Como vai vosmecê, Camugerê?

~Nota escurecedora: O texto propõe uma tentativa de reflexão sobre a [ausência de preocupação com a] saúde do homem negro, a partir de uma breve análise do estereótipo de dessensibilização de seu corpo. No entanto, reconhecemos que o referido tema possui uma amplitude impossível de ser totalmente alcançada nestas breves palavras, bem como o ‘recorte’ de gênero feito não possui a pretensão de afirmar que a problemática da saúde e do genocídio atinge exclusivamente o homem negro. Sabemos que saúde é uma pauta [e problema] que atinge todo o nosso povo. Nossa tentativa aqui se propõe então a analisar uma das [inúmeras] influências sobre a política de genocídio de nossos corpos~

Anlenvu
6 min readSep 24, 2018

“Como vai, como tá?

Camugerê!

Como vai vosmecê?

Camugerê!

Eu tô bem de saúde

Camugerê!

Para mim é prazer.” — Corrido da Capoeira Angola

Imagem: Portal Capoeira

Sempre que ouço essa canção, penso em um aspecto muito importante na vida de toda a comunidade preta: a nossa saúde. E não há a menor dúvida de que a saúde deve ser uma pauta frequentemente discutida e exercida por nosso povo, pois, em uma dinâmica social que nos propõe o genocídio em diversas esferas, dormir e acordar todos os dias, apesar de desafiador, não é garantia de que estamos vivos.

Esses dias, trocando uma ideia com meu pai sobre saúde, disse pra ele o quanto era uma referência positiva para mim o fato de ele, sendo um homem preto de 62 anos, ir ao médico regularmente. E é realmente chocante. Graças a Nzambi, o coroa tem uma saúde incrível. Segundo ele, “nunca soube o que é ter uma dor de cabeça em toda a minha existência” essa foi a parte da genética dele que eu não herdei (risos).

Apesar de tê-lo como um verdadeiro exemplo pra mim — não só no aspecto do cuidado com a saúde, mas em diversos outros contextos — vejo-o como uma exceção no meio de nós, pois, infelizmente, o homem negro no mundo ocidental, ao mesmo tempo que ocupa um constante lugar do não ser / não existir, a partir das diversas narrativas que nos invisibilizam nos espaços e da ocupação da linha de frente no plano de genocídio físico da população preta, vive sob um estereótipo másculo, de força inabalável, da musculatura invejável, e claro, que não fica doente. Hoje mesmo, dando uma googleada no termo ‘homens negros’, me deparei com o seguinte cenário:

Fonte: Google

Não satisfeito, joguei o termo ‘homens brancos’ no Google, e como se já não bastasse o espanto da imagem anterior, me deparo com isso:

Fonte: Google (grifo nosso)*

Ambas as imagens nos impactam de tantas formas que daria pra escrever uns 10 textos analisando somente esses resultados. E estão aí, pra todo mundo ver. Essa disparidade fala diretamente sobre a imagem do homem negro na sociedade: somos músculos. Somos vitalidade. Somos os verdadeiros objetos inquebráveis, não é mesmo? Bem, não.

A saúde do homem negro não é posta em xeque em nenhum momento, graças a essa imagem criada sobre nosso povo, que nos atribui diretamente à resistência corporal. Tem sido assim desde as Grandes Navegações. Foi assim que se estabeleceu o mercado cujo produto era nossos corpos, e claro, como bom marqueteiro, o branco projetou então sobre esses corpos o ideal de estrutura física totalmente resistente à dor e à doença, forte, incansável e sempre pronto para o trabalho (afinal, se éramos vendidos com a finalidade de trabalho e reprodução, saúde não poderia ser um problema). Sempre fomos vistos como o símbolo da força, e esse signo, atravessado pelo machismo e a organização social do patriarcado, trouxe ao homem negro uma perspectiva totalmente deturpada com relação ao cuidado com sua saúde.

Hoje, ainda na ideia balizada e racista de possuir um corpo-suporte para tudo, associada ao papel de provedor-viril-insensível-incansável reforçado pelo patriarcado, a saúde do homem negro, no geral, não é objeto de reflexão. Pequenos cuidados com a saúde como ir ao médico, dentista, dar atenção ao nosso bem-estar no dia a dia, estarmos atentos à respiração, o cuidado com a alimentação são totalmente ignorados por nós. Pensar sobre o cuidado de nossa saúde mental então? Nem pensar. Afinal, qual de nós tem a possibilidade de ficar triste ou se sentir frustrado? Não há espaço pra isso. A todo o momento devemos corresponder a essa imagem do corpo inabalável, que não precisa do cuidado do outro, que não precisa de tratamento para nada e que, ao mesmo tempo, deve manter tudo em ordem.

E é exatamente esse tipo de pensamento que compõe um dos diversos tentáculos que nos levam ao genocídio. Alimentar esse estereótipo só nos prejudica, pois, de certa forma, ele aumenta e muito o raio de alcance dessa “margem genocida” sobre nós. Quando falamos sobre genocídio da população preta, geralmente nossa narrativa é baseada na verdadeira “linha de frente”; no assassinato de nossos corpos e as esferas onde esse fenômeno acontece em maior proporção: o tráfico de drogas, polícia, milícia, situação de rua, entre outros elementos. Mas já pararam pra pensar em quantos de nós acaba morrendo por uma doença não diagnosticada ou por diagnóstico tardio? Quantos de nós acaba sucumbindo por ignorar uma dor no corpo que, na verdade, pode ser algo mais grave? Quantas vezes ignoramos um mal-estar, ou uma situação de tristeza ao invés de procurarmos ajuda?

É, camará, essas pequenas coisas também nos atingem, e o pior, também nos matam. E sem precisar de um fuzil pra isso. Na verdade, sem precisar do mínimo esforço. O banzo gerado pelo peso da existência de um corpo preto no ocidente, ao lado da ideia de que você, irmão meu, é inabalável, já dão conta da nossa morte.

Proponho aqui entre nós, então, um verdadeiro desafio: refletindo novamente sobre a música no início do texto, trago a você, irmão, as seguintes perguntas:

Como vai sua saúde? Qual a última vez em que você foi ao médico? Tem se sentido bem? Se não, que tal procurar ajuda? Qual foi a última vez que você reservou um tempo no seu dia para fazer algo que te fizesse sentir bem?

Em nosso processo de criação, somos levados a ignorar o que sentimos, independente da natureza, pelo racismo ou pela afirmação de uma suposta ideia de ‘masculinidade’. Bora correr na contramão disso?

Muitas vezes, pensar na reversão de nossas mortes é frustrante, pois, dentro de uma estrutura macro onde se assenta o racismo, a sociedade é uma verdadeira máquina de assassinar nossos corpos. Mas, lembremos que, nessa dinâmica, manter-se vivo também faz parte do processo e é sinônimo de resistência, e o auto-cuidado é fundamental para que nos mantenhamos de pé.

*o grifo na segunda imagem deve à ‘aparição’ de uma barra de tags de pesquisas complementares ao termo ‘homens brancos’, coisa que não aconteceu na pesquisa do termo ‘homens negros’. Isso pode nos levar à diversas reflexões, como por exemplo, a do exercício da subjetividade e diversidade concedido somente ao branco (observe que há tags das mais variadas: “feio”, “bonito”, “gostoso”, “terno”), enquanto o homem negro é sempre pensado de forma homogênea, e não tem direito a esta mesma diversidade.

--

--

Anlenvu

Homem negro, candomblecista, marido, psicólogo, 28.