos tempos que mulheres estão vivendo, vem nos últimos versos.

Na versão deles:

“Procurei em todas as mulheres a felicidade,

Mas eu não encontrei e fiquei na saudade,

Foi começando bem, mas tudo teve um fim

Você é o sol da minha vida, a minha saudade,

Você não é mentira, você é verdade,

É tudo que um dia eu sonhei pra mim”

Na versão delas:

“Eu não sei por que tenho que ser a sua felicidade.

Não sou sua projeção, você é que se baste.

Meu bem, amor assim, quero longe de mim.

Sou mulher, sou dona do meu corpo e da minha vontade.

Fui eu que descobri poder e liberdade.

Sou tudo o que um dia eu sonhei pra mim”

Estes versos trazem a materialização da inversão total dos tais “valores femininos”. Uma mulher canta pra um homem, “Eu não sei por que tenho que ser sua felicidade”, um paralelo total se pensarmos que aqui cabe inversão de papeis e valores. Para muitas mulheres da geração anterior (digo década de 40/50), não era nem a mulher que marcava ser ela o motivo da felicidade de um homem pois naturalizou-se que ele que deveria ser o motivo da felicidade dela.

Numa sociedade machista e patriarcal, o importante era ter um marido, e cabia às mulheres a arte da sedução. “Segurar” um homem, consentir relações extraconjugais quando ele assim quisesse e viver relacionamentos marcados por violências simbólicas, quando não físicas mesmo, faziam parte de um repertório que era casar.

Agora a mulher muda seu lugar social. Entra cada vez mais no mercado de trabalho, é maioria nas universidades, reflete este novo lugar de fala, amplia sua representatividade enquanto luta pelo domínio dos meios de produção. Hoje, ela ouve a música acima e pensa “Não sou sua projeção”, e logo “Você também não será minha projeção”.

Homens, queremos vocês pra compor junto, joguemos as bengalas fora que estas não tem mais serventia no universo feminino em questão. Claro que os processos são tão naturalizados que estamos em fase ainda de desconstrução/reconstrução. Uns mais outros menos, cada um na sua dose diária de autoavaliação. É como se todos tivéssemos um livro, mas nem todos estivéssemos na mesma página.

Porém, que bom que o livro existe, que as histórias estão sendo contadas em primeira pessoa do feminino plural, que as narrativas estão sendo atualizadas, os discursos revistos e as letras de samba revisitadas.

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Angélica Ferrarez

Historiadora, Professora, Feminista Negra… Pesquisadora da História e memória das mulheres negras e do Samba... Fala sobre samba e o que ela quiser!